sábado, 20 de fevereiro de 2010

IDEOLOGIA E LITERATURA



Mais do que os pintores ou músicos, os escritores são intelectuais com o gosto da intervenção cívica. Muitos tiveram posições políticas marcantes ou biografias dominadas por fortes doses de ideologia. O século XX beneficiou os escritores de esquerda e só agora são consensuais as obras de alguns autores que durante a vida foram associados à direita, por exemplo, Albert Camus, John Dos Passos, George Orwell ou Alexander Solzhenitsyn, que sofreram duros ataques (por exemplo, há quem diga que o americano perdeu o Nobel por ter caído em desgraça junto da poderosa crítica esquerdista de Nova Iorque).
Mas o caso mais brutal de anátema atingiu um escritor norueguês, Knut Hamsun, que sem a política seria hoje um dos maiores génios da literatura. Nascido em 1859, Hamsun recebeu o Prémio Nobel em 1920, numa altura em que já era famoso, sobretudo por um livro disponível em português, A Fome. Ele foi o primeiro grande modernista, influenciou Kafka, Joyce e Thomas Mann, entre muitos outros. De origens modestas, era polémico e rebelde, um homem intratável, que odiava o capitalismo e o colonialismo, que não suportava ideias comunistas e que acreditava em predestinados. Era também pró-germânico e tornou-se um admirador de Adolf Hitler e do nazismo.
Há um episódio patético, em que o escritor, meio surdo e com mais de 80 anos, é recebido pelo ditador nazi. Durante a entrevista, Hamsun (que não era colaboracionista) critica os excessos da ocupação do seu país e interrompe Hitler, para grande irritação deste. Como se não bastasse, em 1945, Hamsun publica um pequeno elogio fúnebre do ditador, dias antes da queda do regime colaboracionista norueguês. Até à sua morte, aos 93 anos, o grande escritor foi humilhado, julgado, internado num asilo. Morreu na pobreza, esquecido pelos compatriotas durante meio século.
Mas, literariamente, Hamsun é um gigante. Num dos seus livros, Os sonhadores, de 1904, descreve os conflitos de uma pequena comunidade piscatória do norte da Noruega e a perda da inocência das suas personagens. A história atravessa um ano e modifica-se de acordo com as estações. A figura central é um individualista rebelde e manipulador, que numa passagem do texto, ao conversar com a mulher do pastor (estará ela amorosamente iludida?) diz isto sobre Deus: “Sim, é o Deus de todas a criaturas. Mas não tem nada de extraordinário ser o Deus dos animais e das montanhas. Somos verdadeiramente nós, os seres humanos, quem fazemos dele aquilo que ele é”.
A frase é todo um programa político e é dita pela personagem em que Hamsun se revê. Como é que um escritor com esta intuição se pode ter iludido sobre Adolf Hitler, que trinta anos mais tarde levaria milhões de pessoas à loucura e à destruição? Hamsun tinha profundo conhecimento da sua matéria-prima, os seres humanos, e apesar de tudo uma ingenuidade camponesa que o arrastou para crenças injustas. Talvez o desconhecimento da verdade explique o enigma; ou, quem sabe, em certas circunstâncias a lucidez não possa resistir ao fascínio do mal.

Publicado hoje por Luís Naves no blogue "Albergue Espanhol"

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