segunda-feira, 21 de novembro de 2022

MADAME BOVARY, C'EST MOI

A recente leitura do último livro de Julian Barnes, Elizabeth Finch, suscitou-me o desejo de reler O Papagaio de Flaubert (1988) - (Flaubert's Parrot, na edição original, 1984) - que tornou célebre o seu autor, ainda que The Sense of an Ending (2011), galardoado com o Booker Prize, seja considerado o seu livro mais importante, publicado em edição portuguesa com o título O Sentido do Fim (2011).

Excelente conhecedor da literatura francesa, estudioso de Flaubert, Julian Barnes reúne em O Papagaio de Flaubert a biografia, a ficção e o ensaio, tudo envolvido num notável sentido de humor e demonstrando a posse de uma vastíssima cultura. Aliás, uma ironia fina percorre a obra do princípio ao fim. 

Gustave Flaubert (1821-1880) foi um escritor que marcou indelevelmente a literatura francesa, sendo de realçar a profundidade das suas análises psicológicas sobre o comportamento humano e sobre a sociedade em geral. Entre os seus livros, deve assinalar-se Madame Bovary (1857), que o tornou conhecido da França e do mundo e do qual ele dizia não gostar, Salammbô (1862), L'Éducation Sentimentale (1869), Bouvard et Pécuchet (1881) e Dictionnaire des Idées Reçues (1913).

Publicado inicialmente em revista, o romance Madame Bovary provocou escândalo e levou o escritor ao banco dos réus. À pergunta sistematicamente formulada pelos seus leitores sobre a personalidade de Emma Bovary, a protagonista, Flaubert ironicamente (ou talvez não tanto) respondeu: «Madame Bovary, c'est moi.»

O título do livro tem como pretexto um papagaio embalsamado que Flaubert teve sobre a sua secretária, e acerca do qual se formularam os mais diversos juízos. Julian Barnes debruça-se sobre os vários aspectos da vida do escritor, desde Rouen, onde nasceu e seu pai era médico no hospital Hôtel-Dieu até à sua morte, provavelmente devia a AVC, em Croisset. É mencionada a epilepsia que o condicionou desde a juventude até à sífilis, contraída na sua viagem ao Oriente. O século XIX tornara obrigatória aos escritores uma viagem a terras do Oriente e Flaubert não falhou. Acompanhou-o o seu amigo e escritor Max du Camp (já conhecedor dos sítios) que lhe serviu de cicerone, especialmente no Egipto, e o iniciou nos banhos públicos do Cairo (nesse tempo eram abundantes) onde Flaubert pôde copular com jovens rapazes egípcios, que frequentavam tais locais com essa exacta finalidade.

Com pouca inclinação para o matrimónio, Flaubert nunca casou, embora lhe sejam atribuídas duas grandes paixões, Elisa Schlesinger e Louise Colet, a sua "Musa", ainda que de temperamento antagónico e incompatível em questões estéticas e da qual viveu sempre afastado. As relações de Flaubert com as mulheres foram sempre muito complicadas. Conhecem-se-lhe também alguns amigos íntimos: Alfred Le Poittevin, cuja morte em 1848, aos trinta e dois anos, levou Flaubert a dizer: «Vejo que nunca tinha amado ninguém - homem ou mulher - como o amei a ele»; Louis Bouilhet, seu mentor, que morreu em 1869 e a quem um dia chamou «a água Seltzer que me ajudou a digerir a vida»; Maxime du Camp, que o acompanhou ao Egipto, e também na vida, como os anteriores, e foi membro da Academia Francesa.

Há muitos livros sobre Flaubert. Um, que não li, não foi favoravelmente acolhido aquando da sua publicação, apesar do autor ter sido, nos seus áureos tempos, uma espécie de Papa das Letras: L'Idiot de la Famille (1971), de Jean-Paul Sartre. Foram publicados três volumes (sensivelmente 4 000 páginas) mas Sartre não acabou a obra. E Flaubert não foi, em qualquer sentido, o idiota da família.

Ao longo das páginas de O Papagaio de Flaubert Julian Barnes procede a diversas e curiosas citações do "biografado":

«O sonho da democracia é levar o proletariado a atingir o nível da estupidez conseguido pela burguesia.» (p. 97)

«A democracia não é a última palavra da humanidade, da mesma maneira que o não foram a escravatura, o feudalismo, ou a monarquia.» (p. 151)

E também algumas apreciações de Barnes:

«Recordar o que os Goncourt disseram de Flaubert: "Embora seja franco por natureza, nunca é totalmente sincero no que diz, sente, sofre ou ama." Depois recordar o que todos disseram dos Goncourt: os irmãos invejosos e indignos de confiança. Recordar ainda a falibilidade de Du Camp, Louise Colet, da sobrinha de Flaubert, do próprio Flaubert. Perguntar com violência: como é que podemos conhecer uma pessoa?» (p. 183)

«Passou [Jean-Paul Sartre] dez anos a escrever L'Idiot de la famille, quando podia muito bem ter estado a escrever panfletos maoístas. Uma Louise Colet intelectual, constantemente a importunar Flaubert, que só queria que o deixassem. Concluir: "É melhor desperdiçar a velhice de que não fazer nada com ela." (pp. 183-4)

«Gustave na juventude: "Há dias em que desejamos ser uma mulher." Gustave na maturidade: "Madame Bovary, c'est moi.» Quando um dos seus médicos lhe chamou "velha histérica", considerou a observação "profunda"» (p. 186)

«[Sobre as prostitutas] Necessárias no século XIX para apanhar sífilis, sem o que ninguém se podia considerar um génio. O grupo de corajosos inclui Flaubert, Daudet, Maupassant, Jules de Goncourt, Baudelaire, etc. Houve escritores que não foram atingidos? Se o houve, eram provavelmente homossexuais.» (p. 186) 

«[Sobre Fonética] (a) O co-proprietário do Hôtel du Nil, Cairo, onde Flaubert ficou em 1850, chamava-se Bouvaret. O protagonista do seu primeiro romance chama-se Bovary; o co-protagonista do seu último romance chama-se Bouvard. Na sua peça Le Candidat há um Comte de Bouvigny; na sua peça Le Château des coeurs há um Bouvignard. Será tudo isto deliberado? (b) O nome de Flaubert foi impresso erradamente pela primeira vez na Revue de Paris como Faubert. Havia um merceeiro na rue Richelieu chamado Faubet. Quando La Presse noticiou o julgamento de Madame Bovary, chamaram ao autor Foubert. Martine, a femme de confiance de George Sand, chamava-lhe Flambart. Camille Rogier, o pintor que vivia em Beirute, chamava-lhe Folbert: "Percebeu a subtileza da piada?" escreveu Gustave à mãe. (Qual é a piada? Provavelmente a tradução em duas línguas da imagem que o romancista tem de si próprio: Rogier estava a chamar-lhe Urso Louco). Bouilhet também lhe começou a chamar Folbert. Em Mantes, onde costumava encontrar-se com Louise, havia um café Flambert. Tudo isto será coincidência? (c) Segundo Du Camp, o nome Bovary deve pronunciar-se com um o breve. Devemos seguir a sua indicação; em caso afirmativo, porquê?» (p. 211)

Também são várias as alusões de Julian Barnes à sua própria mulher, Patricia (Pat) Kavanagh (1940-2008), que morreu vítima de um tumor cerebral.  Pat nasceu em Durban e após outras experiências profissionais tornou-se agente literária, inclusive do seu futuro marido. Curiosamente, nos anos 1980 abandonou Barnes para ir viver com a escritora lésbica Jeanette Winterson, regressando mais tarde ao domicílio conjugal. É suposto que Barnes amava realmente a esposa.

Concluindo o livro, Julian Barnes alude à morte de Flaubert por apoplexia, refutando a tese de que se teria suicidado. E retoma o caso do papagaio embalsamado, que afinal seriam dois. Um existente na "casa" de Croisset (um pavilhão transformado em museu e que subsistiu à demolição da casa) e outro no Hôtel-Dieu, em Rouen. Ambos os possuidores disputam agora a autenticidade. Mas afinal, segundo Barnes, encontram-se muitos outros papagaios embalsamados no Museu de História Natural, em Rouen. Qual o que esteve realmente sobre a secretária de Flaubert? A dúvida subsiste!

Enfim, um interessante e proveitoso livro sobre Gustave Flaubert cuja leitura permanece tão cativante como na altura em que foi publicado.

A tradução portuguesa parece-me conseguida, à parte um ou outro erro, como a insistência em escrever "percursor" em ver de "precursor" (por exemplo, na página 182).

 

 

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