sábado, 4 de abril de 2015

HOMENAGEM A ANTÓNIO FERRO




O jornalista Orlando Raimundo acabou de publicar um livro, António Ferro: O Inventor do Salazarismo - Mitos e falsificações do homem da propaganda da ditadura, onde pretende demonstrar, como se depreende do título, que a obra de António Ferro, quer literariamente, quer culturalmente, não passou de uma falácia. Ao longo das quase 400 páginas do livro, o autor procede à completa demolição da figura do criador português da "política do espírito", expressão cunhada por Paul Valéry, abstraindo do princípio genérico de que se não há homens completamente "bons" também não os há completamente "maus".

Trata-se de um livro inegavelmente bem escrito e bem revisto (facto para assinalar nos nossos dias), em que, à parte raras gralhas tipográficas, encontrei poucos lapsos. Refiro, a título de exemplo, na p. 97, Rue Furstemberg em vez de Rue Furstenberg, na p. 114, comandante Sinel de Cordes em vez de general Sinel de Cordes ou, na p. 221, Couteline em vez de Courteline. Na p. 175 é referido um filho de António Ferro, Pedro, mas os filhos chamavam-se António e Fernando, Pedro era o irmão. Os factos históricos mencionados pelo autor, que não tive oportunidade de confirmar, afiguram-se correctos para qualquer pessoa razoavelmente informada, e presumo que Orlando Raimundo, na investigação a que necessariamente procedeu, se tenha documentado devidamente. Todavia, gostaria de conhecer o texto (não referenciado) em que Fernando Pessoa «sugere o internamento psiquiátrico do "imbecil" António Ferro» (p. 188).

Mas o problema deste livro não são propriamente os factos, ele reside essencialmente nas interpretações e conclusões apresentadas pelo autor. Orlando Raimundo pode detestar Ferro, pode detestar Salazar, pode detestar o Estado Novo, mas não pode, objectivamente, achar, para agora me limitar apenas a Ferro, que tudo o que este realizou foi mau. Ou que todas, ou quase todas as pessoas com que Ferro se cruzou na vida eram medíocres e/ou fascistas ou aparentados, desde Manoel de Oliveira (um "cineasta de talentos duvidosos", p. 131) a Luigi Pirandello, Júlio Dantas, D'Annunzio, Leitão de Barros, António Lopes Ribeiro, Maeterlinck, Carlos Malheiro Dias, Bernardo Marques, Beatriz Costa, Ribeirinho, Augusto de Castro, Mário Eloy, Jorge Segurado, Frederico de Freitas, Carlos Botelho, Mário Beirão, Adolfo Simões Müller, Amélia Rey-Colaço, Couto Viana, Raul Lino, Colette, Cottinelli Telmo, Henrique Galvão, Jacques de Lacretelle, Eduardo Viana, Pedro Homem de Mello, Alfredo Cortez, Carlos Selvagem, Joaquim Paço d'Arcos, Martins Barata, T.S. Eliot, Alfredo Pimenta, Carlos Queiroz, João Ameal, Ruy Coelho, Amália Rodrigues, Marinetti, Leopoldo de Almeida, Ivo Cruz, e a enumeração seria infindável, sem esquecer, obviamente, Fernanda de Castro. De alguma forma, são igualmente menosprezados os criadores artísticos e literários da época, independentemente do seu incontestável valor, porque, através de António Ferro e do SPN (Secretariado da Propaganda  Nacional), receberam encomendas ou prémios do "regime". E eles são a maior parte dos modernistas, incluindo Fernando Pessoa e Almada Negreiros. Nem mesmo estes se salvam!

Ninguém, praticamente, escapa à crítica arrasadora e sistemática de Orlando Raimundo. Se retirássemos do panorama cultural português da época os nomes mencionados, o país ficaria vazio. Ocorre-me que o autor se esqueceu da realidade nacional no tempo do Estado Novo. As figuras apontadas no livro não eram todas apoiantes entusiastas do regime mas viviam no regime e trabalhavam no regime. Exigia-se-lhes que não fossem declaradamente opositoras, mas importa recordar o que era a Europa à época. Não é legítimo comparar a situação de então com a situação actual, ainda que agora se verifiquem alguns paralelismos. O que nesse tempo era censura política transformou-se hoje num tipo de censura ainda mais insidioso, porque disfarçado, a censura económica, que dispensa ou afasta quem não comunga dos ideais do neoliberalismo por ora triunfante.

Orlando Raimundo não se exime mesmo de tecer considerações sobre a vida íntima de António Ferro. A propósito de uma carta confidencial em que Marcelo Caetano se teria queixado dele a Salazar, escreve (p. 338): «Marcello detesta Ferro desde os tempos de Mar Alto, que considera uma obra lamentável. O ódio decorre também da presumida bissexualidade de António Ferro e Fernanda de Castro, que mantêm relações de grande proximidade com intelectuais e artistas supostamente homossexuais, como Virgínia Vitorino e Tomás Ribas, visitas de casa; Natália Correia, companheira de férias de Fernanda de Castro no Algarve, ou Judith Arvelos, que acaba por se instalar na casa da Calçada dos Caetanos. Moralista e homófobo, Marcello critica em diversas ocasiões a protecção de Ferro a homossexuais reconhecidos, como Leitão de Barros e o bailarino Francis Graça, do Verde Gaio.»

Há, também, uma afirmação clamorosa que importa ser convenientemente denunciada. Referindo-se a Salazar, Orlando Raimundo escreve (p. 324): «O ditador, que não tem o mínimo sentido de humor...». Ora se há coisa em que são unânimes todos os que conviveram com Salazar é na referência ao seu profundo sentido de humor, manifestado nas mais diversas ocasiões.

Considerar que António Ferro era oportunista, ambicioso, mistificador, que falsificou todas as tradições portuguesas ou passou a vida a inventar novas tradições não cola à personagem. Nem é aceitável o último parágrafo do livro (p. 360): «Manhoso e de aparência suave, e por isso mesmo mais resistente do que os modelos nazi-fascistas, apostados no culto da personalidade, o salazarismo sobreviveu ao tempo e ao seu inventor. Criando a ilusão, ainda hoje presente entre nós, de que Ferro foi um homem de cultura que vendeu a alma ao diabo e não um agente do diabo no território da cultura.»

Para escrever este texto, Orlando Raimundo teve de elaborar uma espécie de biografia de António Ferro, assinalando a sua acção como jornalista e, depois, como secretário da Propaganda Nacional. Além, é claro, de referir os livros que ele publicou ao longo da vida. Resulta daqui, mesmo para o leitor mais distraído, que a actividade de Ferro à frente do SPN, cobrindo variadas áreas culturais (à excepção da cultura erudita que não cabia nas suas atribuições), foi obra de imenso fôlego, só possível por um empenhamento total na promoção das mais diversas iniciativas, na realização de manifestações culturais por todo o país e na divulgação pelo mundo de aspectos essenciais da cultura portuguesa. Como escritor, Ferro co-introduziu o modernismo na linguagem literária e apoiou indefectivelmente os artistas modernistas. Foi também o editor da revista "Orpheu" (embora isto seja um pormenor circunstancial), cujo centenário se comemora este mês. Se a incansável actividade de António Ferro se enquadrava no regime salazarista isso não é susceptível de causar espanto. Nem a poderia ele desenvolver de outra forma. Argumentar-se-á que Ferro foi nutrindo, pouco a pouco, uma especial veneração por Salazar. Mas importa relembrar os mais esquecidos que depois do período turbulento da I República (à qual se devem, todavia, algumas importantes reformas), os portugueses ansiavam por um tempo de tranquilidade e que Salazar incarnou sabiamente esse desejo, ganhando inequivocamente o apoio popular (pelo menos até ao fim da Segunda Guerra Mundial) e conquistou mesmo para a sua causa a maior parte dos espíritos mais avessos a um regime autoritário. Escreve o autor, no início, citando Leitão de Barros, que sem «as manobras e expedientes» de António Ferro o salazarismo seria um "quadro sem moldura". Não penso que assim seja. O salazarismo tinha vindo para ficar por muito tempo, ficaria com Ferro ou sem Ferro, e ficou. Ainda bem que foi com Ferro, o que permitiu algum brilho ao que teria sido uma governação asséptica.

Nem tudo o que António Ferro realizou terá sido obviamente bem feito, ninguém é perfeito, mas o saldo é largamente positivo. Julgo mesmo poder afirmar-se que Ferro (na sua circunstância) foi o primeiro ministro da Cultura que houve no nosso país.

Assim, creio que o livro de Orlando Raimundo, escrito com o intuito de demolir total e absolutamente a figura e a obra de António Ferro (mas posso estar enganado), acabou por lhe prestar inestimável serviço, ao enunciar uma carreira fecunda que muito contribuiu (nos limites traçados e com os recursos disponíveis) para o desenvolvimento cultural de Portugal.

Na verdade, António Ferro: O Inventor do Salazarismo é uma significativa homenagem a António Ferro, quando se completam 120 anos sobre o seu nascimento.


* * * * *

Nota: O livro insere em apêndice uma interessante colecção de fotografias de António Ferro, cedidas pela Fundação António Quadros: Fundo António Ferro/Fernanda de Castro e inclui um anexo com a Bibliografia Activa e Passiva de António Ferro.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Júlio: não li o livro partindo da evidente constatação que a "última dama do Estado Novo" - título, no mínimo piroso" - se associava a um oportunismo igual a tantos outros para consumo de ávidos de fofoquice, coisa muita apreciada entre nós. Até uma dileta do Prof. Oliveira publicou, com grande sucesso, as suas memórias com Salazar.
Não é para levar a sério, por muito bem escrito que possa estar, um livro que se intitula "António Ferro - o inventor do Salazarismo". E por aqui me fico.
Abraço Zé maria

Rita disse...

Que bálsamo, obrigada. Rita Ferro

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Rita, julguei que tivesse lido o "post" na altura. É sempre um prazer (e um dever) relembrar a figura e a acção de António Ferro. Depois da sua partida para Berna a actividade cultural no nosso país estiolou. Valeu-nos a Gulbenkian, durante muitos anos o nosso "ministério da Cultura". Já escrevi várias vezes sobre o seu avô. Espero que alguém isento e devidamente credenciado possa vir a produzir sobre ele uma obra "definitiva" que será indubitavelmente o contraponto do livro de Orlando Raimundo.