sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

AS RELAÇÕES ENTRE PORTUGAL E A RÚSSIA, NO SÉCULO XVIII

Grande admirador da Rússia, o professor Rómulo de Carvalho (conhecido poeta sob o pseudónimo de António Gedeão) publicou em 1979 Relações entre Portugal e a Rússia no século XVIII, uma obra pioneiro no género.

Começa o autor por mencionar os primeiros portugueses que estiveram na Rússia (e de que há conhecimento), salientando a figura de António Manuel Luís Vieira, que foi convidado a ir para aquele país por Pedro, o Grande, quando tinha apenas quinze anos, quando o czar o conheceu em Amesterdão ou em Inglaterra, e a que nos referimos no livro comentado aqui.

O notável médico Ribeiro Sanches, um dos muitos portugueses que estiveram na Rússia durante o século XVIII, escreveu a um amigo, em 1733, dizendo: "Eu sou o segundo português que aqui se conhece." O outro seria naturalmente Vieira, sobre cuja vida Rómulo de Carvalho não conhecia ainda todos os pormenores constantes do livro acima citado. Todavia, estava Ribeiro Sanches mal informado, pois outros portugueses haviam já passado pela Rússia antes dele, como os abades Tomás da Silva de Avelar e Vicente de Oliveira Durão, dois dos muitos enviados de D. João V às cortes da Europa Central e da Rússia para observarem as cerimónias solenes aí desenroladas e lhes satisfazerem encomendas de livros, vestidos, jóias, mobílias, coches, quadros, etc. Passaram por Dantzig, Praga (onde Durão ficou), Dresden, Viena e finalmente Moscovo e São Petersburgo. Avelar tentou esquivar-se à ida à Rússia, receoso da viagem e do clima, mas acabou por aí de deslocar por ordem do monarca, tendo ficado seduzido pela forma como foi recebido.

Tomás da Silva Avelar chegou a Moscovo em 16 de Maio de 1724, na antevéspera da coroação de Catarina I como co-governante do Império Russo. Pedro morreria no ano seguinte. De Moscovo passou Avelar a São Petersburgo, sempre desvanecido com a forma como foi recebido. Nesta cidade, falou duas vezes com o czar e encontrou-se também com o citado António Vieira, que o levou a visitar vários lugares do Império Russo, tendo-se igualmente avistado com um judeu português chamado Costa, que vivia igualmente na capital. 

Avelar passou quatro meses na Rússia e aí redigiu o relatório da sua missão. Nas suas cartas para Lisboa refere-se ao infante D. Manuel, irmão de D. João V, que desde os 18 anos começou a viajar pela Europa, contra a vontade do rei, dissipando fortunas mas sendo sempre recebido com as maiores honrarias. «A primeira notícia que colhemos a tal respeito provém de uma carta do conhecido diplomata português D. Luís da Cunha, então na Haia, dirigida a Diogo de Mendonça Corte Real, em Lisboa, datada de 3 de Agosto de 1730, onde se lê: "A todos tem posto em grande coriozid.e a jurnada do S. Infante D. M.el a Moscovia se as gazetas não mentem como de ordinario acontece."» (p. 15) . Pelos vistos, D. Luís da Cunha, habitualmente bem informado, soube do caso pelas gazetas. Mas em 28 de Setembro, D. Luís da Cunha escreve outras carta ao mesmo destinatário: "Esta serve som.te de remeter a VS. a copia da carta do Duque de Liria em que refere os passos que o S.r Infante D. M.el fes em Muscou e o modo com que a Czarina o tratou até que se despidiu. Do objecto daquella visita se falla defferemtem.te."» (p. 15). Nas suas viagens, o Infante D. Manuel arquitectou sempre planos de casamento com damas de alta estirpe. No caso da sua viagem à Rússia, a intenção era a de conquistar a mão ainda disponível da imperatriz então reinante Ana Ivanovna.

A estada do infante verificou-se em 1730. Estranha-se que Ribeiro Sanches, que chegou à Rússia em 1731, desconhecesse completamente a visita do irmão de D. João V, que o levou a dizer ser ele o segundo português a visitar a Rússia, depois de António Manuel Luís Vieira.

António Manuel Ribeiro Sanches nasceu em Penamacor em 1699. Frequentou a Universidade de Coimbra e, depois, a de Salamanca, onde se doutorou em Medicina em 1724. Exerceu clínica em Portugal, na região de Benavente mas deixou o país pouco depois, talvez em 1726, não voltando a regressar à pátria. Não sabemos o motivo da sua saída mas presume-se que, devido a pertencer a uma família de cristãos-novos, tenha receado ser vítima das perseguições que então ocorriam. Outra hipótese é não se ter adaptado ao ambiente nacional da época no que respeitava ao exercício da profissão médica. Ou ambas as hipóteses, que se complementam. Deve notar-se que Ribeiro Sanches sempre se esforçou por convencer os seus contemporâneos de que era católico, assim o declarando por escrito. Justifica-se a declaração já que praticara o judaísmo e, com sinceridade interior ou sem ela, se apresentava agora como católico.

Tendo saído de Portugal, encontramos Ribeiro Sanches em Londres, em 1727, em Montpellier, em 1728, em Leiden, em 1730, cujas universidades frequentou, tendo assistido nesta última cidade às lições de Herman Boerhave, o mais afamado médico do seu tempo e que muito apreciava aquele estudante que até era já doutorado. E foi Boerhave que lhe sugeriu a ida para Moscovo, pois recebera um pedido de escolha de três médicos competentes. Sanches, que se dispunha a partir para Paris, reconsiderou , aceitou e assinou (3 de Julho de 1731) o contrato de serviço como médico na Rússia. Munido com uma carta de recomendação de Boerhave e sob a protecção do príncipe Kurakine, que fora embaixador da Rússia na Haia, e a quem D. Luís da Cunha, nosso embaixador na mesma cidade, a pedira, Sanches entrou na Rússia em Outubro de 1731, e aí se iria conservar durante dezasseis anos. 

Na supracitada carta de 1733, Sanches passou a exercer em Moscovo como "médico do senado e da cidade", com direito de praticar a medicina livremente. Em 1734 foi transferido para os serviços do exército, o que lhe provocou a mudança de residência de Moscovo para Petersburgo. Indica aos seus interlocutores que a correspondência deverá ser endereçada a "Monsieur António Ribeiro Sanches, Docteur en médecine au service de Sa Magesté Imperialle de toutes les Russies à S.t Peterburg". Sem mais. O serviço dos correios saberia encontrar o destinatário. E nesse cargo se manteve pelo menos até 1735. O prestígio que lhe permitiu a colocação nos serviços do exército impô-lo a toda a sociedade russa. Deve ter sido nessa altura que ingressou na Academia das Ciências de Petersburgo e foi por seu intermédio que essa Academia ofereceu à nossa Academia da História vários livros publicados pela sua congénere russa. A Academia de Petersburgo foi fundada em 1725 [em 1724 segundo outras fontes] por Pedro, o Grande, com as mesmas leis e imunidades que a de Paris, instituída por Luís XIV.

 Não foi longa a estada de Sanches em Petersburgo. Em 1735, sendo Ana Ivanovna, sobrinha de Pedro, o Grande, a nova imperatriz da Rússia, reacendeu-se a guerra entre a Rússia e a Turquia, e Sanches viu-se obrigado a participar como médico de campanha, tendo estabelecido uma série de medidas destinadas a tratar mais convenientemente os feridos em combate. Em 1736, durante o cerco de Azov, escreveu o Tratado da conservação da saúde dos povos, mais tarde publicado em Paris, em 1756. É muito interessante o seu comentário sobre a vantagem dos banhos de vapor.

«Durante a guerra russo-turca teve Ribeiro Sanches oportunidade de apreciar, com delongas, o uso que os soldados faziam dos banhos de vapor chamados "banhos russos". Certamente que Sanches já conhecia essa prática dos anos em que até aí vivera na Rússia, visto serem de uso corrente naquele império. Sanches teve, pela prática daqueles banhos, o maior dos entusiasmos considerando-os de resultados maravilhosos para a saúde a ponto de ter escrito, numa das muitas páginas que publicou sobre o assunto, que os banhos russos poderiam com vantagem substituir metade dos remédios da maioria das farmacopeias. A eles atribui a robustez que é comum aos soldados russos e que os torna aptos para todo os serviços que exigem esforços físicos, tanto na vida militar como civil.» (pp. 29-30)

«Já depois de ter saído da Rússia e de estar instalado em Paris, onde permaneceu até ao fim da sua vida, se entregou Ribeiro Sanches à tarefa de redigir um trabalho exclusivamente dedicado aos banhos russos com o propósito de universalizar o conhecimento de tal prática por intermédio da língua francesa. Esse trabalho foi lido, e possivelmente pelo autor, na sessão de 5 de Outubro de 1779 da Sociedade Real de Medicina de Paris e publicado nos seus anais.» (p. 32) 

«Na continuação apresenta-nos Ribeiro Sanches um conjunto de pormenores que ainda não dera em escritos anteriores e que merecem ser expostos. Refere-se aos lugares dos banhos, já não improvisados como em campanha mas em edifícios apropriados, destinados a banhos públicos e que eram construídos junto de ribeiros ou de lagos para os utentes aí mergulharem o corpo, ou nadarem, na fase final do banho. Compunham-se os edifícios de quatro ou cinco grandes salas. Começavam as pessoas por entrar na sala considerada como a primeira, e que deveria estar medianamente aquecida. Aí se despiam para ingressarem na sala seguinte que era a do banho de vapor de água. Esta sala, de forma circular, era construída de pedra de cantaria, paredes e chão, e coberta por uma cúpula envidraçada ao centro para lhe dar luz. As pessoas sentavam-se no meio da sala numa banqueta redonda chamada poloc, e aí ficavam expostas ao vapor de água. Este ascendia por tubos de ferro ou de cobre ao longo das paredes da sala e provinha de água aquecida num forno subterrâneo. As pessoas, sentadas na banqueta, suavam abundantemente e mantinham-se no lugar enquanto pudessem resistir, após o que passavam à sala seguinte onde recebiam um banho de água tépida. Aí um banheiro friccionava-lhes as articulações, lavava as pessoas e dirigia-as para nova sala onde recebiam então um banho de água fria, podendo mergulhar nela ou até mesmo nadar por alguns instantes. Finalmente enxugavam-se e vestiam-se.» (pp. 33-34)

«Como preceito geral não se deveriam utilizar os banhos senão depois de passadas quatro ou cinco horas sobre as refeições e nunca se devia beber água fria durante a fase do suadouro, como naturalmente apetecia, o que já tinha provocado vítimas entre os que não resistiam ao apetite.» (p. 34)  

Ribeiro Sanches deve ter exercido serviço médico na guerra russo-turca até à queda de Azov em 1736, a cujo cerco se refere, e deve ter regressado a Petersburgo nesse mesmo ano ou no ano seguinte, eventualmente por falta de saúde, já que a guerra se prolongou por mais três anos. Em 1737, foi nomeado médico do Corpo de Cadetes de Petersbugo, o colégio militar da nobreza russa.  Refere-se a esse Colégio em algumas das suas obras, nomeadamente em Cartas sobre a educação da mocidade, datadas de Paris, em 1759, já depois de ter saído da Rússia. Estas Cartas tiveram uma influência decisiva na criação do Colégio dos Nobres de Lisboa, que foi o prelúdio da reforma do ensino científico executado pelo marquês de Pombal. Sobre a sua actividade médica propriamente dita deixou-nos o Método para aprender e estudar Medicina, datado de Paris, de 26 de Março de 1761. 

Tendo chegado ao Império no tempo de Ana Ivanovna, que morreu em 1740, e que designou como herdeiro um filho de sua sobrinha Ana Leopoldovna, Ivan VI, Sanches foi nomeado médico do novo czar, então com escassos meses. A mãe assegurou a regência durante um ano, mas Ivan foi deposto por Isabel Petrovna, filha de Pedro, o Grande e de Catarina I, da qual Sanches também se tornou médico. Entre as pessoas da família imperial  foi também médico da futura imperatriz Catarina II. 

Um irlandês de nome Smith que fora contemporâneo de Sanches em Leiden e exercia agora a profissão na Guarda Imperial, apesar de ter havido em tempos relações de amizade entre ambos, talvez devido a algum desentendimento resolveu denunciá-lo por práticas judaicas na sinagoga de Amesterdão. 

«Admite-se que o ataque do irlandês Smith a Ribeiro Sanches tenha origem na má vontade, despeito ou inveja da pessoa que era então primeiro médico da imperatriz Isabel, a qual tinha Sanches por segundo médico. Esse primeiro, de nome Lestocq, fora cabeleireiro da imperatriz, e também cirurgião, função que no passado andava ligada à de barbeiro. Isabel deu-lhe o título de conde e fê-lo seu primeiro médico. É natural que no convívio forçoso dos dois médicos imperiais as relações se azedassem, e que Lestocq, servindo-se de Smith, por via travessa, procurasse desembaraçar-se de Sanches que muito provavelmente lhe faria sombra.»  (p. 42)

Não sabemos exactamente as razões pelas quais Ribeiro Sanches abandonou a Rússia em 1747, se constrangido ou de livre vontade. Em 26 de Novembro de 1748 a imperatriz Isabel mandou excluí-lo da Academia das Ciências de Petersburgo. Tinha então 48 anos e foi viver em Paris, com a saúde já debilitada pelo rigoroso clima russo. Todavia, Catarina II, a quem havia tratado em criança, não o esqueceu, e quando se tornou imperatriz concedeu-lhe uma pensão anual de mil rublos. E correspondeu-se até ao fim da sua vida com Ivan Ivanovitch Beckoj, um favorito da soberana que lhe solicitava pareceres. Talvez por isso, escreveu em Paris, em 1765, um estudo muito importante: Sur la culture des Sciences et des Beaux-Arts dans l'Empire de Russie, que enviou a Beckoj e cuja descrição não cabe neste texto. 

A lista geral das obras da autoria de Sanches foi publicada pelo médico francês Andry, fazendo parte do Catálogo dos livros que Sanches possuía e que foram a leilão, em 1783, após o seu falecimento. 

A própria Catarina II procurou, por intermédio de Beckoj, obter a biblioteca de Sanches, propondo-se adquiri-la pelo valor em que ele a avaliasse, e deixando-lhe o usufruto em vida, conforme é confirmado numa carta de Vicente de Sousa Coutinho, embaixador de Portugal em França, a Luís da Cunha Manuel, em Lisboa. Ignoramos a sequência desta tentativa, sabendo apenas que a biblioteca, composta de 1113 lotes, foi vendida num leilão em Paris, iniciado em 15 de Dezembro de 1783, logo após a morte do célebre médico.

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No que respeita às relações diplomáticas entre Portugal e a Rússia, deve dizer-se que o seu estabelecimento foi um processo moroso, exclusivamente por causa do nosso país. O primeiro passo para se promover a aproximação oficial entre os dois países data de 1724, mas a nomeação do primeiro embaixador português na Rússia, Francisco José de Horta Machado, é de 1778 (1779, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros). O nosso Ministério indica que anteriormente houve uma carta credencial para um ministro plenipotenciário, José de Nápoles Tello de Meneses, mas não menciona data. Mas desde o início do século XVIII, ou mesmo antes, houve uma insistência da Rússia para o estabelecimento de relações, até por razões de natureza comercial. As conversas decorriam entre os ministros de Portugal e da Rússia nas diversas cortes europeus onde estavam acreditados. Em 1724, o ministro russo em Copenhague, o conde de Ostreman propusera ao seu homólogo português que se fizessem "Inviaturas". Também por essa altura o ministro russo em Madrid, o barão de Stackelberg, abordou o assunto com Aires de Sá e Melo, nosso representante naquela Corte. A partir de 1733 desenvolveram-se conversas em Londres entre o nosso ministro Marco António de Azevedo Coutinho e o representante russo, o príncipe de Cantemir. Caído o assunto no esquecimento, só em 1751 o nosso embaixador em Londres, Joaquim José Fidalgo da Silveira, voltou ao assunto relatando para Lisboa a vontade do representante russo, o conde de Zernichef (presumivelmente Tchernichev), no estabelecimento de relações. Em 1755 é Luís da Cunha Manuel (sobrinho do célebre D. Luís da Cunha) que escreve de Londres ao futuro marquês de Pombal referindo uma conversa com Tchernichev que estava admirado de não haver desenvolvimento do assunto. Entretanto Luís da Cunha Manuel fora substituído em Londres por Martinho de Melo e Castro e Tchernichev pelo príncipe Golitsin. E é este, perfeitamente ao par das conversações anteriores, quem regressa ao assunto perante a total ignorância do nosso diplomata e quem lhe fornece um relatório das diligências anteriores. Mas continua a não haver qualquer interesse em Lisboa. Só em 1763, era já José de Sá Pereira nosso ministro em Londres e o conde de Voronzov ministro da Rússia, o qual já tinha visitado Lisboa, onde se avistara com o futuro marquês de Pombal, é que o assunto voltou a ser objecto de conversa, mas sem resultados práticos. Em 1769, Francisco de Melo e Carvalho, nosso representante em Copenhague pede instruções ao conde de Oeiras, pois fora abordado pelo ministro da Rússia naquela Corte, M.r Filosofov. Decorridos mais três anos, José Vasques da Cunha (irmão de Luís da Cunha Manuel) escreve da Haia, em 1772, dando conta das conversas tida com «Monsieur Zenoviov, cavalheiro russo, primo co-irmão do conde Orlov, favorito da tsarina que então já era, desde 1762, Catarina II. 

«Zenoviov vinha decidido  a resolver, de vez, o estabelecimento das nossas relações com a Rússia e informava, da parte de Catarina II, ter a soberana publicado um regulamento segundo o qual os nossos vinhos, desde que fossem transportados por conta de portugueses, pagariam direitos muito mais módicos do que os das outras nações; que desejava que se nomeassem reciprocamente, e sem demora, ministros residentes nas capitais dos dois países; que se procedesse à elaboração imediata de um tratado de comércio entre ambos; que a proposta fosse comunicada já ao governo de Lisboa "pedindolhe uma reposta categorica, e com brevidade."» (p. 63)

Sem esperar pela nomeação de um cônsul português em Petersburgo, Catarina II nomeia um cônsul em Lisboa. Consta na Chancelaria de D. José, com data de 26 de Março de 1770, uma "Carta de Comsul da Nasçaõ Russiana nesta Corte e Reino" em que se lê que " a CZARINA de Moscovia e Russia nomiou Comsul da sua Nassaõ na cid.e de Lxª e Porttos deste Reyno a Joaõ Antonio Borcher." [o apelido deve ser Borchers, segundo um requerimento deste na alfândega]. Vaasques da Cunha informa ainda que estivera em Lisboa um príncipe russo, de nome Michelski, que, ao regressar à Rússia interfira junto da imperatriz a favor de uma rápida aproximação comercial com Portugal. e que a soberana, entusiasmada, chegou a nomear um ministro para Lisboa, não se realizando entretanto a efectivação da sua vinda.

«A intervenção decidida do enviado Zenoviov, junto de Vasques da Cunha, pedindo uma resposta categórica e urgente às pretensões russas, parece ter forçado o Governo Português, ou seja o marquês de Pombal, a ocupar-se do assunto e a tentar dar-lhe uma solução em breve tempo. Assim de facto se procurou fazer, não pela via directa de dar poderes suficientes ao nosso representante para estudar uma proposta concreta em colaboração com o diplomata russo, trocando impressões com os respectivos governos de um lado e do outro, mas por um caminha surdo, tortuoso e cheio de mistério, que consistiu em procurar alguém que fosse à Rússia, disfarçado, colher informações e ouvir pessoas interessadas no processo.» (p. 65) A escolha recaiu em António Rangel Pereira de Sá, nosso ministro plenipotenciário em Copenhague, que se apresentou disfarçado em Petersburgo, o que caiu mal na Corte russa. Depois de demorados episódios, e sempre com as hesitações do marquês de Pombal,  Pereira de Sá foi nomeado ministro plenipotenciário de D. José junto de Catarina II, a fim de poder "negociar, ajustar e asinar qualquer Tratado, ou Tratados de Amizade, Commercio, e Navegação," em Petersburgo, conforme documento existente na Torre do Tombo. Mas, espantosamente, mais uma vez nada aconteceu. Em 1776 o marquês de Pombal escolheu , em Lisboa, alguém a quem teria convidado para ser nosso ministro na Rússia. Relata Horta Machado, num ofício, uma conversa tida na Haia com um russo cujo nome não menciona que quando saiu de Lisboa estava já nomeado um nosso representante. Nesse ofício a pessoa apontada como tendo sido escolhida para ministro não é indicada pelo nome mas apenas citada como "hum Tenente Irmaõ do Capitam da Guarda do marques de Pombal". A nomeação desagradou à Rússia, que não estava disposta a aceitar um tenente como representante de uma nação estrangeira. A notícia teria chegado a Petersburgo por informação de Borchers, o cônsul russo em Lisboa. Estava-se no fim do ano de 1776 e o tenente não chegou a ir à Rússia, tendo D. José morrido em Fevereiro do ano seguinte. O trono foi ocupado por D. Maria I e o marquês de Pombal afastado do poder.

«O novo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Aires de Sá e Melo (que aliás já fazia parte do governo anterior) compreendeu a urgência de se dar solução definitiva à representação diplomática portuguesa em Petersburgo,  e como naturalmente estaria a par do desagrado que a nomeação do tenente suscitara na corte russa, escreveu para o nosso embaixador em Londres, que era então Luís Pinto de Sousa Coutinho, pedindo-lhe que se informasse junto do seu colega russo se a imperatriz Catarina II ainda mantinha a disposição de nomear um ministro seu para Lisboa e de aceitar um nosso para Petersburgo.» (pp. 72-73) A resposta da imperatriz foi naturalmente positiva, manifestando os maiores desejos numa mútua correspondência.

Estando o caso posto nestes termos não havia tempo para mais delongas. Foi por isso nomeado nosso ministro na Rússia António Rangel Pereira de Sá, a quem estivera anteriormente confiada a missão de agente secreto para sondar o estabelecimento de relações. Mas ainda não foi desta vez que a situação se resolveu, pois o nomeado acabou por invocar razões de saúde (reais ou fictícias) para ocupar o lugar.

Decidido a resolver definitivamente o assunto, o Secretário de Estado indica então para o posto o nosso representante na Haia, Francisco José de Horta Machado, que viria a ser o primeiro embaixador de Portugal na Rússia, que é convidado para o lugar em 14 de Julho de 1778, mas só recebe de D. Maria I as credenciais oito meses mais tarde. Na sua correspondência, Horta Machado revela o esplendor da Corte russa e as deferências com que foi recebido pela Czarina e pelos altos dignitários. Em 11 de Janeiro de 1779,  Catarina II nomeou o conde Guilherme de Nesselrod como enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em Lisboa.

As relações comerciais com a Rússia, também desejáveis há muitos anos,  adquiriram expressão quando o negociante português, do Porto, Manuel Pinto de Paiva Garcês se abalança a viajar até à Rússia, em 1755, e começa a tratar da exportação dos nossos vinhos, e de outras mercadorias, sem a intervenção de terceiros, como acontecia até aí. 

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«Quando Horta Machado chegou a Petersburgo (1779) algumas potências europeias estavam em guerra. Três anos antes as colónias inglesas da América tinham proclamado a sua independência (4-VII-1776), o que obrigou os Governos das outras nações a declararem a atitude , de aceitação ou de repúdio, que tomariam em presença do novo Estado. A Inglaterra não aceitou aquela independência e dispôs-se à luta; a França e a Espanha, regozijadas com o enfraquecimento que a nova situação criava na soberania marítima dos ingleses, apoiaram os americanos. Uma consequência imediata da independência foi o encerramento dos ports britânicos a toda a navegação americana, enquanto a França e a Espanha a permitiam e facilitavam. Portugal, obrigado a definir uma atitude seguiu as conveniências do seu velho aliado inglês, e o marquês de Pombal já em vésperas de terminar a sua vida política, mandou fechar os nossos portos aos navios americanos. Debalde, Benjamin Franklin, o célebre físico que viera à Europa como diplomata da jovem nação, escrevia de Paris ao Governo Português, já então com D. Maria I, para que a ordem fosse revogada. A situação, era para nós, de muita delicadeza porque a Inglaterra dispunha dos nossos portos como se fossem seus [comentário meu: a aliança luso-britânica, considerada a mais antiga da História, foi utilizada pelos ingleses sempre que lhes foi conveniente mas nunca houve reciprocidade de tratamento. Mesmo quando as tropas britânicas vieram a Portugal para combater as invasões francesas foi porque isso era conveniente para a Inglaterra e foi um problema para se retirarem. E quando Salazar invocou a aliança aquando da invasão indiana de Goa, os ingleses apresentaram razões para rejeitarem o pedido], e em particular do porto de Lisboa que lhe servia de base de operações e onde estacionava, normalmente, uma sua divisão naval. Os barcos ingleses perseguiam, atacavam e aprisionavam navios franceses e traziam-nos para o porto da nossa capital. Os protestos dos atacados acumulavam-se e Portugal expunha-se a ser vítima de graves represálias. A guerra dos mares trazia prejuízos não só às nações beligerantes como às neutras que viam dificultadas as trocas das suas mercadorias, e como se tratava de uma actividade vital tornou-se urgente institucionalizar um sistema que facultasse as vias marítimas ao movimento dos navios neutros. A propostas veio da Rússia e consistiu no princípio de que "a bandeira cobre a mercadoria", ou seja, a bandeira do navio do pais neutro garante que a mercadoria transportada não é contrabando bélico e, portanto, pode seguir a sua rota. Os navios nessas condições poderiam entrar e sair livremente dos portos das nações que estavam em guerra.» (pp. 87-88)

Assim, Catarina II propôs aos países beligerantes e neutros a assinatura de um Tratado a que chamou "de Neutralidade Armada", que foi aceite pelos neutros e também pela Espanha e França e naturalmente pela Rússia mas que foi rejeitado pela Inglaterra, e também por Portugal. Nesselrod chegou a Lisboa a 4 de Junho de 1780 e teve audiência régia no dia 10 para apresentação de credenciais. Exprimiu a D. Maria I o interesse de Catarina II no estabelecimento do Tratado de Neutralidade Armada. Mas a resposta portuguesa foi negativa. Entretanto a Dinamarca e a Noruega tinham aceitado a proposta da imperatriz, que pretendia igualmente marcar a presença da Rússia como potência marítima. Em meados de 1780 saiu de Cronstadt uma frota de guerra a qual se deveria dividir em três esquadras que iriam operar no mar do Norte, no Mediterrâneo e em Lisboa. O ministro plenipotenciário russo avisa o Secretário de Estado e pede que os barcos sejam recebidos amigavelmente. A esquadra entrou em Lisboa em Setembro de 1780, possivelmente a primeira a demandar tal porto. Compunha-se de seis navios de guerra e era comandada pelo contra-almirante Ivan Borissov. O número de seis correspondia exactamente ao limite permitido à presença de navios estrangeiros no porto de Lisboa, por nacionalidade. Havia mais barcos que ficaram ao largo, possivelmente por essa razão, mas foram passando a barra e entrando pouco a pouco. Os navios acabaram por ser doze e deixaram o porto de Lisboa em Outubro. Houve um operário português que partiu a cabeça a um marinheiro russo, por uma futilidade, o que provocou o desagrado do almirante, agravado por não ter sido dada uma salva à saída, para ele poder corresponder à saudação. Mais tarde entrou uma segunda esquadra e o governo português manifestou-se desvanecido pela correção do comportamento da equipagem durante a estadia. Também os russos ficaram encantados com esta segunda visita, e com os convites recebidos em Lisboa, e o comandante da frota, Palibin, ofereceu no regresso uma grande recepção ao ministro português em Petersburgo. 

Quanto ao tratado de Neutralidade caiu por um tempo no esquecimento, até porque o que na verdade nos interessava era o tão falado Tratado de Comércio. A imperatriz nomeou uma comissão ministerial para o efeito, o que assustou D. Maria I, que recorreu ao nosso ministro em Londres, Luís Pinto de Sousa, para saber o que ele pensava acerca dos dois Tratados. Pinto de Sousa respondeu que não havia qualquer relação entre os dois Tratados.

«Entretanto os reveses sofridos pelos ingleses na guerra desencadeada pela declaração da Independência dos Estados Unidos permitiam prever uma paz próxima, o que viria dar alívio á nossa precária situação perante os acontecimentos. Pouco tempo depois [...], em Maio de 1782, ano em que a Inglaterra reconheceu a independência americana, Aires de Sá comunica ao embaixador da Rússia em Portugal, Nesselrod, que a rainha resolvera aceder à convenção da Neutralidade Armada e que iria partir para Petersburgo um emissário com as condições portuguesas para a redacção dos dois Tratados, o da Neutralidade e o de Comércio.» (p. 97)

O "Acto de Accessão de neutralidade armada" foi assinado em Petersburgo em "13 de Julho, velho estilo, q corresponde aos 24 do mesmo mez, segundo o nosso modo de contar", subscrevendo pelo lado russo o conde João de Ostermann, vice-chanceler, o major-general Alexandre de Bezborodko e o conselheiro de Estado Pedro Bacounin, e pelo lado português o nosso ministro plenipotenciário Francisco José de Horta Machado.

Por razões diversos o Tratado de Comércio foi protelado mas finalmente assinado em 20 de Dezembro de 1787, sendo signatários pelo lado da Rússia o conde de Ostermann, o conselheiro privado conde Alexandre de Woronzow, o primeiro mordomo da Corte conde Alexandre de Bezborodko e o conselheiro de Estado Arcádi de Morcoff.

«O cumprimento das determinações expressas no Tratado de Comércio exigia a criação de consulados e de vice-consulados nos territórios português e russo, pois é a essas instituições que compete proteger o comércio e a navegação dos países que representam, assim como quaisquer interesses dos naturais desses países no estrangeiro. Como, porém, já se vinham efectuando trocas comerciais entre Portugal e a Rússia desde anos muito anteriores ao da assinatura do Tratado, já se considerara, em devido tempo, a necessidade da criação desses consulados cujo estabelecimento é autorizado pelo artigo IV do referido Tratado. Este é de 1787; o estabelecimento do consulado da Rússia em Lisboa é de 1770. O primeiro cônsul português na Rússia só foi nomeado onze anos depois da nomeação do cônsul da Rússia em Portugal: este para Lisboa, aquele para Petersburgo.» (pp. 106-107)

Em 1781 foi nomeado "Consul Geral da Naçaõ Portugueza nos Dominios do dito Imperio, Cidade de S. Petersburgo, e mais Portos Maritimos dos referidos Estados" José Pedro Celestino Velho, negociante do Porto. A nomeação de um vice-cônsul em Petersburgo só foi efectuada três anos e meio depois da chegada de Celestino Velho, em 1784, e coube também a um portuense, Miguel Setaro, que já se encontrava na Rússia desde 1781. Quando Celestino Velho deixou o lugar de cônsul para se entregar a outras ocupações, Setaro foi nomeado cônsul em sua substituição. 

«Além do consulado português em Petersburgo só colhemos notícias de outros dois, no século XVIII, até à data limite deste nosso estudo, um em Riga e outro em Cronstadt, este indicado num documento como vice-consulado, e aquele, noutro documento, como consulado.» (p. 109) 

O primeiro cônsul em Riga foi José Severim, nomeado em 1789, e que já vivia na Rússia, que faleceu no ano seguinte. Foi substituído por Venceslau Teodoro Glama, em 1791. O primeiro cônsul português em Cronstadt foi Francisco José Pereira. 

O primeiro embaixador russo no nosso país, o conde Nesselrod, que chegara em 1780, pediu a demissão em 1785, pelo facto de ter enviuvado. Foi substituído provisoriamente por Henri Forssman. Havendo muitos pretendentes russos à Enviatura de Portugal, só foi escolhido um novo representante em finais de 1789, tendo recaído a escolha no conde de Rechteren de Borgbeuningen, que fora, durante anos, ministro plenipotenciário dos Países Baixos na Rússia e se resolveu a oferecer os seus serviços a Catarina II. Chegou a Lisboa em 1791. O cônsul da Rússia em Lisboa, Jean Antoine Borchers manteve-se em funções de 1770 até 1795, ano em que morreu.  Sucedeu-lhe André Dubstchévski, nomeado em 1799. Houve um cônsul russo no Porto, Pedro Vanzeller, nomeado por Catarina II em 1795; e um vice-cônsul em Setúbal, Jacob Frederico Portade.

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O livro aborda depois os estabelecimentos portugueses na Rússia e o movimento comercial entre Portugal e a Rússia, aspectos que omitiremos para não alongar este texto.

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Ribeiro Sanches, a quem já nos referimos, não foi o único português nomeado para a Academia das Ciências de Petersburgo. Pelo menos um outro português, João Jacinto de Magalhães, cientista de mérito, correspondente de várias academias, internacionalmente reconhecido no século XVIII, também pertenceu a essa instituição. Existe uma carta de Jean-Albert Euler, filho do famoso matemático suíço Leonardo Euler, endereçada a Monsieur de Magellan [como Magalhães era conhecido] Gentil-Homme Portugais Membre de l'Academie Imperiale des Sciences de Saint-Pétersbourg. Tal como Ribeiro Sanches, recebiam ambos pensões da Academia, o primeiro 1 000 rublos, Magalhães 290 rublos.

Dado o entusiasmo verificado no século XVIII pelo estudo de animais, plantas e minerais, começaram a organizar-se gabinetes de história natural. E a proceder-se a intercâmbio entre diversos países. Sendo o príncipe herdeiro D. João (futuro D. João VI) um interessado na matéria, o nosso embaixador na Rússia Horta Machado remeteu para o seu gabinete museológico diversos caixotes com minerais, exemplares de mamíferos e aves, e numerosos livros. O conde de Cheremetiev ofereceu um lince e o marechal-general Razoumovski um lobo. 

Além do gabinete do príncipe também foi contemplada a Ordem Terceira de São Francisco, instalada no Convento de Jesus, em Lisboa.  O Primeiro Geral, o franciscano José Mayne, promoveu a craição de um museu de história natural no convento. Vivia então no Porto um homem de negócios chamado Nicolau Kopke, de origem hamburguesa, aparentado com José Severim que vivia na Rússia, possivelmente aquele que foi o primeiro cônsul de Portugal em Riga. Mayne, que conhecia Kopke, pediu-lhe o envio de alguns exemplares para o seu museu, tendo Severim enviado caixotes com pássaros e animais secos, minerais do Cáucaso e da Sibéria, etc. 

«Ainda de acordo com o entusiasmo pela observação e estudo da Natureza planeou-se, na Rússia, sob os auspícios de Catarina II, a redacção de uma obra que envolvesse o estudo de todas as plantas daquele império. A obra foi encomendada a um naturalista alemão, residente na Rússia, sócio da Academia das Ciências de Petersburgo, de nome Pallas, e divulgada a sua projectada publicação por intermédio dos embaixadores das várias cortes naquela cidade. Para o efeito foi mandado imprimir um prospecto de quatro páginas, redigido em francês, com o título Annonce d'ouvrage botanique sur les Arbres, Arbustes et Plantes de l'Empire de Russie, qui sera publié par ordre et sous les auspices de Sa Majesté Impériale. O prospecto, assim realizado e distribuído segundo as normas modernas da propaganda editorial, foi enviado por Horta Machado, para Portugal, em 1782, e dele existe um exemplar no Arquivo da Torre do Tombo.» (p. 168)

«A propaganda fora feita com fins culturais porque a obra, Flora Rossica, em dois volumes, paga pelo Estado russo, só se destinava a ofertas. Do primeiro volume, saído em 1787, vieram para Portugal quatro exemplares, destinados ao príncipe regente (futuro D. João VI), ao Secretário de Estado Melo e Castro, à Biblioteca da Universidade de Coimbra e à Academia das Ciências. O segundo volume da mesma obra saiu em 1789 e dele também vieram exemplares para Portugal.» (p. 168)

Também Catarina II encomendou ao naturalista Pallas, que devia abarcar vários ramos do conhecimento, a organização de um Dicionários dos vocábulos de todas as línguas e dialectos que existem no mundo, Para este fim, Pallas deve ter-se socorrido dos embaixadores das várias cortes acreditadas em Petersburgo, incluindo Horta Machado que solicitou elementos  a Melo e Castro. O Dicionário Universal começou a imprimir-se na Rússia em 1787, e dele dizia Horta Machado que "pode ser que deste grande trabalho venha a conseguir-se alguma ideya da existência de huma lingôa May de todas as que hoje se falaõ, e que inutilmente até agora tem buscado muitos Escriptores."» (p. 169)

«Além dos portugueses que faziam parte do pessoal da nossa embaixada na Rússia e dos comerciantes que nesse país se estabeleceram, vários outros, por motivos diversos, se deslocaram até àquele longínquo império com permanência mais ou menos demorada, durante o século XVIII. Ao todo, desde António Manuel Luís Vieira até ao fim do século, tivemos notícia de cerca de quarenta portugueses que se demoraram na Rússia, sem falar nas tripulações dos navios que aí aportaram.» (p. 170)

Entre esses portugueses deve mencionar-se um fidalgo, Caetano José Correia Botelho de Mendonça Furtado Teixeira, que saíra de Portugal por motivos não declarados e que mais tarde pretendia regressar. De Portugal foi respondido a Horta Machado, que se interessara pelo seu caso (estava sem dinheiro e cheio de dívidas), que se D. Caetano estava "no Serviço Militar Russiano, fará muito bem em ficar nelle." Sabemos que, dez anos depois, em 1789, ainda se encontrava na Rússia.

Outra figura militar notável que combateu em solo russo foi o oficial Gomes Freire de Andrade, a primeira vez, ao serviço de Catarina II, alistando-se no seu exército para combater os turco na guerra de 1788-1791, a segunda vez, contra a Rússia, em 1812, fazendo parte das tropas napoleónicas invasoras desse império. Gomes Freire foi apresentado à imperatriz e a toda a família imperial e governo em 20 de Julho de 1788. Manifestou então o desejo de ingressar no exército do príncipe Potemkine. Em 1789 foi condecorado pela imperatriz com a Ordem Militar de São Jorge, a qual lhe mandou entregar em 1790, pelo príncipe de Nassau, uma espada de ouro com a inscrição "Pelo seu valor". 

Outro oficial português que combateu na Rússia foi Manuel Inácio Martins Pamplona Corte-Real, mais tarde conde de Subserra e ministro de D. João VI. Esteve a primeira vez ao serviço de Catarina II e a segunda vez ao serviço de Napoleão. 

Há ainda notícia do português José Sanches de Brito, capitão de mar e guerra, presumível autor da obra crítica da vida portuguesa, publicada anonimamente, com o título O piolho viajante. [Verifico que João Palma-Ferreira atribuiu a autoria a António Manuel Policarpo da Silva.]

O português mais notável que esteve na Rússia no século XVIII foi D. João Carlos de Bragança, 2º Duque de Lafões, fundador da Academia das Ciências de Lisboa e homem que viajou por toda a Europa. A sua presença na Rússia data de 1774, anterior à chegada do nosso primeiro ministro plenipotenciário. 

O poeta russo Sumarokov, em 1774 dedicou-lhe um poema intitulado "Ao duque de Bragança", lapso pelo facto de ser Bragança o duque de Lafões. Escreve Sumarokov: "O Sol que ilumina a Rússia é o mesmo que ilumina Portugal, e russos e portugueses são tudo homens com cabeça, pés e mãos e almas semelhantes. O que qualifica os homens, incluindo os poetas (e a propósito cita Camões, entre outros), não é o clima como algum sábio poderia afirmar, mas a sua cultura, a sua educação, as suas virtudes."

D. João de Bragança só regressou a Portugal depois de o ministro de D. José ter sido destituído do poder e foi nessa altura nomeado por D. Maria I Governador das Armas da Corte e Província da Estremadura. 

«Quanto a personalidades russas que tivessem estado em Portugal no século XVIII, sem falar nos representantes diplomáticos e na guarnição das esquadras que vieram ao Tejo, tomámos conhecimento de três a respeito dos quais não conseguimos informações quanto aos motivos que os teriam trazido até nós e dos passos que entre nós teriam dado. Um deles foi o conde de Voronzov, ministro plenipotenciário da Rússia na Inglaterra, que esteve em Lisboa em data anterior a 1763 e aqui se avistou com o marquês de Pombal; outro foi o príncipe Michelski, talvez em 1767 admitindo que a pessoa que escreveu a carta de quem extraímos a notícia trocasse os dois algarismos finais do ano em causa pois escreveu 1776 quando a carta é de 1771. A terceira personalidade russa em Lisboa, segundo o que apurámos, foi o príncipe Yossopof, a quem o marquês de Pombal se refere em carta escrita ao reitor  da Universidade de Coimbra em 6-VI-1776, nos seguintes termos: "Passando a esta Corte o Príncipe Yossopof se recolhe para a Rússia sua Patria. Aqui o tratei, e o achei muito digno de toda a estimaçaõ naõ só pelas suas qualidades, mas taõ bem pela sua boa instrucçaõ, e civilidade: Com estes motivos o recomendo a V. Exª: Previnindo-lhe, que ainda que no recebimento delle não deva haver algum ceremonial; sempre V. Exª o fará tratar com toda a attençaõ: Mandando-lhe mostrar tudo que nessa Universidade he notavel sem reserva alguma; e fazendo-o acompanhar para esse effeito pelas Pessoas, que a V. Exª parecerem mais proprias, e ceviz, e que bem se expliquem na lingua Franceza, afim de que o mesmo Príncipe possa na sua Patria especializar a attençaõ com que foi hospedado, e tratado nas Terras mais notaveis destes Reinos, assim como o foi nesta Corte".» (pp. 176-177)

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A obra inclui em apêndice 35 documentos citados no texto. 

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O livro Relações entre Portugal e a Rússia no século XVIII constitui uma notável contribuição para o estudo das nossas relações com a Rússia naquele período, pela pena de um erudito investigador, homem amante da Rússia, poeta notável e professor de elevado mérito.

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O último ministro plenipotenciário português no Império Russo foi Jaime Batalha Reis, que deixou São Petersburgo em 1918.

O Estado Novo nunca manteve relações diplomáticas com a União Soviética, embora não tivesse cortado relações com Cuba quando Fidel Castro assumiu o poder em 1959.

A III República Portuguesa estabeleceu relações com a União Soviética em 1974, sendo nomeado embaixador Mário Viçoso Neves. O nosso último embaixador na URSS foi Sérgio Ayres Trindade de Sacadura Cabral, que esteve no posto até 1990.

Ainda em 1990 foi nomeado um embaixador na Federação Russa, António Leal da Costa Lobo. O nosso atual embaixador em Moscovo é Sara Feronha Martins, que apresentou credenciais em 2025. 

 

 

sábado, 6 de dezembro de 2025

Shirley Verrett "O don fatale" Don Carlo

A HORA DOS PREDADORES

No título original, L'heure des prédateurs (2025), em português, A hora dos predadores é o último livro de Giuliano da Empoli (n. 1973). uma curiosa incursão nos meandros das vidas dos decisores políticos, e técnicos, da hora actual.

Trata-se de um livro breve, escrito talvez apressadamente, abordando aleatoriamente os temas e as circunstâncias, quiçá pretensioso e sem a estrutura consistente da sua obra anterior, O Mago do Kremlin (2022), que o tornou famoso, lhe valeu o Grande Prémio do Romance da Academia Francesa e que comentámos aqui. Mas nem por isso a sua leitura é despicienda.

Começa o autor por evocar a queda do Império Azteca às mãos dos espanhóis, devido à hesitação de Montezuma, comparando o comportamento dos responsáveis políticos das democracias ocidentais aos aztecas do século XVI que careciam da tecnologia de Cortés.

Limitemo-nos a alguns comentários. 

O livro refere várias situações e personagens, situações que o autor presenciou e personagens com quem contactou, de perto ou de longe, com especial destaque para Trump, Putin, Netanyahu, Arafat, Macron ou Zelensky. Descreve com pormenor a decisão de Mohammed bin Salman (MBS), príncipe herdeiro da Arábia Saudita, que num golpe genial, mandou prender no Hotel Ritz.Carlton de Riad algumas das personalidades mais importantes do Reino, o que lhe permitiu que o Estado Saudita recuperasse mais de cem mil milhões de dólares. E a presença na Assembleia Geral das Nações Unidas do presidente Nayib Bukele, de El Salvador, que mandou prender oitenta mil pessoas pelo facto de estarem tatuadas e que foram consideradas como perigosos criminosos. Também é devidamente mencionado o regresso de Donald Trump à Casa Branca, com a sua corte de empresários. Estes novos dirigentes, a que o autor chama borgianos, a partir de Maquiavel, que está omnipresente na narrativa, «concentram-se no fundo, não na forma. Eles prometem resolver os problemas reais do povo: a criminalidade, a imigração, o custo de vida. E o que respondem os seus adversários, os liberais, os progressistas, os gentis democratas? Regras, democracia em perigo, protecção de minorias...» (p. 67)  [Temos ouvido isto recentemente entre nós]. 

O perigo das novas tecnologias é devidamente enfatizado, a pretexto da reunião de Setembro de 2024, em Montreal, patrocinada por Justin Trudeau com a presença dos cérebros da inteligência artificial.

«Até aqui, as elites económicas, os actores da finança, os empresários e os dirigentes das grandes empresas apoiaram-se numa classe política de tecnocratas - ou de aspirantes a tecnocratas - de direita e de esquerda. moderados, enfadonhos, mais ou menos indiferenciados, que governavam os seus países com base nos princípios da democracia liberal, de acordo com as regras do mercado, por vezes temperadas por considerações sociais. Era o consenso de Davos. Um lugar onde as pistas azuis, gentilmente balizadas pelos limpa-neves, haviam substituído as convulsões desmesuradas de A Montanha Mágica.» (p. 90)

««Na hora dos predadores, esse equilíbrio rebentou. As novas elites tecnológicas, os Musks e os Zuckerbergs, nada têm a ver com os tecnocratas de Davos. A filosofia de vida deles não se baseia na gestão competente do que existe, mas antes numa sagrada vontade de semear a confusão. A ordem, a prudência, o respeito pelas regras são considerados anátema por aqueles que aprenderam a andar depressa e partindo as coisas, segundo o lema do Facebook.» (p. 91)

O livro explica também como, por aplicação de engenharia informática, Barack Obama conseguiu ser reeleito presidente dos Estados Unidos em 2012, por «51% dos votos, menos três milhões e meio do que na vez anterior, mas estrategicamente distribuídos de maneira a permitir-lhe conquistar a maioria dos eleitores. Se a vitória de 2008 foi de natureza política, a de 2012 é essencialmente técnica.» (p. 95)

«O grande dilema que estruturou a política no século XX é a relação entre o Estado e o mercado: que parte da nossa vida e do funcionamento da nossa sociedade deve estar sob o controlo do Estado e que parte deve ser deixada ao mercado e à sociedade civil? No século XXI, a clivagem decisiva passa a ser entre o humano e a máquina. Em que medida as nossas vidas devem estar sujeitas a poderosos sistemas digitais - e em que condições? No fim de contas, os indivíduos e as sociedades terão de decidir quais os aspectos da vida a reservar para a inteligência humana e quais os aspectos a confiar à IA ou à colaboração entre o homem e a IA. E sempre que eles escolherem privilegiar o humano, quando uma IA pudesse ter garantido resultados mais eficazes, haverá um preço a pagar.» (pp. 107-108)

«O verdadeiro romance de antecipação sobre a IA é O Processo, de Kafka, no qual ninguém compreende o que se passa, nem o acusado, nem mesmo os juízes que o indiciaram, e ainda assim os acontecimentos seguem o seu curso inexorável. No outro grande romance de Kafka, quando ele tenta concentrar-se no centro de poder que lhe controla o destino, sem nunca ter acesso a ele nem obter de lá a menor luz, o olhar de K, o protagonista, "desliza sobre o Castelo, sem poder fixar-se em nada". E quando tenta telefonar, do outro lado da linha ouve apenas um canto de vozes distantes ou, do lado oposto, uma voz severa e orgulhosa que recusa dar-lhe a menor explicação. Para alguns, o Castelo já lá está. Quando dizemos que o futuro está entre nós, mas que está distribuído de maneira desigual, geralmente queremos dizer que os privilegiados já têm acesso às tecnologias do futuro, enquanto os outros ficam para trás. No caso que nos ocupa, a situação é inversa. O Castelo, por enquanto, é apenas uma hipótese para as classes abastadas, enquanto já é uma realidade para os que estão na base da escala. O pessoal das entregas, por exemplo, praticamente já não tem nenhum contacto com um ser humano no decurso do seu trabalho. O único interlocutor deles é uma aplicação que trazem no telemóvel. É ela que lhes atribui as tarefas a efectuar, é ela que os orienta no seu trabalho, é ela que lhes avalia o desempenho, segundo uma lógica que às vezes parece compreensível e depois, de repente, impenetrável. Se alguma coisa não corre bem, se a pessoa que faz a entrega é confrontada com um acontecimento imprevisto ou se o mecanismo emperra, não há ninguém a quem recorrer. A aplicação tira as suas conclusões e emite o seu juízo. O bom senso e a sensibilidade de um ser humano foram deliberadamente postos de lado. Na melhor das hipóteses, pode dirigir-se, por formalidade, a um centro de recursos localizado a milhares de quilómetros de distância, onde, após uma longa espera, encontrará o conforto de um ser humano tão desprovido de poder quanto ele.» (pp. 114-115-116)

Quando passa dos comentários sobre acontecimentos concretos à evocação de situações gerais e abstractas, o livro assume uma dimensão relevante. Giuliano da Empoli obriga-nos a encarar, de olhos bem abertos, o admirável mundo novo que nos espera. O mundo tem subsistido a grandes choques tecnológicos ao longo da História. Mas a ciência e a técnica tinham-se unido para ajudar o homem a vencer dificuldades. Agora, o desafio é outro: a IA propõe-se substituir o próprio homem! Consegui-lo-á? É o homem uma paixão inútil, como em tempos escreveu Sartre? Mas não é ele, segundo as religiões, o centro da Criação? E onde fica então Deus se é inútil a Criatura criada pelo Criador?

O autor não responde a estas perguntas. Eu também não. 


domingo, 16 de novembro de 2025

A ACADEMIA FRANCESA (À L'IMMORTALITÉ)

Li recentemente Des siècles d'immortalité- L'Académie française 1635-..., de Hélène Carrère d'Encausse, editado em 2011.

Sendo a mais recente obra publicada sobre a Academia Francesa, este livro constitui um valioso instrumento de trabalho, só possível devido à dedicação de Hélène Carrère d'Encausse (1929-2023), que foi titular da 14ª Cadeira da Academia (1990-2023) e seu Secretário perpétuo desde 1999/2000 até à sua morte.

A autora procede à descrição dos acontecimentos que conduziram à criação da Academia em 1635, pelo Cardeal-Duque de Richelieu e relata-nos a história da venerável instituição, que atravessou com majestosa dignidade (o termo "majestosa" é apropriado, já que o Rei de França era o protector oficial da Academia, tradição prosseguida com os presidentes depois da proclamação da República) tempos muito difíceis, aos quais sobreviveu até aos nossos dias. 

Cardeal-Duque de Richelieu    

Nem sempre a relação com o protector foi pacífica, mas a Academia soube manter tradicionalmente a sua independência (usando por vezes engenhosos expedientes), raras vezes se submetendo, apenas  in extremis, à vontade dos monarcas ou até dos presidentes.

No início, tiveram nela assento preferencialmente os nobres e os clérigos, mas a Academia abriu-se pouco a pouco aos novos tempos, com o Século das Luzes, admitindo Montesquieu (1728), Voltaire (1746) e D'Alembert (1754): foi a entrada dos "filósofos" naquele templo, especialmente consagrado, segundo a vontade de Richelieu, à preservação da língua francesa.

Um certo "progressismo" na Academia com o chamado "reino dos filósofos" não impediu todavia que ela viesse a sofrer as consequências do radicalismo da Revolução Francesa. Expulsa do Louvre, onde estava sediada desde Luís XIV, depois das reuniões iniciais em salões particulares, a Academia a acabou por ser extinta (bem como as demais academias) pela Convenção, em 8 de Agosto de1793. Deve-se ao Abade Morellet a odisseia de ter conseguido salvar uma parte do seu espólio literário. 

Não gostava a Convenção da Academia Francesa, e das outras academias, tidas por demasiado próximas do poder real, embora não ignorasse a necessidade de se estabelecer um "plano de organização de uma sociedade destinada ao progresso das Ciências e das Artes". Mas a palavra Letras foi omissa. Escreve a autora: «La Constitution de l'an III, datée du 3 fructidor (22 août 1795), reprit, dans son article 298, l'idée de cette société, et le 3 brumaire an IV (25 octobre 1795), la Convention, en se séparant, entendu dans une de ses dernières séances le rapport de Daunou: "Nous avons emprunté de Talleyrand et Condorcet le plan d'un Institut national, idée grande et majestueuse dont l'exécution doit effacer en splendeur toutes les académies des rois."». Mas como se anteviu na altura, as Letras foram o parente pobre do "monde savant".

Os começos do Instituto confundem-se com os do Directório. A história do restabelecimento das academias no Instituto é detalhadamente descrita no livro com um pormenor que não cabe neste texto. A "Academia Francesa" ficou numa classe secundária do Instituto. Os académicos que restavam tentaram interessar o general Bonaparte, e depois o imperador Napoleão, no restabelecimento de pleno direito da Academia, mas debalde. Por ter reorganizado o Institut em 1803, Napoleão manteve-se avesso à ideia de uma "Academia" autónoma que desautorizaria o seu próprio projecto inicial. Só com a restauração da monarquia, a Academia Francesa voltou a existir de pleno direito com Luís XVIII, em 21 de Março de 1816.

[Abro um parêntese para referir que o Institut de France, na sequência da reorganização napoleónica, conta hoje cinco academias: Academia Francesa, Academia das Inscrições e Belas-Letras, Academia das Ciências, Academia das Belas Artes e Academia das Ciências Morais e Políticas.]

Hélène Carrère d'Encausse


A Academia atravessou, sem problemas significativos, a Restauração, a Monarquia de Julho, a Segunda República, o Segundo Império e a Terceira República. Foi a grande época do Romantismo, com a admissão de Victor Hugo para a 14ª Cadeira em 1841. Também entraram na Academia os presidentes da República Adolphe Thiers (1833) e Raymond Poincaré (1909) e especialmente os marechais de França: Hubert Lyautey (1912), Joseph Joffre (1918), Ferdinand Foch (1918), Philippe Pétain (1929) e Franchet d'Espèray (1934). E Maxime Weigand (que era apenas general), em 1931. Entre os civis, contam-se Pierre Loti (1891), Henri Bergson (1914), Georges Clemenceau (1918), Paul Valéry (1925), Abel Hermant (1927), Abel Bonnard (1932), François Mauriac (1933), Georges Duhamel (1935), André Maurois (1938), Charles Maurras (1938).

A derrota da França na Segunda Guerra Mundial abriu uma nova crise na Academia. O período do Regime de Vichy foi uma época difícil, tanto mais porque o marechal Pétain era académico e, como "chefe do Estado", era o protector natural da instituição. Todavia, o marechal não se imiscuiu nos assuntos internos da Academia.

No pós-guerra a existência da Academia voltou a estar em perigo. Louis Aragon e Elsa Triolet haviam fundado o Comité national des écrivains (CNE), dominado pelos comunistas e mesmo o Front national, criado pelo Partido Comunista Francês em 1941, havia atraído muitos intelectuais não comunistas. O próprio François Mauriac tinha-se juntado ao CNE e ao Front national.

«Dans L'Aube, un article virulent réclame, en ces jours de liesse, "la dissolution de l'Académie". C'est un propos que l'on entend beaucoup au sein du CNE. L'été 1944 où commença l'épuration est marqué par la volonté des têtes d'affiche du nouveau pouvoir intellectuel, largement communistes, de faire table rase des gloires établies et des institutions; l'Académie française est par là doublement visée. Elle se sait vulnérable, compte tenu de la place qu'ont occupé dans l'État français deux de ses membres: le maréchal Pétain et Abel Bonnard. Le général Weigand, bien qu'il est été arrêté par les Allemands lors de l'invasion de la zone libre, et déporté, fait aussi partie, en ces temps où le statut de collaborateur est largement accordé, de la cohorte des académiciens que les nouvelles instances dénoncent avec fureur et pour qui elles exigent un châtiment.» (pp. 295-296)

Em 31 de Agosto de 1944, a Academia realiza uma sessão com a presença de apenas onze membros, entre os quais Paul Valéry e François Mauriac. Jêrome Tharaud, então director, pronuncia um discurso sobre a situação e fica estabelecido: "L'Académie procède à l'examen du cas de ses membres qui ont manqué au devoir national". Na sessão de 7 de Setembro é confirmado que "Messieurs Abel Bonnard et Abel Hermant doivent s'abstenir désormais de paraître aux séances". Uma decisão mesmo assim excepcional, já que os estatutos da Academia não prevêem a destituição dos seus membros. Quanto a Chrales Maurras, a Academia decide, em 14 de Setembro, aguardar o resultado das investigações a seu respeito. Por sugestão de Paul Valéry, é resolvido "ne pas prendre en considération les candidatures de personnes dont l'attitude et les agissements pendant l'occupation étrangère n'ont pas été conformes aux sentiments et aux intérêts nationaux". Foi a primeira vez na sua história que a Academia decidiu aplicar previamente um critério político às candidaturas. É verdade que em 1816 o rei de França, restaurando plenamente a instituição, tinha expulso e nomeado membros com um critério semelhante, mas a Academia tinha considerado esse procedimento um atentado à sua independência. Em 5 de Outubro, François Mauriac escreveu em "Le Figaro" que era necessário não "bousculler la vieille dame" do Quai Conti, e ainda menos suprimi-la. E sugeriu, para insuflar sangue novo, os nomes de Paulhan, Bernanos, Éluard, Malraux, Aragon. Os académicos recearam então uma interferência do general De Gaulle, que não se verificaria. Também se colocou a questão de saber se o presidente do Governo Provisório, ainda não reconhecido por algumas potências aliadas e amigas, poderia ser considerado o chefe do Estado, e logo o protector da Academia.

Só em 1 de Fevereiro de 1945, depois da condenação do fundador da Action française, em 27 de Janeiro, à pena de prisão perpétua e à indignidade nacional, a Academia decidiu ocupar-se do assunto. Foi uma questão que dividiu os académicos, mas sendo juridicamente estabelecido que o crime de um novo género, a "indignidade nacional" era uma pena infamante que comportava a destituição e a exclusão dos condenados de todas as funções, empregos, cargos públicos e corpos constituídos, a Academia já nada tinha a debater. A cadeira de Maurras foi declarada vaga durante quatro semanas, período conforme ao artigo 5º do regulamento de 1752 que estipulava que a eleição não poderia ter lugar menos de trinta dias "après que le décès de celui qu'il s'agit de remplacer aura été connu de l'Académie...". A vacatura deveria ter sido declarada em 8 de Março mas a Academia só preencheu a cadeira de Charles Maurras após a sua morte.

O processo do marechal Pétain, com a sua condenação à morte e à indignidade nacional em 15 de Agosto de 1945, pena comutada em prisão perpétua por De Gaulle, seguiu o mesmo procedimento por parte da Academia. Declarada vaga a sua cadeira, ela só foi preenchida após a sua morte. No caso de Abel Bonnard, condenado à morte por contumácia, mas exilado no estrangeiro, e de Abel Hermant, também condenado e vivendo em difícil situação material e ao qual a Academia prestava discretamente apoio, as suas vagas foram preenchidas em 1946, ainda em vida dos seus ex-titulares. Mas nunca as palavras irradiação ou exclusão foram pronunciadas de forma oficial relativamente a Pétain e a Maurras.

Tendo o marechal Pétain morrido em 1951, foi substituído em 1952 pelo embaixador André François-Poncet. Após a morte de Maurras, em 1952, foi eleito para o seu lugar o duque de Lévis-Mirepoix.

Em 14 de Fevereiro de 1946 registou-se um facto quase inédito na história da Academia Francesa: Georges Duhamel, Secretário perpétuo demitiu-se, devido à fadiga do cargo no período excepcional do fim da guerra. Não foi um precedente absoluto, já que Jean-Baptiste Mirabaud se demitira em 1755, devido a comportamento que indignara a Academia, e François-Juste Raynouard, em 1826, por graves razões de saúde. Mas a demissão de um Secretário perpétuo é inabitual e contrária aos usos da Academia, para que a palavra perpetuidade não se esvazie de sentido.

Mas a Academia Francesa sobreviveu a mais esta crise. E novos e prestigiados nomes foram entrando: em 1946, com 78 anos, ingressou Paul Claudel, que escrevera uma "Ode du maréchal Pétain" que todos resolveram ignorar. Mas não André Gide, apesar do empenho de François Mauriac. Sabendo do interesse do general De Gaulle quanto à admissão de André Gide, Duhamel, que já não era então Secretário perpétuo, foi visitá-lo e disse: "Nous avons un fauteil pour vous." E Gide respondeu: "Non, Duhamel... Je ne dis pas que si l'on m'avait offert le siège de Valéry... mais, puisque le siège de Valéry a été donné, alors je renonce."

«Pour Duhamel, Gide l'avait joué, tout comme il trompait chacun de ses interlocuteurs de l'Académie: "Il préparait le prix Nobel... une élection à l'Académie aurait sûrement compromis la machination Nobel!" Et de conclure à la "perfidie" qui, selon lui, caractérisait Gide.» (p. 321) 

Em 1946 foram ainda eleitos Étienne Gilson, para a cadeira de Abel Hermant e Jules Romain para a cadeira de Abel Bonnard. Em 1951 foi eleito o general (postumamente marechal) De Lattre de Tassigny, que tendo falecido em 1952 não chegou a tomar posse da cadeira. Em 1955 ingressou Jean Cocteau. Em 1959, Henri Troyat.

Com a V República, entraram Henry de Montherlant (1960), René Clair (1960), o cardeal Eugène Tisserant (1961), Maurice Druon (1966). 

O Maio de 1968 voltou a perturbar a vida da Academia. Ouviram-se gritos: "À mort, l'Académie!". Mas a velha dama do Quai Conti permanece.

Em 1980 produziu-se a "revolução Yourcenar". Há muito tempo que Jean d'Ormesson (eleito em 1973) lutava pela admissão de Marguerite Yourcenar. Desafiando todos os preconceitos, fez desse caso o seu "cavalo de batalha". E a autora célebre de Mémoires d'Hadrien foi a primeira mulher a entrar na Academia Francesa. Jean d'Ormesson, que a recebeu sob a Cúpula, dirigindo-se à sua confrade pronunciou pela primeira vez a palavra Madame.

Em 1983 houve a evolução da etnicidade, com a eleição do poeta senegalês Léopold Sedar Senghor, inventor do termo negritude, admitido após algumas hesitações. 

Nos últimos anos, até à data da publicação deste livro (2011), mencionamos alguns dos nomes mais conhecidos que foram admitidos na Academia:  Paul Morand (1968) [após muitas tentativas e com o agrément final do general De Gaulle que sempre se opusera ao seu ingresso], Eugène Ionesco (1970), Julien Green (1971), o cardeal Jean Daniélou (1972), Claude Lévi-Strauss (1973), Félicien Marceau (1975), Alain Peyrefitte (1977), Georges Dumézil (1978), Alain Decaux (1979), Fernand Braudel (1984), Georges Duby (1987), Jacqueline de Romilly (1988), Hélène Carrère d'Encausse (1990) [a autora deste livro], o cardeal Jean-Marie Lustiger (1995), Marc Fumaroli (1995), Angelo Rinaldi (2001), Valéry Giscard d'Estaing (2003), Alain Robbe-Grillet (2004), René Girard (2005), Dominique Fernandez (2007), Amin Maalouf (2011).

A Academia Francesa prossegue na sua trajectória, sempre ocupada com o Dictionnaire (que desde 1694 já conta 8 edições, a nona está a ser publicada em fascículos), uma das suas missões, com rumo à Imortalidade. 

Hélène Carrère d'Encausse foi eleita Secretário perpétuo em 1999, assumindo funções em 1 de Janeiro de 2000. Manteve-se no lugar, perpetuamente, até à sua morte em 5 de Agosto de 2023, com 94 anos. Sucedeu a Maurice Druon. Era filha de Georges Zourabichvili e de Nathalie von Pelken e é mãe de Emmanuel Carrère, Nathalie Carrère e Marina Carrère d'Encausse. Foi casada com Louis Edouard Carrère d'Encausse.

O livro inclui em anexo os Estatutos e Regulamentos, os Usos e Costumes e os Prémios e Mecenatos da Academia. E também os titulares das 40 cadeiras desde a sua fundação e a lista dos Secretários perpétuos, além da Bibliografia sumária.

 

 


sábado, 8 de novembro de 2025

UM JOVEM PORTUGUÊS NA CORTE DE PEDRO, O GRANDE

O investigador norte-americano William P. Rougle publicou em 1983 António Manuel de Vieira na Corte Russa no Século XVIII, sobre a figura de um português que se notabilizou junto do Czar Pedro I, da Rússia.

António Manuel de Vieira, que foi o primeiro Comissário de Polícia de Pedro I, e um dos seus grandes amigos, é mais conhecido na Rússia do que em Portugal, embora a sua vida tenha sido quase totalmente esquecida, nas últimas décadas, pelos historiadores soviéticos e ocidentais. 

A principal fonte e o mais sério dos biógrafos de António de Vieira foi o historiador russo N. S. Shubinsky, que publicou, em 1892, alguns relatos sobre a sua vida em Istorichesky vestnik. Em 1893, este estudo foi incluído no volume Istoricheskie ocherki i raskazy (Ensaios e estudos históricos), que teve quatro edições em dez anos.

As fontes, quer russas quer ocidentais, não são coincidentes quanto ao local e data de nascimento de Vieira. Para uns nasceu em Portugal, natural da província do Minho, para outros em Amesterdão. Até o julgaram napolitano. Parece prevalecer a tese que sustenta que nasceu em 1682, em Amesterdão, filho de um judeu português de poucos meios. Mas sabe-se que Pedro, o Grande o levou para a Rússia quando ele tinha quinze anos, aquando da sua primeira viagem à Europa. 

Escreve Shubinsky (Istoricheskie ocherki i raskazy ): «Enquanto comandante do navio, Pedro I deu-se conta dum jovem marinheiro, ainda quase um rapaz, com traços faciais de judeu, bastante bonito e bem construído. Movia-se no cordame e ajustava as velas com notável destreza, e em geral executava todas as suas tarefas rapidamente e com eficiência. Terminadas as manobras, o Czar mandou-o chamar, louvou a sua graça, deu-lhe um taler e perguntou-lhe quem era e donde era. O marinheiro respondeu-lhe rapidamente que o seu nome era Anton Divier, que era filho de um judeu português que tinha emirado para a Holanda e se convertera aí ao cristianismo, e que o seu pai morrera deixando-o sem meios financeiros e que se tinha tornado marinheiro por necessidade, uma vez que não tinha oportunidade de encontrar uma ocupação mais fácil. O Imperador gostou de tal maneira das respostas inteligentes do rapaz e da sua agradável aparência, que lhe sugeriu que entrasse ao seu serviço, prometendo bom cuidado dele se o servisse com honestidade e dedicação.» (p. 18)

Nesta sua primeira viagem à Europa, Pedro I visitou não só Amesterdão mas também Londres. Daí uma discrepância quanto ao encontro do rapaz com o Czar. Escreve o autor: «Em Julho de 1724, o abade português Tomás da Silva de Avelar, depois de um mês e meio em Moscovo onde como emissário de D. João V esteve presente na coroação de Isabel I, viajou para São Petersburgo onde foi amavelmente recebido por Pedro I e António de Vieira. Numa carta escrita de Dantzig datada de 26 de Setembro de 1724 para Marco António de Azevedo Coutinho em Londres, lê-se: "... em Petresbourg fui logo visitar o nosso famoso António Manuel Vieira, que o Czar trouxe comsigo de Inglaterra achado lá na marinha em pobre estado, e condição..." (p. 21) [Alguma coisa não confere neste texto. Isabel I foi coroada em 1742 (deve ser troca de 1724 em vez de 1742) e Pedro I já tinha morrido, obviamente.]

Existem outras versões sobre o surgimento de Vieira, de quem sabemos pouco durante os primeiros anos em que esteve ao serviço do Czar. Escreve Gelbig (Russkie izbrannik) que Pedro I o deu ao serviço de Alexandre Danilovitch Menshikov, como mensageiro, e só mais tarde o utilizou como pajem ao seu serviço pessoal. 

Os serviços de Vieira agradaram ao imperador que, sendo ele já capitão de cavalaria, em 1708 o promoveu ao posto de major. Em 1711, foi promovido, juntamente com Pavel Yaguzhinsky, a Ajudante-General, posto especialmente criado para eles. 

O seu trabalho pusera-o em contacto íntimo com a família Menshikov, tendo-se desenvolvido uma relação íntima entre Vieira e a irmã mais velha de Menshikov, Anna Danilovna. A situação desagradou a Menshikov (um rapaz que Pedro I encontrara nos estábulos, se tornara seu amigo pessoal e acabaria por ser nomeado príncipe e marechal do Império), que tentou impedir o casamento quando a irmã ficou grávida, tendo fustigado Vieira. Este queixou-se ao Czar que determinou que o casamento se efectuasse no prazo de três dias. 

Segundo Shubinsky, a decisão de casar foi motivada pelo facto de Vieira pretender melhorar a sua posição social de modo a poder mais rapidamente ser aceite pela sociedade da Corte. Não ousando casar dentro da nobreza russa, devido à sua ascendência judaica, Vieira fixou a sua atenção na nova aristocracia,  à qual se pertencia não por nascimento mas por serviço ao Czar.

Em 1713, Pedro I mandou Vieira para Revel (hoje Tallin) para coordenar a construção do porto. Depois de estadas em Inglaterra e na Dinamarca regressou à Rússia em 1716, continuando a servir o Czar como Ajudante-General, e depois como primeiro Comissário de Polícia em São Petersburgo, em 1718. As instruções cometidas por Pedro I a Vieira encontram-se devidamente discriminadas no livro. E também a forma, por vezes muito severa, como foram aplicadas por Vieira. 

Mais do que Comissário de Polícia, Vieira foi o grande fiscal das construções da cidade e da manutenção não só da ordem mas igualmente da limpeza, da utilização das estradas e das pontes, e também da prevenção dos incêndios, da iluminação pública, do controlo das edificações.

«Como Comissário da Polícia, Vieira informava o Czar diariamente, servindo deste modo de intermediário entre ele e os outros funcionários. Por outro lado, Pedro I interessou-se activamente pelo trabalho de Vieira e tinha o cuidado de verificar se as suas ordens eram cumpridas com eficiência.» (p. 51)

«O facto de Vieira ser uma pessoa chegada a Pedro I permitiu-lhe ganhar a afeição da família real, e cedo se tornou um homem de confiança da mulher de Pedro I e futura governadora da Rússia (1725-1727), a qual, segundo Shubinsky, "apreciava muito a bonomia do português que a entretinha com as suas piadas e histórias inesgotáveis". Sempre que Catarina não se encontrava em São Petersburgo, era confiado a Vieira o cargo de olhar pelos estudos e saúde de suas filhas (Anna, Isabel e Natália Petrovna) e enteados (Pedro e Natália Alekseevitch), tal como podemos ver pelas notas semanais que Vieira lhe enviava. O apreço de Catarina por Vieira estendia-se também à família deste. A sua única filha N. N. Antonovna era uma ajudante e dama de honor de Catarina I, e em 1722 o seu filho Pedro Antonovitch, com dez anos de idade, foi nomeado pajem da filha mais velha da Czarina, Anna Petrovna.» (p. 52)

Vieira foi promovido a Brigadeiro a 16 de Janeiro de 1721 e a Major-General a 6 de Janeiro de 1725, vinte e dois dias antes da morte de Pedro I. Catarina I, que lhe sucedeu, querendo expressar o afecto e gratidão por António de Vieira, agraciou-o com a cobiçada Ordem de Santo Alexandre Nevsky, no dia da sua criação, em 21 de Maio de 1725. Em Fevereiro de 1726 foi designado para o Senado e a 24 de Outubro de 1726 foi feito Conde. Em Dezembro desse mesmo ano, Catarina I promoveu-o a Tenente-General, a segunda patente mais alta do exército russo.

Apesar de serem (forçadamente) cunhados, a relações de Vieira com o Príncipe Menshikov nunca foram amistosas, apesar de manterem relações de trabalho. E deterioraram-se após o episódio da Curlândia que aqui não especificaremos.

«Nos fins de Janeiro de 1727, Catarina I adoeceu gravemente o que levou as várias facções da Corte a iniciarem a sua luta no sentido de impor o candidato que lhe iria suceder.

Os favoritos incluíam as duas filhas de Catarina, Anna e Isabel, e o neto de Pedro, o Grande, Pedro Alekseevitch, de onze anos de idade.

O trono por direito pertencia ao Grão-Duque Pedro Alekseevitch, que era apoiado, portanto, pela velha aristocracia para além do poderoso embaixador austríaco, Conde Rabutin, que actuava no interesse do Imperador Carlos VI da Áustria, tio do Grão-Duque por casamento. No entanto, opunham-se à sua candidatura a maioria daqueles que, em 1718, tinham ajudado Pedro, o Grande a obter a sentença de morte para o seu filho Aleksei, o pai do Grão-Duque. Entre estes, contavam-se o Príncipe Menshikov, Pedro Tolstoi, António de Vieira, Pavel Yaguzhinsky, Grigori Skornyakov-Pisarev e Ivan Buturlin, para só mencionar algumas das figuras mais conhecidas. Receavam eles que, uma vez no poder, o jovem Grão-Duque se vingasse de todos aqueles que tinham conspirado contra o seu pai.» (pp. 65-66)

Por sugestão do embaixador dinamarquês, Menshikov mudou de opinião propondo a Catarina (sua ex-amante) que a sua filha Maria se casasse com o Grão Duque, ao que aquela em princípio acedeu. O Conde Tolstoi e outros notáveis resolveram então conspirar contra essa solução, aliciando para o caso Vieira logo que este regressou da Curlândia. Tendo a saúde de Catarina piorado, estando a morte iminente, Menshikov conseguiu, em 16 de Abril de 1727, obter a assinatura da soberana num documento em que Pedro era declarado como sucessor e a filha daquele, Maria, como sua noiva.

Naquele dia, e na cerimónia solene a que assistia toda a Corte, Vieira estaria embriagado. Menshikov aproveitou a circunstância para o mandar prender por crime de lesa-majestade, por se rir, dizer piadas e ter o Grão-Duque sentado nos joelhos, etc. Foi constituída uma comissão para averiguar dos factos, a que Vieira respondeu, tendo Menshikov obtido ainda de Catarina a autoridade necessária para "interrogar" Vieira para que este denunciasse os seus cúmplices, já que era suposto existir uma conspiração. Após ter sido chicoteado, Vieira indicou os nomes dos cúmplices a tempo de Catarina, horas antes de morrer, a 6 de Maio de 1727, ter aceite a condenação de Vieira.

«É este o texto do ukaz: "Retirar a Devier e Tolstoi os seus títulos, honras e terras e exilá-los: Devier para a Sibéria, Tolstoi e o seu filho para Solovki; retirar a Baturin os seus títulos e exilá-lo para uma região distante; retirar a Skornyakov-Pisarev os seus títulos, honras e terras, chicoteá-lo e exilá-lo; retirar a Naryskin os títulos e deportá-lo; transferir Ushakov para um regimento conveniente; afastar o Príncipe I. Dolgorukov da Corte, despromovê-lo e alistá-lo num batalhão." Segundo Shubinsky, Menshikov acrescentou um post-scriptum ao ukaz, para que Vieira se recordasse dele: Devier para ser chicoteado antes de ser exilado.» (p. 70)

Vieira foi enviado para a região de Yakutsk. Menshikov estendeu o seu rigor à própria irmã, que era mulher de Vieira, obrigando-a a ir viver no campo com os três filhos. 

Quando Menshikov caiu, por seu turno, em desgraça, em 1727, e foi exilado para a Sibéria, a sua queda não melhorou a situação de Vieira mas um pouco a de sua mulher que, por decreto de Pedro II, foi autorizada a viver numa das suas melhores propriedades. Depois da morte de Pedro II, em 1729, e da ascensão de Anna Ivanovna e, consequentemente, do conde alemão Ernst Johann Biron, seu primeiro ministro não oficial e amante, não se verificou de imediato qualquer mudança na situação de Vieira ou da mulher. Só em 1735 foi permitido a Anna Vieira regressar a São Petersburgo para cuidar da educação dos filhos, Alexandre e Anton, que foram admitidos na Guarda Imperial. 

António de Vieira fez a viagem de seis meses para a Sibéria com o antigo Major-General e companheiro de conspiração Grigori Skornyakov-Pisarev, mas este, em 1731, teve a sorte de ser nomeado comandante da recentemente fundada povoação de Okhotsk, na Sibéria. Tendo a gestão de Pisarev sido deficiente, em 1739, finalmente, a Imperatriz retirou Vieira do exílio e nomeou-o em substituição daquele. A actuação de Vieira foi notável, tendo mandado prender Pisarev e restabelecido o normal funcionamento da região, e o relatório sobre a sua eficiência chegou a São Petersburgo. A 7 de Dezembro de 1741, no dia seguinte à sua subida ao trono, a nova Imperatriz Isabel Petrovna emitiu a seguinte ordem para o Senado:

«"Anton Dever e Skornyakov-Pisarev que foram condenados a ir para a Sibéria, serão perdoados e libertados do seu exílio"». (p. 87)

Após o seu regresso a São Petersburgo, em 1743, Isabel I restituiu-lhe todas as suas antigas honras, títulos e propriedades. 

«Tomamos conhecimento através da correspondência do Marquês Dalion (o embaixador francês na Corte russa na altura), que a Imperatriz Isabel quase não proporcionara a Vieira uma oportunidade para descansar da sua longa viagem de regresso a casa, antes que o pusesse de novo ao seu serviço. A reputação de Vieira como inquiridor rígido e leal, não se esbatera durante os anos do seu exílio. Escrevendo para o Marquês Ameiot, de São Petersburgo em 19 de Março de 1743 (C.G.), sobre um suposto golpe no palácio com o objectivo de derrubar a Imperatriz, o Marquês Dalion diz-lhe que a comissão reunida para o examinar é

"composta por Anton Manuel de Vier, recentemente chegado do seu exílio na Sibéria, português de nascimento e cunhado do falecido Príncipe Menshikov, o camareiro Schouvaloff... e o porta-bandeira Grunstein. A escolha destes homens austeros que eram devotos a Sua Majestade por inclinação e  por gratidão parece indicar que irão fazer importantes descobertas..."» (p. 87)

«Em 5 de Julho de 1744, a Imperatriz promoveu Vieira ao mais alto posto do Exército russo, o de Chefe de Estado Maior ("General-anshef").» (p. 93)

António Manuel de Vieira pôde gozar tranquilamente e confortavelmente os últimos dias da sua vida. Morreu em 24 de Junho de 1745, com 63 anos de idade, e foi sepultado no cemitério do Mosteiro de Alexandre Nevsky, em São Petersburgo.

[Quando visitei São Petersburgo há alguns anos, passei uma manhã no cemitério do Mosteiro, onde observei os túmulos das grandes figuras da literatura e da música russas. Não sabia que Vieira ali repousava também, pois não teria perdido a oportunidade de ver a sua sepultura, caso fosse possível identificá-la.] 

O livro inclui, em apêndice, a genealogia dos Condes de Vieira (Devier) até aos finais do século XIX.

 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O MAGO DO KREMLIN

Em 2022 foi publicado em França Le Mage du Kremlin, do escritor ítalo-suíço nascido em Paris Giuliano da Empoli, que logo resolvi comprar, atendendo ao seu conteúdo. Mas, por qualquer razão que agora não recordo, não cheguei a encomendar.

Quando, no fim de 2022, foi editada a primeira tradução portuguesa, novamente decidi a compra, mas ainda desta vez não concretizei a minha aquisição.

Acontece que no mês passado, no Festival de Veneza, foi apresentado o filme homónimo, com realização de Olivier Assayas, em colaboração com Emmanuel Carrère e interpretação de Jude Law no papel de Vladimir Putin. A estreia da película em França está prevista para Janeiro do próximo ano, não havendo ainda, por isso, edição em DVD. Ao ler a notícia decidi que teria mesmo comprar o livro. E assim fiz, mas com dificuldade. Já lá vai o tempo em que visitava diariamente várias livrarias em Lisboa. Agora vou muito raramente à Baixa, onde já praticamente nada existe do meu tempo. Por isso, procuro habitualmente livrarias periféricas. Após algumas tentativas, em vão, foi ainda em Lisboa que consegui comprar O Mago do Kremlin.

Trata-se de um livro fascinante e indispensável para quem deseje compreender a Rússia de hoje. Daí o seu sucesso em todo o mundo e o facto de estar já traduzido em mais de trinta línguas.

Não é um manual de história nem um romance mas uma obra em que a ficção se entrelaça com a realidade tornando compreensíveis muitos episódios da história contemporânea, ainda ininteligíveis para numerosas criaturas. Também é perfeitamente visível a ironia do autor e o seu requintado cinismo.

O livro é construído à volta de Vadim Baranov (uma personagem imaginária) que descreve a forma como Vladimir Vladimirovitch Putin se transformou no novo Czar de Todas as Rússias. Agora retirado na sua fabulosa mansão, Baranov conta ao autor como se tornou conselheiro de Putin e como este se tornou o dramaturgo, o encenador e o actor de uma peça grandiosa que é a própria Rússia, um espectáculo deslumbrante e simultaneamente assustador para o comum dos mortais.

A análise da queda da União Soviética, do inconstante consulado de Mikhaïl Gorbachov, do perturbante período de Boris Eltsin e do advento de Vladimir Putin, a análise do comportamento do Ocidente, maxime do Estados Unidos, em relação à Rússia, da sua incapacidade em compreender a alma dos eslavos, que Dostoievsky tão bem retratou, tudo passa pelo livro de Giuliano da Empoli, em especial uma severa crítica ao american way of life e à estrutural incapacidade dos norte-americano de conseguirem entender a alma russa e até, em geral, a própria alma europeia, se ela verdadeiramente existe.

Não cabe aqui descrever a obra mas não resisto à transcrição, avulsa, de alguns momentos curiosos. 

«Quando pedimos ao nosso público que nos indicasse os seus heróis, as personagens em que se baseia o orgulho da Mãe Rússia, estávamos à espera dos grandes espíritos: Tolstói, Pushkin, Andrei Rublev, ou, sei lá, um cantor, um actor, como aconteceria entre vós. Mas o que nos deram os espectadores, a massa informa do povo habituada a vergar as costas e a baixar o olhar? Só nomes de ditadores. Os heróis deles, os fundadores da pátria, coincidiam com uma lista de autocratas sanguinários: Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Lenine, Estaline. Fomos obrigados a falsificar os resultados para fazer ganhar Alexandre Nevski, que pelo menos era um guerreiro, não um exterminador. Mas quem recolheu mais votos foi Estaline. Estaline, está a entender? Foi aí que eu compreendi que a Rússia nunca se tornaria um país como os outros. Não que houvesse alguma verdadeira dúvida.» (p. 74)

«Lembro-me de que Boris [Berezovsky] estava tão excitado que entornou com um gesto desajeitado o porta-canetas que tinha à sua frente. Dito isto, o raciocínio dele não era desprovido de sentido. No início dos anos noventa, Gorbachev e Ieltsin tinham feito a revolução, mas no dia seguinte a grande maioria dos russos havia acordado num mundo que não conhecia, no qual não sabia como viver. Antes do afundamento do sonho americano e do sonho da Europa, houve o afundamento do sonho soviético. Entre vós ninguém se apercebeu disso porque vos parecia impossível que um sonho fosse feito de coisas tão pobres e tão cinzentas: uma profissão respeitada como a de funcionário ou de professor, um pequeno Zhiguli [automóvel baseado no Fiat 124 que foi fabricado na União Soviética e na Rússia pela AvtoVAZ entre 1970 e 2012], uma dacha com a sua horta, as férias em Sochi ou de tempos a tempos em Varna, com as pernas a mergulhar no mar Negro e a perspectiva de um bom churrasco entre amigos. E, contudo, esse modelo tinha a sua força e a sua dignidade. Os seus heróis eram o soldado e a mestre-escola, o camionista e o infatigável operário: era a eles que eram dedicados os anúncios nas ruas e nas estações de metro. Em poucos meses, tudo isso foi varrido. os novos heróis, os banqueiros e as top-models impuseram o seu domínio, e os princípios em que se fundava a existência de trezentos milhões de habitantes da URSS foram invertidos. Eles tinham crescido numa pátria e de repente encontravam-se num supermercado. A descoberta do dinheiro foi o acontecimento dessa época que mais transtornou. E a seguir, a descoberta de que o dinheiro podia nada valer, com a queda da bolsa e a inflação em três mil por cento.» (pp. 83-84)

Do encontro do autor com o famoso Eduard Limonov:

«- O que é interessante é que as pessoas como tu pensam que se trata de um modelo a seguir. Mas, na verdade, os americanos são uns zombies; não há maior pecado do que delapidar a nossa vida, Vadia. Eles nem sequer são aflorados pela ideia de que o fito da existência humana possa não ser viver-se o mais confortavelmente ou o máximo tempo possível. Foi quando vi que Ieltsin seguia esse caminho e queria transformar a Rússia numa sucursal low-cost do hospício americano que eu decidi fundar o Partido Nacional-Bolchevique. E sabes porque lhe chamei assim? Para vos enfurecer, para concentrar num único nome tudo o que vocês consideram ser o mal, todas as ideias que ameaçam o pequeno consumidor satisfeito a que vocês reduziram o homem.

- As paixões fazem viver o homem, a sabedoria fá-lo somente durar.

Limonov olhou-me de lado. Não gostava de ser interrompido, muito menos por velhas citações que banalizassem as suas iluminações.

- De facto, é isso - prosseguiu ele. -  No Partido Nacional-Bolchevique juntámos ex-estalinistas e ex-trotskistas, homossexuais e skinheads, anarquistas, punks, artistas conceptuais e fanáticos religiosos, budistas e ortodoxos. Quando organizámos o nosso primeiro congresso, o mais complicado foi dispô-los na sala de maneira a não partirem a cabeça uns aos outros. Sempre que penso nisso, ainda não sei como é que fizemos...» (pp. 140-141)

Conversa entre Vladimir Putin e Vadim Baranov:

«Putin teve um estremecimento e, pela primeira vez desde que o conhecia, percebi um clarão de ódio no seu olhar.

- Mete uma coisa na cabeça, Vadia, os mercadores nunca dirigiram a Rússia. E sabes porquê? Porque não são capazes de garantir as duas coisas que os russos pedem ao Estado: ordem no interior e poderio no exterior. Só por duas vezes, por dois breves períodos, os mercadores governaram o nosso país: poucos meses após a revolução de 1917, antes do advento dos bolcheviques, e poucos anos após a queda do Muro, durante o período de Ieltsin. E qual foi o resultado? O caos. A explosão da violência, a lei da selva, os lobos que saem das florestas e entram nas cidades para devorar a população sem defesa.» (pp. 156-157)

Para a realização dos Jogos Olímpicos de Sochi, que Baranov superintendeu:

«Devo dizer que cada um desempenhou de bom grado o papel que lhe fora atribuído. Alguns até com talento. Os únicos que não contratei foram os professores, os tecnocratas responsáveis pelas catástrofes dos anos noventa, os porta-estandartes do politicamente correcto e os progressistas que se batem por lavabos transgénero. Esses, preferi deixá-los para a oposição; com efeito, era necessário que a oposição fosse constituída precisamente por personagens como eles. De certa maneira, tornaram-se os meus melhores actores, nem sequer fomos obrigados a contratá-los para que trabalhassem para nós. Pequenos moscovitas que se sentiam em terra estranha logo que ultrapassavam o terceiro anel da periferia, pessoas que nem teriam sido capazes de deslocar um cadeirão - quanto mais governar a Rússia... Cada vez que tomavam a palavra, consolidavam a nossa popularidade. Os economistas com a sua arrogância de PhD, os oligarcas sobreviventes dos anos noventa, os profissionais dos direitos humanos, as pasionarias feministas, os ecologistas, os vegans, os activistas gay: um maná caído do céu para nós. Quando as raparigas daquele grupo de música profanaram a Catedral do Cristo Salvador, berrando obscenidades contra Putin e o patriarca, fizeram-nos ganhar cinco pontos nas sondagens.» (pp. 182-183)

Putin sobre Boris Berezovsky (que apareceu enforcado no seu apartamento em Londres):

«- Claro, ele ajudava os inimigos da Rússia em toda a parte, na Ucrânia, na Letónia, na Geórgia, é verdade. Sabe-se lá como as coisa aconteceram ao certo. Estás a ver, Vadia, os teóricos da conspiração julgam-se muito espertos, mas são uns grandes ingénuos. Gostariam que tudo tivesse um sentido oculto e desvalorizam sistematicamente o poder do disparate, da distracção, do acaso. Dito isto, tanto melhor assim: é o contrário do que eles quereriam, mas os teóricos da conspiração só nos dão força. Se em lugar de se ver o poder como aquilo que ele é, com as suas fraquezas humanas, lhe conferirmos a aura de uma identidade omnisciente, capaz de urdir não sei que trama, fazemos-lhe o maior cumprimento possível, não achas? Fazemo-lo crer ainda maior do que ele é.

- "Puisque ces mystères nous dépassent, feignons d'en être l'organisateur." [adaptação de uma frase de Jean Cocteau em Les Mariés de la Tour Eiffel]

O Czar detestava as minhas citações e não falava francês, mas naquela manhã eu não estava num humor que lhe agradasse. Fitou-me por um instante em silêncio, e depois decidiu ignorar-me.» (pp. 224-225)

«Diante de mim, o Czar lia a carta de Berezovsky. A seguir, pousou-a, imperturbável, como uma pedra apanhada no fundo de uma torrente. Dei-me conta nesse momento de que Boris também tivera razão sobre este ponto. Putin não era um grande actor, como eu julgara, mas somente um grande espião. Ofício esquizofrénico que requer, é certo, qualidades de actor. Ms o verdadeiro actor é extrovertido, o seu prazer de comunicar é real. O espião, em contrapartida, tem de saber bloquear todas as emoções, caso as tenha. Na prática, esses dois talentos servem-lhe, ele tem de simular a empatia do actor e simular a frieza do cirurgião na sala de operações. Mas se Putin não era um grande actor, eu também não era um grande encenador, quando muito um cúmplice.» (pp. 225-226)

«Mas quando apresentei a minha demissão, o Czar tinha outra coisa em mente. Creio que acolheu a minha retirada com alívio: já não precisava de mim. Inventar uma ordem nova exige uma certa dose de imaginação, mas basta a devoção cega dos servidores para a fazer respeitar.» (p. 260)

«No Ocidente, os vossos governantes são como adolescentes, não podem ficar sozinhos, procuram sempre um olhar que pouse sobre eles, tem-se a impressão de que, se fossem obrigados a passar um dia num quarto, sem companhia, se dissolveriam no ar como um sopro de vento morno. O nosso czar, pelo contrário, vive na solidão e nutre-se dela. É no recolhimento que ele acumula a força que surpreende tantos dos vossos observadores. Com o tempo, isso tornou-se quase um elemento, como o céu ou o vento. Vocês esqueceram-se do que significa viver como adulto, plantado na realidade. Julgam que um chefe é uma espécie de animador, querem chefes que se assemelhem a vós, que estejam ao vosso nível. A distância preserva a autoridade. Como Deus, o Czar pode ser objecto de entusiasmo, mas sem que ele próprio se entusiasme, a sua natureza é necessariamente indiferente. O rosto dele já adquiriu a palidez marmórea da imortalidade.» (pp. 260-261)

«Imaginemos agora que o poder deixe de necessitar da colaboração humana. Que a sua segurança - e a sua força - seja garantida por instrumentos que não têm a possibilidade de se revoltar contra ele. Um exército de sensores, de drones, de robôs capazes de atacar a qualquer momento, sem a menor hesitação. Isso seria, finalmente, o poder na sua forma absoluta. Enquanto se basear na colaboração de homens de carne e osso, todo o poder, por mais duro que seja, deverá contar com o consentimento destes. Mas quando for baseado em máquinas que mantenham a ordem e a disciplina, não haverá mais nenhum freio. O problema das máquinas não é que elas venham a revoltar-se contra o homem, é que ela sigam as ordens à letra.» (p. 264)

E como morceau de bravoure

«Doravante, onde quer que nos encontremos, podemos ser identificados, chamados à ordem, neutralizados se necessário. O indivíduo solitário, o livre-arbítrio, a democracia, tornaram-se obsoletos: a multiplicação dos dados transformou a humanidade num único sistema nervoso, um mecanismo feito de configurações standard tão previsível como um bando de pássaros ou um cardume de peixes. Não estamos ainda em guerra, mas já estamos militarizados. Os soviéticos tinham sonhado com isso. O nosso Estado sempre se baseou na mobilização. Éramos uma nação inteiramente fundada na ideia da guerra, da defesa da pátria contra agressões que pudessem vir do estrangeiro. Todos os sacrifícios, todos os inúmeros atentados à liberdade, se justificavam assim: a defesa de uma liberdade maior, a da mãe pátria. O KGB tinha projectado, nos anos cinquenta, um sistema para registar todas as relações de cada cidadão soviético. O vertuskka [Vertushka (em russo: Вертушка), também conhecida por Kremlyovka (em russo: Кремлёвка) ou Spetssvyaz (em russo: Спецсвязь), é o nome coloquial de um sistema fechado de comunicações telefónicas entre partidos políticos e governos na União Soviética e na Rússia. Recebeu o nome informal (calão) de Vertushka porque, ao contrário da rede telefónica convencional, onde a ligação era feita através de um operador, os assinantes ligavam-se uns aos outros utilizando uma central telefónica automática e um disco de marcação chamado Vertushka em russo. A existência do sistema era uma novidade numa era dominada pelas centrais telefónicas manuais. O telefone não utilizava disco de marcação e certos subsistemas do sistema ligavam-se diretamente ao Kremlin. Sobretudo no período soviético, esta ligação permitia ao líder comunicar com subordinados importantes, como secretários regionais do partido, oficiais militares de alta patente ou chefes de importantes fábricas estatais. O sistema governamental ATS, que sofre modernizações regulares, continua em funcionamento até aos dias de hoje] do meu pai era o símbolo disso. Mas o Facebook foi muito mais longe. Os californianos ultrapassaram todos os sonhos dos velhos burocratas soviéticos. Não há limites para a vigilância que eles conseguiram instaurar. Graças a eles, qualquer momento da nossa existência se tornou uma fonte de informações.» (p. 265)

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Como Vladimir Vladimirovitch Putin continua vivo e presidente da Federação Russa o fim do livro não é o fim da história. A edição original tem três anos e Giuliano da Empoli não podia, nem pode, prever os acontecimentos que terão o Kremlin por palco. Por isso encontrou um expediente original para concluir a obra: a aposentação voluntária do Vadim Baranov, o "mago do Kremlin".

Não será de mais repetir que se trata de um livro que observa com particular acuidade a Rússia de hoje e o homem de sempre (parafraseando Leonardo Coimbra), o mundo em que vivemos e o mundo provável do futuro.

Vale a pena ler. Espero que o filme faça jus ao livro.