sexta-feira, 28 de julho de 2017

SOBRE PASOLINI

 

A homossexualidade heróica de Pasolini

Pasolini integrou a sua sexualidade na luta política e entendeu que o sexo era algo que tinha de entrar nos cálculos da sua luta contra a burguesia, que ele viu como agente do apocalipse.
Morreu Giuseppe Pelosi, o “ragazzo di vita” condenado pelo assassínio de Pasolini na praia de Ostia, arredores de Roma, na madrugada do segundo dia de Novembro de 1975. Tinha 59 anos e um tumor no pulmão. A confissão em tribunal e a reconstituição do crime não impediram que o caso ficasse desde sempre envolvido em dúvidas. E agora, anunciando a morte de Pelosi, os jornais regressaram à teoria do mistério: houve uma motivação política no crime? Foi cometido por aquele rapaz, sozinho, que Pasolini tinha “engatado” umas horas antes na praça frente à estação Termini, ou houve mais pessoas implicadas no assassínio?

Nos dias seguintes, a reacção pública à morte de Pasolini era polarizada desta maneira: para uns, ele tinha morrido como sempre tinha vivido, como “um rato de esgoto”; para outros, era o herói trágico de uma forma de vida que, tanto na sua dimensão privada como pública, tanto na literatura, no cinema e na teoria como na sua vida sexual, tinha a radicalidade política e a irredutibilidade idiomática de um herege.

A obra de Pasolini, de uma coerência estrita, na sua pluralidade de géneros e disciplinas, continua vivíssima e até se deu nos últimos anos uma “Pasolini-renaissance”. O que, da lição pasoliniana, pertence ao passado é uma ligação, nas grandes cidades, entre homossexualidade e delinquência: a homossexualidade vista como uma categoria da criminalidade.

Aos olhos da polícia e da justiça, mesmo um intelectual como Pasolini era uma figura típica de um “meio” obscuro, em que as vítimas são tão culpadas como os assassinos. Podemos com toda a segurança pensar que Pasolini sempre preferiu pertencer à categoria dos criminosos, quando a alternativa era ser incluído na categoria psiquiátrica dos “desviantes”.

Ele representou a figura de uma homossexualidade heróica que já não tem lugar no nosso tempo. Pelo tempo em que viveu e pela sua atitude política, Pasolini não aspirava a uma neutralização da homossexualidade, à sua integração estatal, à modelação pelo Estado. Vemo-lo como “uma força do passado” que chega até nós para perturbar a nossa boa consciência, dizendo-nos coisas que agridem e com as quais já não sabemos conviver. Diz-nos ele: antes delinquente que turista do sexo no parque urbano programado ou representante avançado nos horizontes de prazer das mais distintas ordens, corporações e profissões.

Pasolini não foi uma figura respeitável e nunca se deixou neutralizar. Vista a partir do seu observatório (instalado num tempo histórico, mas também num tempo político), a homossexualidade, hoje, embora bem sinalizada com as cores do arco-íris, é uma homossexualidade “branca”. Passámos a um modelo unissexual, uniformizado, comum aos homossexuais e heterossexuais. Pasolini, neste aspecto, surge hoje como um resquício heróico e prodigioso de uma época que parece tão distante de nós como aquela em que os grandes aristocratas e viajantes ingleses e alemães desciam aos países do Sul para “conviverem” com os jovens das classes pobres.

Não é que a atitude seja a mesma: Pasolini não descia aos bas-fonds da Roma proletária com a disposição esteticista com que o barão Von Gloeden se instalou em Taormina, no início do século passado e fotografou os efebos usando as suas prerrogativas de rico aristocrata neo-clássico, imaginando que estava na Grécia Antiga. Pasolini, pelo contrário, integrou a sua sexualidade na luta política e entendeu que o sexo era algo que tinha de entrar nos cálculos da sua luta contra a burguesia, que ele viu como agente do apocalipse, executora do fim do mundo.

4 comentários:

Zephyrus disse...

A vivencia espontanea do Amor, da qual decadas atras ainda havia resquicios no mundo muculmano, foi misteriosamente destruida apos a queda do Mundo Antigo. As novas liberdades que se vivem nao traduzem essa vivencia do passado. Onde surpreendentemente encontrei ecos desse passado foi no que resta da cultura africana do Nordeste Brasileiro (o actual Candomble ja esta muito alterado pelo sincretismo com o Cristianismo). A teorizacao da sexualidade a que temos assistido, se bem que trouxe mais liberdade no Ocidente, tambem afastou muitos homens de certas vivencias, com receio de levarem com um rotulo de "homossexual" para o resto da vida.

Anónimo disse...

Não é a primeira vez que se vê defender que a homossexualidade era bem mais divertida,aventurosa,picante,nos tempos da criminalização e da repressão. Aqui o sr. Guerreiro anuncia-nos,comovido,que Pasolini preferia ser visto como criminoso,do que "normalizado". Curioso. Tenho pena de não poder exibir aqui uma fotografia dele vestido com rigoroso "smoking" num Festival de Veneza,ao lado de Aldo Moro em traje citadino. Foi,salvo erro,na apresentação do "Vangelio secondo Matteo",que recebeu prémios cat
ólicos. E lembro que os seus últimos escritos, os "corsários",eram publicados no "Corriere",que não me consta ser anarquista ou de esquerda,sequer. Aí tornou pública a sua célebre posição contra a despenalização do aborto. Felizmente para ele e para nós,a coerência não era uma das virtudes do Pier Paolo.
Finalmente,lembraria ao sr.Guerreiro e amigos em espírito,que talvez no nosso país( e noutros)os jovens gays das escolas da provincia,e os do subúrbios em geral,agradeçam a normalização,a tri
vialização,a descrimininalização da homossexualidade. Enquanto algumas elites de Lisboa se divertiam em aventuras "arriscadas" nos anos 60 e 70,os provincianos e outros populares eram insultados,ostracizados,quando não agredidos. E se o risco é o que os excita,dispõem de variadissimos países do mundo onde podem deliciar-se com o risco,até o máximo,da pena de morte,como no Uganda ou no Irão,que até publicita fotos do enforcamento de jovens gays.Ainda não há agências especializadas,mas os países "arriscados" aguardam-vos por qualquer rota...

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Compreendo a posição de António Guerreiro, que de algum modo interpreta o próprio pensamento de Pasolini. Se ainda vivesse, talvez o pensamento de Guerreiro e de Pasolini se identificassem. Não é obviamente António Guerreiro contra a descriminalização da homossexualidade mas contra uma "normalização forçada" por causa do politicamente correcto. Talvez Pasolini não fosse absolutamente coerente. Nenhum de nós o é. Por exemplo, Pasolini foi sempre contra a prática do aborto, atitude que lhe valeria hoje a ostracização do "pensamento único", prestes a tornar-se uma nova polícia de costumes ao contrário, ou antes, diferente. Muitos dos que hoje incensam Pasolini desconhecem o seu pensamento e a sua obra.

Muito haveria a dizer sobre esta matéria, mas a caixa de comentários não permite que nos alonguemos.

Só mais uma nota. Sobre o Irão, têm sido publicitadas fotos de enforcamento de gays. Acredito que até sejam verdadeiras, já que a doutrina oficial condena a homossexualidade. Mas devem ter sido casos muito especiais (claro que sempre condenáveis) e raros, percentualmente comparados com os seus 80 milhões de habitantes. Mas, por informações que nos chegam, pratica-se lá a homossexualidade como se praticava em Portugal durante o Estado Novo. Desde que não haja ostentação pública ou que não tenha lugar em sítios públicos.

E talvez sejam mais naturais os encontros homossexuais cara a cara do que por interposto computador!

Zephyrus disse...

Pessoas que viveram no Estado Novo contaram-me casos que presenciaram no servico militar e na guerra colonial. Homens que depois casaram e sao hoje avos. Tive uma mulher a dias que me contou isto, ha muitos anos: o pai fora operario fabril no vale de Ave, e havia patroes que davam dinheiro a homens jovens em troca de "favores". Relato identico ouvi de um algarvio, a proposito do que se passava nas ceifas e na "apanha da fruta". Na terra natal do meu pai, no Sul do pais, havia um grande proprietario conhecido por ter mais de 20 filhos nao assumidos fora do casamento. Era comum manter relacoes com mulheres que iam para as quintas, trabalhar na agricultura. Tudo com mutuo consentimento, sublinhe-se. Tal era comum na regiao. Mas tambem existia um proprietario fabril, italiano, que foi patrao de um dos meus bisavos. Partiu deste mundo solteiro... pois gostava de homens e sabia-se que dormia com operarios. E uma pena que nunca tenha havido recolha e publicacao destas vivencias dos tempos do Estado Novo, e ate da Primeira Republica. O povo portugues nunca teve puritanismo, apesar de ser conservador. Agora ja comeca a ser tarde para tal obra.

Quanto ao mundo muculmano, umas notas. Recordo-me de ver ha uns anos um estudo frances sobre as praticas sexuais entre homens em Marrocos. Havia regioes onde cerca de 30% dos homens teriam tais experiencia. Normalmente o homem mais jovem assumia o papel de passivo e o mais velho de activo. Eram apontados factores de indole cultural que poderiam explicar tais praticas. Sabe-se que nas tribos do Afeganistao, apos a queda dos fundamentalistas, regressaram tais praticas de sexo entre homens. Conheci ha anos um filho de um antigo embaixador na Jordania que me relatou historias de relacoes entre homens nesse pais, que o pai contava em casa. E quem tem dinheiro vem a velha Europa procurar parceiro...

Prefiro nao adiantar mais pormenores, pois o tema e complexo e a informacao e muita. Seria tema mais propicio para uma tertulia, que certamente seria muito proveitosa para os interessados nestas tematicas.