Muito
se tem escrito sobre a vida e a obra de Luís de Camões (1524-1580), considerado
o maior (senão um dos maiores) poeta português e uma das grandes figuras da
literatura ocidental. Mas há alguns aspectos da sua vida que ainda hoje são
pouco claros, ou objecto de controvérsia, e outros que foram apenas levemente
aflorados e que a ortodoxia oficial prefere ocultar. Entre eles inclui-se a
paixão que Camões terá nutrido pelo jovem D. António de Noronha (1536-1553),
que foi pupilo do poeta e que morreu em Ceuta, nas lutas contra os mouros,
apenas com 17 anos.
Ganha
hoje cada vez mais consistência entre alguns eruditos que se têm dedicado ao
estudo da vida e obra do vate que o célebre soneto que a seguir se transcreve,
além de outros poemas explicitamente dedicados, terá sido consagrado à memória
do jovem fidalgo.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Passemos,
pois, aos factos.
A
primeira publicação conhecida sobre a vida de Camões, é de Pedro de Mariz (1550-1615).
Com o título “Ao Estudioso da Lição Poética”, é uma espécie de prefácio à
primeira edição de Os Lusíadas
(1613).
Manuel
Severim de Faria (1584-1665), Cónego da Sé de Évora, publica em 1624 um Vida de Camões, afirmando que se deve
buscar na obra poética os vestígios da sua vida.
Ainda
no século XVII, Manuel de Faria e Sousa (1590-1649) escreve duas biografias do
poeta para as edições monumentais de Os
Lusíadas e das Rimas. A primeira
foi editada em Madrid em 1639; a segunda, estava pronta para impressão à data
da morte do autor (1649) mas só foi publicada em Lisboa em 1685.
Estas
biografias, ainda que quase contemporâneas do poeta, além de conterem elementos
fantasiosos, suscitam mais interrogações do que fornecem esclarecimentos sobre
a vida de Camões. E nelas há algo que sugere pretenderem os autores ocultar
factos de que tendo conhecimento entendem preferível não mencionar.
No
século XVIII, escreveu-se bastante sobre Camões, mas nada de novo veio a lume.
Já no século XIX, João António de Lemos Pereira de Lacerda, 2º visconde de
Juromenha (1807-1887), inicia a publicação de umas Obras Completas (1860-1869), de que saíram seis volumes. Deve-se ao
visconde a determinação da data exacta da morte de Camões (1580 e não 1579,
como era referido pelos anteriores biógrafos) e a descoberta da sua sepultura
no convento de Sant’Ana.
Wilhelm
Storck (1829-1905), eminente filólogo, publicou pela primeira vez em alemão a Vida e Obras de Luís de Camões, edição
que viria a sair em versão portuguesa em 1897, com tradução e notas de Carolina
Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), investigadora célebre e a primeira mulher
a leccionar numa universidade portuguesa, a de Coimbra.
Desde
então, muitos têm sido os livros publicados sobre Camões, a sua vida e a sua
obra, oscilando entre a investigação erudita, a investigação fantasiada e o
romance: Teófilo Braga (Camões e o
Sentimento Nacional, 1891; Camões,
Época e Vida, 1907), José Maria Rodrigues (Fontes dos Lusíadas, 1905), Oliveira Martins (Camões, 1872, revisto em 1891), Augusto Epifânio da Silva Dias,
Joaquim Lourenço de Carvalho, A.J. Costa Pimpão, Aquilino Ribeiro, Américo da
Costa Ramalho, Aníbal Pinto de Castro, Campos Júnior, António Sérgio, Hernâni
Cidade, António José Saraiva, José Hermano Saraiva, Jorge Borges de Macedo, Jorge
de Sena, Aguiar e Silva, Vasco Graça Moura, etc., etc., para não falarmos de
Almeida Garrett ou de Antero de Quental.
Tem
sido pacífico entre os estudiosos que Camões serviu como criado, escudeiro ou
preceptor em casa de D. Francisco de Noronha, 2º conde de Linhares e de sua
mulher D. Violante de Andrade. Sobre a fidalguia de Camões apenas é mencionada
a expressão “cavaleiro-fidalgo” no alvará em que o rei, em 1572, lhe concede
uma tença de quinze mil reis anuais pelo período de três anos. Mas nos alvarás
seguintes (a tença foi renovada) de 1575, 1576, 1578 e 1582 (este já depois da
sua morte, a pedido da madrasta) a expressão desaparece surgindo tão só o nome
“Luís de Camões”. Só num alvará de 1585 se diz “Luís de Camões, cavaleiro da
minha casa” mas não “cavaleiro-fidalgo” o que é diferente.
A
vida atribulada de Camões tem sido tratada pelos especialistas já referidos,
que igualmente se debruçaram sobre a obra, que, sabemo-lo hoje, retrata aquela,
ainda que num registo poético.
Mas
apesar dos esforços desenvolvidos, continua a saber-se muito pouco sobre os
anos que Camões passou em Portugal, no norte de África ou na Índia e Orientes.
Pelo menos, as certezas são poucas, as hipóteses muitas. Não sabemos onde
nasceu e onde exactamente morreu (em Lisboa) e algum tempo após a sua morte,
desconhecia-se onde fora sepultado.
Constatou-se
depois que o fora na Igreja de Santa Ana, mas só anos mais tarde D. Gonçalo
Coutinho lhe mandou fazer sepultura própria, em campa rasa, com este epitáfio:
«AQUI JAZ LUÍS DE CAMÕES. PRÍNCIPE DOS POETAS DO SEU TEMPO. VIVEU POBRE E
MISERAVELMENTE E ASSIM MORREU, NO ANO DE 1579. ESTA CAMPA LHE MANDOU AQUI POR
D. GONÇALO COUTINHO. NA QUAL SE NÃO ENTERRARÁ PESSOA ALGUMA». A notícia da
morte foi tão pouco notada que até o ano indicado está errado. Camões morreu em
1580 e não em 1579. A igreja foi parcialmente destruída pelo terramoto de 1755
e nas escavações efectuadas no local em 1858 encontraram-se uns ossos (mas não
a lápide) que se supôs serem os de Camões. Quando em 1880, em momento de grande
exaltação patriótica, se procedeu à trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos
subsistiu a dúvida (que permanece) se os restos mortais depositados no Mosteiro
são efectivamente de Camões. Mas neste caso é o símbolo que importa.
À
morte de Camões ainda sua madrasta era viva e o poeta vivia com um escravo jau
(porque natural de Java), de nome António, que teria trazido da Índia e que,
presumivelmente o sustentava, pedindo esmola para ele.
Camões
serviu desde muito cedo em casa de D. Francisco de Noronha (1507-1574), futuro
2º conde de Linhares, e de sua mulher D. Violante de Andrade (filha de Fernão
Álvares de Andrade, que foi tesoureiro-mor e pertenceu ao Conselho de D. João
III). D. Francisco era o 5º filho do 1º conde de Linhares, D. António de
Noronha (1464-1551), que era filho do 1º marquês de Vila Real. Do seu casamento
(cerca de 1510) nasceram 13 filhos e filhas e mais uma filha fora do casamento,
isto segundo a actual genealogia oficial. Sustentam alguns autores que houve ainda
mais uma filha dentro do casamento, D. Joana, isto segundo D. António Caetano de
Sousa (1674-1759), autor da História
Genealógica da Casa Real, que menciona duas filhas com o nome de Joana. A
primeira teria sido enviada para África e teria “morrido no mar”. Mais tarde,
os pais voltariam a dar o nome de Joana a uma outra filha, a décima na ordem
cronológica. Porquê?
Os
autores desta tese defendem que Camões teria tido uma paixão (correspondida)
por sua ama D. Violante (uns dez anos mais velha), que teria tido início quando
o poeta, ainda quase imberbe, entrara ao serviço da casa. Camões ter-se-ia
apaixonado depois pela filha da sua patroa, a referida D. Joana, que por isso
teria sido enviada para África, quiçá devido ao ciúme da mãe.
Ao
longo dos anos, e analisando a obra lírica, têm-se encontrada referências
susceptíveis de provar a paixão de Camões por Violante ou por Joana, ou ainda
por Natércia, Catarina, Dinamene, ou mesmo pela Infanta D. Maria, e outras que
nos dispensamos de citar. Como em tudo, ou quase, na vida de Camões, não
existem certezas quanto a estas paixões ou suas destinatárias. Só as explícitas
dedicatórias ao filho primogénito dos condes de Linhares, D. António de Noronha,
aquele que morreu em Ceuta com 17 anos e que foi pupilo de Camões, permitem
enxergar uma afeição especial, que poderia não ser apenas um exercício
literário.
Na
altura em que Camões terá privado mais de perto com D. António, teria este 14
ou 15 anos e o poeta uns 26 ou 27. É inquestionável que os ligava uma forte
amizade.
O
soneto seguinte, dedicado a D. António, após ter conhecimento da sua morte em
Ceuta (29 de Abril de 1553), é um exemplo de uma eventual paixão pelo jovem,
numa altura em que as letras não permitiam aos poetas que fossem mais explícitos:
Em flor vos arrancou, de então crescida
(Ah! senhor dom António!), a dura sorte,
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos Antigos esquecida.
Uma só razão tenho conhecida,
Com que tamanha mágoa se conforte:
Que, pois no mundo havia honrada morte,
Que não podíeis ter mais larga a vida.
Se meus humildes versos podem tanto
Que co desejo meu se iguale a arte,
Especial matéria me sereis.
E, celebrado em triste e longo canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memória das gentes vivereis.
Também
a Écloga V é dedicada a D. António de Noronha:
A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado,
A branda voz, suspiros magoados,
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fará devido gasalhado?
Só vós, Senhor formoso e excelente,
Especial em graças entre a gente.
................................
Igualmente
este soneto, dedicado a um jovem cavaleiro morto em combate, tem indubitavelmente
como destinatário o mesmo D. António:
Alma gentil, que à firme Eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a glória, o nome a saudade.
Não sei se é mor espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja à gente,
Se um peito de diamante ou de serpente,
Fazeres que se mova a piedade.
Invejosas da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa,
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.
Oh! ditoso morrer! sorte ditosa!
Pois o que não se alcança com mil sortes,
Tu com uma só morte o alcançaste!
* * * * *
Comecei a escrever este texto há alguns meses. Devido a outros afazeres, fui obrigado a interrompê-lo, não tendo podido retomar até agora a investigação que me propusera efectuar. Assim, e para que ele não fique totalmente no olvido, já que ignoro quando poderei concluí-lo, resolvi proceder hoje, Dia consagrado a Camões, à sua publicação.
Acrescentarei apenas que D. António de Noronha está sepultado no Convento do Beato, como quase toda a sua família. A história dos descendentes do 2º conde de Linhares, especialmente de sua filha D. Joana, e onde se poderão encontrar elementos que corroborem a tese aqui expendida, ainda que contrariada pela ortodoxia oficial, da paixão do Poeta pelo seu discípulo (uma atracção perfeitamente natural, ontem como hoje), constitui matéria a que me dedicarei oportunamente.
Túmulo de D. António de Noronha |
Acrescentarei apenas que D. António de Noronha está sepultado no Convento do Beato, como quase toda a sua família. A história dos descendentes do 2º conde de Linhares, especialmente de sua filha D. Joana, e onde se poderão encontrar elementos que corroborem a tese aqui expendida, ainda que contrariada pela ortodoxia oficial, da paixão do Poeta pelo seu discípulo (uma atracção perfeitamente natural, ontem como hoje), constitui matéria a que me dedicarei oportunamente.
4 comentários:
Sem querer negar a possibilidade de haver uma relação homossexual com um jovem adolescente (quem sou eu para tal coisa), convém lembrar que os costumes da época, muito mais do que os de agora apesar de toda a licença que abunda, permitiam declarações poéticas de carácter amoroso entre homens sem que com isso significasse qualquer relação homossexual. O que raio será, por exemplo, uma amor tão puro visto nos olhos do poeta? Um amor puro não exclui, à partida, qualquer conotação mais erótica ou sensual?
Sem querer negar a possibilidade de haver uma relação homossexual com um jovem adolescente (quem sou eu para tal coisa), convém lembrar que os costumes da época, muito mais do que os de agora apesar de toda a licença que abunda, permitiam declarações poéticas de carácter amoroso entre homens sem que com isso significasse qualquer relação homossexual. O que raio será, por exemplo, uma amor tão puro visto nos olhos do poeta? Um amor puro não exclui, à partida, qualquer conotação mais erótica ou sensual?
Há toda a probabilidade de ser verdade. Os literatos e historiadores têm contornado o tema, ou mesmo evitado. A ortodoxia oficial a isso obrigava no antigo regime e os costumes permanecem intactos. Algumas pessoas que estudaram o assunto, recordo-me de Natália Correia, afirmam a pés juntos ser verdade e Natália disse que até publicaria uma obra sobre o assunto, o que aliás nunca fez, talvez por ter morrido antes de tempo.
Os poemas transcritos no blog são evidentes. Seriam apenas uma encomenda de família ou uma amor meramente platónico, como usa dizer-se. Ou teria Camões passado aos factos antes da partida do jovem para África.
Teria muito interesse que alguém pudesse dedicar-se ao estudo aprofundado deste tema.
Outra explicação para essa afeição pelo jovem António de Noronha, que não a pederástica, poderia resultar do moço ser filho adulterino de Camões e da D. Violante de Noronha. Se havia uma diferença de 12 ou 13 anos entre eles, seria perfeitamente possível que Camões fosse o pai do moço. Sabendo disso, a morte do jovem terá desgostado bastante o poeta, seu pai...
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