A vaga de contestação ao poder vigente iniciada na Tunísia no passado mês de Dezembro, e que progressivamente alastrou a todo o mundo árabe, está a registar o seu episódio mais sangrento na Líbia de Muammar Qaddafi.
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Tripoli - Hotel Al-Waddan |
Ao contrário de Ben Ali e de Mubarak, que foram forçados a renunciar ao poder pelos exércitos respectivos, o coronel insistiu em manter-se à frente dos destinos do país, onde permanece desde há 42 anos. A sua teimosia está a provocar uma catástrofe para o povo líbio e um problema acrescido para a chamada comunidade internacional.
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Tripoli - Praça Verde (As-Sadah al-Kadrah) |
É certo que após o entusiasmo provocado pelas sublevações tunisina e egípcia contra os respectivos regimes ditatoriais, o mundo dito livre não poderia ficar indiferente à forma escolhida para Qaddafi para responder aos seus opositores, isto é, eliminando-os. Os outros regimes com problemas semelhantes têm tentado, vamos ver até quando, através de mudanças constitucionais, de governo, de melhoria do nível de vida, sobreviver à contestação generalizada do povo árabe que julga ser o momento, após séculos de dominação colonial (otomanos, franceses, ingleses, italianos, americanos, russos, etc.), de readquirir o brilho dos tempos passados. Isso explica as manifestações no Marrocos, na Argélia, na Arábia Saudita, no Iémen, na Síria, no Bahrein, no Omã, na Palestina (um problema ainda mais complexo), no Sudão ( desmembrado), no Líbano (sempre em equilíbrio instável), ou em menor grau nos Emirados Árabes Unidos, no Kuwait e no Qatar.
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Tripoli - Castelo (Assai al-Hamra) |
A criação de uma zona de exclusão aérea na Líbia surgiu como a forma mais expedita para impedir Qaddafi de exterminar os seus compatriotas e de proporcionar aos opositores líbios o acesso a instituições minimamente democráticas, já que a Jamahiriya é um regime de "democracia popular" inteiramente subordinado ao poder do Chefe. Para evitar os antecedentes ilegais aquando da invasão do Iraque, foi obtido consenso no Conselho de Segurança das Nações Unidas e entregue a uma coligação ad hoc o encargo de fazer cumprir as determinações daquela organização internacional.
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Tripoli - Castelo (Assai al-Hamra) |
Não se tratou, por enquanto, de um ataque da NATO, mas de um grupo de países que assumiu a penosa tarefa. Os Estados Unidos, a quem coube o comando das (primeiras) operações, a França, o Reino Unido, a Bélgica, a Dinamarca, a Noruega, a Itália, a Grécia e alguns países árabes.
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Tripoli - Mesquita central em obras (Antiga Catedral) |
Esta intervenção militar, se parece ser imprescindível, é todavia discutível na forma, tendo em conta, especialmente, os antecedentes das relações do regime do coronel com o "Ocidente" nos últimos anos, depois da conversão forçada que Qaddafi fizera através dos bons ofícios de Tony Blair (sempre esta personagem em todos os acontecimentos trágicos das últimas décadas).
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Tripoli - Loja no suq |
Também o anúncio solene e descabido de Nicolas Sarkozy, ao assumir-se como porta-voz da "coligação" constitui um erro político de incalculáveis consequências. Sarkozy é uma personagem menor que desonra a França, depois de chefes de Estado com grandeza e dignidade como De Gaulle, Pompidou, Giscard, Mitterrand ou Chirac, independentemente das respectivas convicções políticas.
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Tripoli - Museu da Jamahiriya |
É hoje um facto que a soberania dos estados é um mito e que depois de ter surgido no direito internacional a figura do "direito de ingerência" apareceu outra, ainda mais sofisticada, creio que devida a Bernard Kouchner: o "dever de ingerência". A partir daqui, qualquer estado, ou coligação, pode invadir outro sob que pretexto for. Foi assim com os Balcãs, o Afeganistão, o Iraque, etc.
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Tripoli - Museu |
Tenho por adquirido que, sem intervenção externa, Qaddafi, que ainda dispõe de alguns apoiantes e especialmente de razoável armamento, esmagaria em poucos dias a insurreição contra o seu regime, latente desde há décadas. Mas parece que o figurino para a actual intervenção não é o mais adequado. Desde a citada comunicação de Sarkozy "ao mundo" ao processo utilizado, que não deixará de provocar centenas de mortos e milhares de feridos, ainda que se tenha excluído ab initio uma intervenção terrestre (pelo menos pública). A China, a Rússia e o Brasil, todavia abstencionistas no Conselho de Segurança, já criticaram esta acção militar. Haveria alternativas?
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Tripoli - Museu |
Claro que o que principalmente conta para as grandes potências não são as vidas humanas mas o petróleo líbio. Sempre os interesses materiais a sobreporem-se às questões morais. Se a Líbia não tivesse petróleo desconfio que tivesse sido desencadeada semelhante operação. Sem prejuízo de Muammar Qaddafi não ser uma pessoa frequentável.
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Tripoli - Museu |
O coronel ameaçou tornar o Mediterrâneo num inferno. Para garantir a sua sobrevivência e a sua imagem não duvido que o fará se puder.
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Tripoli - Museu |
Espero que, ao contrário do incomensurável desastre cultural em que se traduziu a intervenção no Iraque, sejam preservados os sítios arqueológicos da Líbia, de inestimável valor (as ruínas de Leptis Magna e Sabratha são os mais importantes vestígios romanos em África), bem como as preciosidades do Museu Nacional.
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Tripoli - Museu (Carro de Muammar Qaddafi aquando da Revolução de 1969) |
Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos.
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Tripoli - Arco de Marco Aurélio |