sábado, 15 de agosto de 2020

A ALEXANDRIA DE LAWRENCE DURRELL



Foi publicada em 1989 Alexandrie d'Égypte - Les lieux du Quatuor d'Alexandrie, uma obra com textos de Lawrence Durrell e fotografias de Rodolphe Hammadi. Prefaciou o livro (e suspeito que o organizou, pois não é feita referência a qualquer outra pessoa), o escritor e diplomata francês Olivier Poivre d'Arvor, homem da cultura e dos media, conselheiro cultural em diversos postos diplomáticos, director do Centro Cultural Francês de Alexandria, nomeado em 2016 embaixador de França na Tunísia.

O exemplar que possuo foi adquirido em 2007, através da Amazon, em estado impecável mas usado, já que exibe uma afectuosa dedicatória autógrafa de Olivier (Poivre d'Arvor) a um certo Luc (personagem que desconheço) de quem não é mencionado o apelido.

A obra, em bom papel, de menos de uma centena de páginas, inclui o prefácio de Poivre d'Arvor  ("Alexandrie, capitale de la mémoire") ; "Alexandria" ( prefácio, inédito em francês, de Lawrence Durrell à reedição de Alexandria: a History and a Guide, de E. M. Forster); uma entrevista com Lawrence Durrell realizada por Marc Alyn para a sua obra Le grand suppositoire; três cartas de Lawrence Durrell para Henry Miller; e "Les lieux du Quatuor d'Alexandrie" (35 fotografias alusivas à cidade, efectuadas por Rodolphe Hammadi e ilustradas com pequenos textos de Lawrence Durrell, extraídos da sua obra O Quarteto de Alexandria.

[Apraz dizer que Olivier Poivre d'Arvor publicou posteriormente (2009) um livro muito mais volumoso, Alexandrie Bazar - Le roman d'une ville, a que faremos referência em outra oportunidade]


[Por se referir expressamente à Alexandria de Forster, Durrell e Cavafy, não quero também deixar de mencionar Alexandria Still, publicado em 1977, pela Princeton University Press e reeditado em 1989, pela American University in Cairo Press, e que adquiri em Tunis, em Janeiro de 2001.]


No prefácio do livro, Poivre d'Arvor evoca vários locais míticos de Alexandria, cidade a que chama Capital da Memória. Como conheço todos esses locais, alguns já em vias de destruição aquando da minha primeira visita a Alexandria, li o texto com particular deleite. Por ocasião das minhas estadas na cidade, tive a oportunidade de ficar hospedado, por duas vezes, no Hotel Cecil, sobre a Corniche, o mesmo onde Lawrence Durrell começou a tomar notas para a redacção do Quarteto, do qual não resisto a transcrever dois parágrafos da primeira página:

« Capitally, what is this city of ours? What is resumed in the word Alexandria? In a flash my mind's eye shows me a thousand dust-tormented street. Flies and beggars own it today - and those who enjoy an intermediate existence between either.
Five races, five languages, a dozen creeds: five fleets turning through their greasy reflections behind the harbour bar. But there are more than five sexes and only demotic Greek seems to distinguish among them. The sexual provender which lies to hand is staggering in its variety and profusion. You would never mistake it for a happy place. The symbolic lovers of the free Hellenic world are replaced  here by something different, something subtly androgynous, inverted upon itself. The Orient cannot rejoice in the sweet anarchy of the body - for it has outstripped the body. I remember Nessim once saying - I think he was quoting - that Alexandria was the great winepress of love; those who emerged from it were the sick men, the solitaries, the prophets - I mean all who have been deeply wounded in their sex.»

No prefácio à obra de Forster, consagrada a Alexandria, Durrell considera que mais do que uma história e um guia, ela é uma pequena obra-prima que contém uma parte da melhor prosa que Forster escreveu. Lembra que chegou a Alexandria em 1941, vinte e três anos depois do livro ter sido escrito e oito anos depois da morte de Cavafy, que fora grande amigo de Forster, e que pouco de visível tinha mudado na cidade, pelo que utilizou o livro, durante dois anos, nas suas deambulações quotidianas. A única mudança verdadeira que constatou foi a cadeira vazia do poeta no seu café preferido. Mas diz também Durrell que, por ocasião da sua última visita a Alexandria, em 1977, muito do que tinha subsistido desaparecera, a começar pela população estrangeira, devido à nova política seguida depois da tomada do poder por Nasser. Refere ainda que o apartamento de Cavafy fora transformado numa pequena pensão e que o que restava do recheio fora conservado no último andar do Consulado da Grécia. [Existe, hoje, uma Casa-Museu Cavafy, no prédio onde habitou o poeta, na Rua Lepsius, agora Rua Sharm el-Sheikh, embora, ao que creio, no andar acima daquele que fora a sua residência, onde se guarda o parco espólio que não foi disperso pelos herdeiros.]

Na entrevista a Marc Alyn, Durrell conta a sua chegada ao Egipto em 1941, fugindo à guerra e a sua estada no Cairo e em Alexandria, cidade onde congeminou o Quarteto, a obra que o tornaria célebre. Tendo deixado o Egipto em 1945, a redacção do livro iniciou-a em 1946, já então em Rhodes. [Quando visitei Rhodes o ano passado não encontrei traços da passagem de Durrell, talvez por culpa minha, dado não me ter forçado a investigar a sua permanência na ilha.] Lembra, também, que até à batalha de El Alamein, estava convencido de que os alemães ganhariam a guerra. [Lembro, a propósito, que o bar do Hotel Cecil se chama Bar Monty, em homenagem ao marechal Montgomery, vencedor da batalha e que o frequentava, tal como eu o frequentei.] Antes de começar Justine, o primeiro dos quatro volumes que compõem o Quarteto, Durrell ainda esboçou uma nova versão do Livro dos Mortos, embora Alexandria fosse sempre a personagem principal do romance. A uma pergunta do entrevistador, sobre a razão porque todas as personagens do romance detestam o Egipto, incluindo os egípcios, Durrell responde que é devido à podridão total e também ao clima, que provoca uma espécie de sufocação. Para o escritor, o clima é esgotante e isso, para ele, também é devido à imensidade da superfície plana. Recorda que, mais tarde, na Argentina, sentiu a mesma sensação de "desvitalização". Acrescenta que há lugares abençoados e lugares estéreis e que, pessoalmente, a Grécia sempre lhe serviu: Corfu, Rhodes, Chipre. «J'ai noté quelque part que j'avais un moment songé à situer mon roman à Athènes. Mais avec le jeu des quatre temps et des quatre volumes, je risquais de lasser mon lecteur en plaçant toujours les scènes dans un décor identique. Cela rendait presque impossible les reprises successives de la même histoire. Ou bien je tombais dans ces romans-fleuves à la Musil, ennuyeux comme la pluie: sept volumes de rien et qui coulent, qui coulent...»

Seguem-se as três cartas endereçadas a Henry Miller, todas em papel timbrado do British Information Office, de Alexandria, onde Durrell trabalhava. 

Na primeira carta, datada da Primavera de 1944, Durrell felicita Miller pelos seus livros e conta que, com a guerra, a sua depressão aumenta e que as casas de saúde estão cheias de "clientes". Evoca a atmosfera de sexo e de morte de uma intensidade terrível. «Des Arabes, des Coptes, des Grecs, des Levantins français; pas de musique, pas d'art; pas de vraie gaieté. Un ennui moyen-européen saturé, complet, auquel se joignent l'alcool, les Packard et les cabines de plage. PAS D'AUTRE SUJET DE CONVERSATION QUE L'ARGENT. Même l'amour est considerée en termes d'argent.» Diz, num aditamento, que não se encontra uma única pessoa que se interesse a algo que não seja fazer dinheiro ou possuir uma mulher. Mas conta, também, que encontrou uma estranha mulher de olhos negros, uma pessoa autêntica perdida na venalidade e no dinheiro. «C'est la seule personne avec qui j'ai pu vraiment parler; nous partageons une vraie vie de réfugiés. Elle reste assise des heures sur le lit et me parle de la vie sexuelle des Arabes, des perversions, de la circoncision, du haschish, des pâtés de viande, de l'ablation du clitoris, de la cruauté, du meurtre. Cette fille pauvre née de parents juifs tunisiens (sa mère était une Grecque de Smyrne, son père juif de Carthage), elle a vu l'intérieur de l'Égypte jusque dans ses plus obscurs tressaillements d'obscénité. Elle est le Tropique du Capricorne ambulant.»

Na segunda carta, datada de 23 de Maio de 1944, Durrell agradece uma carta de Miller, informa que dirige o «grand bureau de propagande de guerre dont le but est d'introduire discrètemet le nouveau monde solide que nos déments de compatriotes essaient "de forger dans le fer et le sang"». Informa da grande variedade de lindas raparigas que existe na cidade (coptas, judias, sírias, egípcias, marroquinas, espanholas), mais belas do que em Atenas ou Paris. «Nourriture sexuelle de qualité, mais dans une atmosphère moite, hystèrique, sablonneuse, dominée par le vent du désert qui transforme tout en manie indispensable. L'amour, la drogue et l'homosexualité, voilà les remèdes évidents pour quiconque est coincé ici pour quelques années.»... «A part cela, je suis coincé au milieu d'un petit livre sur Corfou - un guide, en réalité, concernant le paysage. C'est difficile. Je me sens à sec.»

Na terceira carta, datada de 22 de Agosto de 1944, Durrell acha maravilhoso poder corresponder-se tão rapidamente com Miller, de quem elogia a obra. «On ne pourrait pas habiter très longtemps ici sans pratiquer une mort d'une sorte ou d'une autre - le haschich, les adolescents ou la nourriture. Et pourtant, ce pays a la beauté grasse ou mortelle d'une chenille.»... «J'ai tant appris ici que je suis impatient de me remettre à écrire. J'ai une idée merveilleuse pour un roman sur Alexandrie, un lien facile pour toutes mes expériences grecques, en même temps qu'une espèce de boucherie spirituelle avec des filles sur les tables.»

A última parte do livro, intitulada "Les lieux du Quatuor d'Alexandrie", apresenta 35 fotografias de Rodolphe Hammadi, alusivas a Alexandria, tendo como "legendas" pequenos textos extraídos do Quarteto. 

Este breve livro, devido a Olivier Poivre d'Arvor, contitui uma bela homenagem a Alexandria e evoca de alguma forma a génese do famoso Quarteto em que Lawrenec Durrell imortalizou a cidade.


1 comentário:

Anónimo disse...

Alexandria,símbolo morto de uma época de experiências,de sabedorias,de diálogos de tradições religiosas e filosóficas. O Cavafy é bem o representante, o arauto, dessa civilização de aceitação mútua que se extinguia como uma vela a apagar-se. E os nacionalismos e depois os fundamentalismos,virus bem mais maléficos que o Covid vieram dar as marteladas finais. Hoje resta a nostalgia vivida através dos Quartetos ou das breves poesias do "Poeta da Cidade". Nem tudo era perfeito,claro. Mas a distância no tempo apaga as imperfeições. Porque não vivi nessa Alexandria?