domingo, 3 de junho de 2012

TÂNGER, ANOS CINQUENTA



A escritora francesa Mona Thomas acabou de publicar um interessante livro, Tanger 54, sobre uma enigmática pintura comprada numa "feira da ladra" em Beuzeville.

Trata-se de um pastel com a inscrição "Will. S Burroughs TANGER 54".

Aproveita Mona Thomas para descrever a atmosfera de Tânger nos anos cinquenta, «une société exclusivement masculine, des fêtes et tout qu'il faut pour bien s'amuser». É nesta época que passam ou residem na cidade, ainda zona internacional e depois integrada no reino de Marrocos, algumas notáveis figuras das artes e das letras europeias e americanas. Referem-se Paul Bowles, Francis Bacon, William Burroughs, Tennessee Williams, Gore Vidal, Lucien Freud, Ian Fleming, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, a Beat Generation. Tânger, cidade que foi também lugar de eleição de Oscar Wilde, Paul Morand, André Gide, Jean Genet, Samuel Beckett, Truman Capote, Gertrude Stein, Roland Barthes, Michel Foucault e tantos outros vultos da cultura do século passado.



Como escreve, a propósito, Jérôme Garcin, no Nouvel Observateur, a cidade era «a capital de todos os prazeres interditos, paraíso artificial e inferno da prostituição», que oferecia as vantagens de uma cidade internacional, com oitenta e quatro bancos e mais de quinhentos bordéis, uma grande parte de rapazes.

As investigações da autora levaram-na a reconstituir algumas ligações homossexuais mais duradouras, especialmente as de Paul Bowles, escritor e compositor, que viveu cinquenta e dois anos na cidade, cuja obra se encontra traduzida em várias línguas, entre as quais a portuguesa, e cujo livro The Sheltering Sky (O Céu que nos protege), foi passado ao cinema por Bernardo Bertolucci. Manteve Bowles algumas relações continuadas, nomeadamente com os então muito jovens Mohamed M'rabet e Ahmed Yacoubi.

Refira-se, por curiosidade, que, de acordo com o seu site oficial na net, Paul Bowles viveu algum tempo em Portugal, na Costa da Caparica e em Albufeira.

Consultando numerosos documentos, e ouvindo os testemunhos dos que, ainda vivos, habitaram Tânger no seu "período áureo", que os marroquinos de hoje tentam apagar da história, Mona Thomas avança várias hipóteses, para o retratado e para o autor do desenho, considerando como provável que a pintura (a inscrição não é uma dedicatória) representa Ahmed Yacoubi, que foi amante intermitente de Francis Bacon, o célebre pintor que, a convite de Bowles, viajou até Tânger, onde passou largos períodos da sua vida. Sendo Yacoubi vocacionado para a pintura, Bacon muito o ajudou na sua carreira  e será do próprio Bacon a autoria do desenho. Existe uma única fotografia de ambos, que se reproduz.


Francis Bacon e Ahmed Yacoubi

Das peripécias para a identificação do desenho não cabe aqui falar (leia-se o livro) nem do que, durante muitos anos, Tânger representou para o imaginário (e o real) ocidental. Existe vasta bibliografia e, do ponto de vista dos autóctones, é fundamental a leitura dos livros de outro jovem, Mohamed Choukri, mais tarde publicados em francês e amplamente difundidos, sendo o mais significativo de todos Le pain nu, até há poucos anos proibido em Marrocos.

Regista-se aqui a edição de Tanger 54 para despertar o interesse dos estudiosos por um período riquíssimo de criação cultural, para lá dos aspectos do foro íntimo, também eles testemunho de uma época e de uma cultura ainda não sujeitas ao "politicamente correcto".

2 comentários:

Zephyrus disse...

Não me recordo do grande autor do século XIX que estudou as regiões onde as práticas de relações sexuais entre homens tinham sido frequentes ao longo da História e onde eram culturalmente «aceites». Curiosamente, entre os locais onde a «sodomia» era prática comum surgia o Norte de África ou o Próximo Oriente, além do Sul da Europa ou do Novo Mundo. Numa estada em Londres em 2005 recordo-me de ouvir falar na confusão que houve num bar gay, quando um membro da família real do Omã agrediu outro homem. Também não há muito tempo, num hotel londrino, um membro da família real da Arábia Saudita terá assassinado o companheiro, por ciúmes. Segundo alguns homossexuais assumidos que conheci num encontro de jovens cientistas em Inglaterra, em termos sexuais tudo é permitido às elites dos países árabes, mesmo os fundamentalistas: visitam com regularidade Londres, cidade onde vivem a sua sexualidade recalcada. Também segundo um amigo próximo, cujo pai foi embaixador na Jordânia, as relações homossexuais não são raras dentro das elites do país. Que se faça então a reflexão sobre a evolução de alguns países do Norte de África e do Próximo e Médio Oriente, no que diz respeito aos direitos e liberdades individuais, desde que foi conquistada a independência das potências europeias e desde a queda do Império Otomano.

ZÉ DOS ANZÓIS disse...

Claro que Tânger foi uma espécie de Meca para o mundo intelectual gay, onde até as famílias, por razões económicas mas não só, enviavam os seus filhos ao encontro dos notáveis estrangeiros que passavam ou viviam na cidade. É todo esse mundo perdido que as autoridades marroquinas hoje tentam apagar, por má consciência das dificuldades económicas do país ou por um falso moralismo que sempre foi apanágio dos "falsos " muçulmanos.

Recorde-se pois Tânger e que o autor do blogue nos possa dar mais elementos sobre a vida na cidade que permitiu alguns dos maiores desenvolvimentos da cultura ocidental e da própria cultura árabe.