quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O TEXTO COMO PRETEXTO OU VICE-VERSA




Acabou de ser editado em livre de poche o romance de Jöel Dicker La Vérité sur l'Affaire Harry Quebert, publicado em 2012 e que, nesse ano, obteve o Grand Prix du Roman da Academia Francesa e o Prix Goncourt des Lycéens.

O autor, um jovem romancista suíço (n. 1985), publicara já outras obras, nomeadamente Les Derniers Jours de nos pères, mas foi com o livro que agora se comenta, um volume com cerca de 700 páginas, que vendeu em França mais de um milhão de exemplares e se encontra traduzido em 32 línguas, que ganhou notoriedade internacional.

O livro de Jöel Dicker, rapidamente alcandorado a best-seller, é uma reflexão sobre a sociedade americana (o autor permaneceu longo tempo nos Estados Unidos da América a escrevê-lo), com ênfase nos costumes, na literatura, na justiça e na comunicação social. Uma reflexão que não classificaria de impiedosa mas, pelo menos, de profundamente lúcida.

Romance social doublé de thriller policial, tem por tema de fundo a estória de um escritor que após ter publicado um romance excepcional se encontra falho de imaginação (a síndroma da página em branco) para produzir uma segunda obra. De alguma forma, Jöel Dicker auto-retrata-se no protagonista da obra - o escritor Marcus Goldman (têm ambos a mesma idade) é o seu alter ego -, auspiciando-se um extraordinário êxito para o seu romance. E como estamos entre escritores, a figura que dá o nome ao livro, Harry Quebert, antigo professor de Marcus na universidade de Burrow, é também, no romance, um dos maiores escritores americanos contemporâneos, célebre por (não) ter escrito o livro que o catapultou para os pináculos da Fama: Les Origines du Mal.

A intriga gira em torno do assassinato de uma miúda de 15 anos, Nola Kellergan, que foi, por um tempo, a musa de Harry, antes de ter desaparecido misteriosamente, e cujo corpo é encontrado 30 anos mais tarde.

Ao longo da obra mantém-se o suspense que obriga o leitor, como é próprio dos livro policiais, a devorar capítulo sobre capítulo, com a finalidade de descobrir o criminoso. Mas Jöel Dicker baralha as pistas. E os suspeitos, a começar pelo próprio Harry Quebert, sucedem-se até à descoberta da verdade nas últimas páginas.

Não querendo privar da surpresa os potenciais leitores, regista-se apenas - sem mais pormenores - que os criminosos são os próprios polícias que procuraram a rapariga na noite do seu desaparecimento. De facto, e nisto Dicker é magistral ao denunciá-lo, a polícia nos Estados Unidos da América não merece muita confiança e recorrer a ela é, por vezes, um perigo.

O autor escalpeliza o puritanismo norte-americano, hipócrita e inquisitorial, a superstição religiosa, o tabu do sexo em geral e a falsa preocupação com a protecção sexual dos "menores", os meandros da actividade editorial e o primado da quantidade do lucro sobre a qualidade da escrita, a incessante invocação da necessidade de ghost-writers ou nègres para acelerar as publicações, a kafkiana máquina policial e judicial que condena inocentes pelas aparências, o papel da comunicação social, que sacrifica no altar das vendas a autenticidade da informação e que procede a julgamentos mediáticos para satisfação de uma opinião pública ávida de escândalos.

[Saliente-se, de passagem, que esta perversão dos media não é exclusiva da sociedade norte-americana. A Europa já foi há muito tempo contaminada e Portugal é um case study adequado.]

É evidente que para um suiço como Jöel Dicker não poderiam passar despercebidas as taras da América profunda (o cerne do conflito decorre na pequena cidade de Aurora, no New Hampshire) onde a cultura WASP, que a pérfida Albion exportou para o Novo Mundo, continua a provocar vítimas.

Em inesperadas reviravoltas, os falsos indícios sucedem-se como convém a um romance também policial mas sobretudo psicológico, por vezes muito divertido e obviamente culto. A caracterização das personagens é notável e a inter-relação das mesmas revela a maior perspicácia, ainda que em alguns casos, como por exemplo na relação entre Elijah Stern e Luther Caleb, uma autêntica trouvaille, se pudesse ter ido um pouco mais além.

Enfim, uma obra cuja leitura apetece recomendar.

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