domingo, 3 de setembro de 2023

"WANDERWEG" OU NO RASTO DE RICHARD STRAUSS

Li por estes dias Wanderweg (1986), de Jack-Alain Léger (1947-2013), na edição portuguesa de 1991, que então comprara e que permanecera a aguardar oportunidade de leitura, até hoje!

O autor, de seu nome Daniel Théron, usou o pseudónimo de Jack-Alain Léger e também os de Melmoth, Dashiell Hedayat, Eve Saint-Roch e Paul Smaïl. Teve uma infância complicada que haveria de reflectir-se na sua carreira e que o levaria a trocar frequentemente de nome literário. O seu percurso de escritor foi caótico, julgando sempre ser perseguido pelos editores, mas deve-se-lhe um romance que foi um best-seller na época, Monsignore. Lera dele, em tempos, sob o pseudónimo de Paul Smaïl, La Passion selon moi e Ali, le Magnifique, este sobre o famoso caso Rezala, do nome de Sid Ahmed Rezala, o "assassino dos comboios", um rapaz argelino que fora colectivamente violado aos nove anos por jovens na casa dos 20 anos e que assassinaria posteriormente algumas raparigas em comboios, já depois da família ter emigrado para França. A sua primeira condenação deveu-se a ter violado, com 15 anos, um rapaz de 13 anos, num parque subterrâneo, em Marselha.

Entre os 15 e os 20 anos, a sua vida decorreu entre alguns assaltos, violações de rapazes e de raparigas, prostituição e diversas detenções, além das três raparigas mortas, duas em comboios, conforme referido acima. As testemunhas do caso são unânimes em afirmar que Rezala era um rapaz lindo e de cativante simpatia.

Procurado por toda a França, refugiou-se em Portugal, tinha então 20 anos, mas acabou por ser detido em Lisboa pela polícia portuguesa (14 de Janeiro de 2000), quando se preparava para fugir para as Canárias. Vivera alguns dias na margem sul com um homem de 40 anos, que conhecera num bar gay da capital portuguesa.

Tendo a França pedido a sua extradição, a Justiça portuguesa hesitou, pois a nossa Constituição proíbe a extradição quando o réu arrisca prisão perpétua. Em conformidade, Rezala apelou para as instâncias superiores, mas tendo a França garantido oficialmente que a pena máxima possível de ser-lhe aplicada seria de 30 anos, o Supremo Tribunal de Justiça anuiu à extradição (24 de Maio de 2000).  Sid Ahmed Rezala apelou para o Tribunal Constitucional (que dispunha de 80 dias para se pronunciar), mas em 28 de Junho de 2000 suicidou-se por asfixia na prisão portuguesa, sem sequer ter sido julgado ou condenado.

Mas deixemos o Caso Rezala e voltemos a Wanderweg.

Este livro é construído em torno de uma personagem, o famoso compositor e maestro alemão Bruno Arnhein (nome fictício), inspirado na figura de Richard Strauss. Mas a personagem não é, nem pretende ser, um alter ego do autor de O Cavaleiro da Rosa, apesar das piscadelas de olho à sua vida e obra. A acção decorre essencialmente na Alemanha Nazi, embora aluda recorrentemente ao período anterior, com muitas citações dos tempos de Guilherme II, de Francisco José e da República de Weimar. Ao longo do livro (que é extenso, mais de 400 páginas) permanece a sombra de Adolf Hitler, desde antes do seu acesso ao poder até à sua morte. 

O autor faz surgir muitas figuras históricas e outras inventadas ou maquilhadas. Por exemplo, o famoso libretista de Arnhein, o poeta Egon von Rosenberg, homem cultíssimo mas de aspecto repugnante, obeso e ridículo, pederasta de urinol, sempre envolvido com jovens prostitutos, rico e judeu, não é, nunca poderia ser, Hugo von Hofmannsthal. Judeu e rico, e grande escritor, sim, mas nada mais. E sucede-se o cruzamento entre figuras reais e figuras imaginárias, para satisfazer o objectivo do romance, que se estende desnecessariamente, prejudicando por vezes a economia da obra. É verdade que a análise psicológica das pessoas e das situações é muitas vezes brilhante, porém o excesso de pormenores quebra o ritmo da narração, especialmente quando a cronologia dos acontecimentos navega num vai-vem sucessivo.

Deve reconhecer-se que Jack-Alain Léger conhece muito bem o período que retrata, que conhece a história da Europa, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, que está ao par dos lugares emblemáticos da alta sociedade da época, dos seus costumes, das suas grandezas e das suas misérias, que está perfeitamente familiarizado com o mundo da música e sobretudo com o da ópera. 

Assistimos à ascensão do Nazismo, à indiferença dos alemães, indignados com as consequências do Tratado de Versalhes, ao insuportável aumento do custo de vida, à aliança de comunistas e nazis contra o governo de Weimar, à República Soviética da Baviera, à vitória democrática de Hitler, a última vitória democrática, ainda que o Führer dispusesse, até perto do fim, mesmo sem eleições, de um amplo apoio das massas. Mas a perseguição dos judeus e dos homossexuais, mais dos primeiros do que dos últimos, e a arbitrariedade do Poder, tornou-se insustentável nos derradeiros anos do regime. 

A perseguição dos judeus já fora anunciada no Mein Kampf, e os alemães, francamente anti-semitas, não se mostraram preocupados. Os judeus dominavam então a economia alemã. A perseguição dos homossexuais foi mais complexa. À partida, estes não adivinharam os perigos, pois se até Ernst Röhm, chefe das SA e companheiro de luta de Hitler desde a primeira hora, era abertamente homossexual. E o Nazismo exaltava a beleza masculina, era uma estética mais do que uma ideologia, e contou nas suas fileiras, até ao fim, com numerosos homossexuais que não chegaram a ser perseguidos. Sabemos que os últimos tempos do Império (o II Reich) e o período de Weimar foram extraordinariamente abertos à homossexualidade. Sendo o comunismo soviético de Estaline profundamente anti-homossexual, fazendo a União Soviética violentas críticas sobre as complacências sexuais do regime nazi e havendo também no espírito de Hitler uma aversão aos valores burgueses de Weimar, tudo isso terá pesado na perseguição que viria posteriormente a verificar-se. Mas para o Führer o cúmulo da "desgraça" era ser simultaneamente homossexual e judeu. Curiosamente, há muitos testemunhos de que o próprio Hitler era homossexual. Entre os livros mais documentados sobre a matéria conta-se A face oculta de Hitler, de Lothar Machtan, editado pela Bertrand em 2002.

Mas concentremo-nos no livro, cuja riqueza só a sua leitura permitirá revelar. Arnhein tem dois filho, um, Siegfried, que se tornará braço direito do Doutor Goebbels, outro, Friedrich, que será um militante anti-fascista. O compositor Arnhein, que comporá (como Strauss) obras para o regime e foi Director de Música do Reich, sem nunca se filiar no partido, manterá inicialmente uma atitude um pouco ambígua, pelo que será incomodado pelos "Aliados" no fim da Guerra. Todavia, terá sempre considerado ridícula a grandiloquência nacional-socialista. Também nos aparecem muitas vezes no livro Richard Wagner, Cosima, Luís II, Freud, Nietzsche, Mahler, Furtwängler, Bruno Walter, Schönberg, Elisabeth de Áustria ou Francisco José, dizendo (cito de cor) que "nada lhe seria poupado", depois de tumultos, greves, incêndios (o Ringtheater), guerras, o assassinato de seu irmão Maximiliano, o suicídio (?) de seu filho Rodolfo (no livro está irmão: erro do autor ou do tradutor ?), o assassinato de sua mulher Elisabeth e o ataque terrorista contra seu sobrinho Francisco Fernando, acontecimentos verificados nos seus quase 68 anos de reinado.

O livro está construído como uma partitura musical e sendo de qualidade irregular possui trechos absolutamente excepcionais, quer pela concepção, quer pela descrição. Não será exagero dizer que a personalidade do autor está perfeitamente espelhada nesta obra e que ele mesmo se encontra encarnado em muitas das suas personagens. A tradução portuguesa não é exemplar e mostra-se especialmente deficiente no que respeita a nomes próprios e a termos musicais. Algumas imprecisões flagrantes podem dever-se ao próprio autor mas não conheço o original.

As semelhanças de Bruno Arnhein com Richard Strauss são por demasiado evidentes. Uma das óperas mais célebres de Arnhein é La Contessina, escrita em homenagem a sua mulher, a Princesa de Werdenberg, que inclui uma Valsa que se tornou célebre em toda a Alemanha. Ora a Princesa de Werdenberg, a "Marschallin", é a protagonista de O Cavaleiro da Rosa. Também Arnheim foi Reichsmusikkammer, como Strauss, ainda que honorário, e escreveu o Hino para os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, tal como Strauss. E, como este, escreveu as Três Últimas Canções, que são Quatro, no caso de Strauss. Pela "conivência" com o regime nazi foi Richard Strauss também abrangido pelo "Processo de Desnazificação", uma monstruosidade psicológica, que só poderia ter sido inventada pelos "Aliados", suponho que sugerida pelos norte-americanos. Uma coisa é julgar crimes de guerra ou crimes ordinários, outra é julgar ideologias, assunto sempre complexo e perigoso. Segundo esse princípio, os americanos e ingleses poderiam ter sido julgados pela invasão do Iraque, mas não houve para eles um Tribunal de Nuremberga.

Um fio condutor da narrativa do livro é o escritor suíço Jean Schreiber que se avista uma vez com Arnhein e depois, no estrangeiro, algumas vezes, com sua filha Pamina, e que pretende escrever uma biografia, ou romance, sobre Arnhein. E que é por esta considerado um mau escritor. Lembrei-me, mas posso estar errado, de Jean-Jacques Servan-Schreiber (J-J S-S), escritor e jornalista, que foi o fundador e director da revista francesa "L'Express".  O verdadeiro J-J S-S era francês, mas viveu com a jornalista, escritora e mulher política Françoise Giroud, que era suíça.

Autor de algumas dezenas de romances, alguns de enorme sucesso e até adaptados ao cinema, mas de personalidade depressiva desde a infância, Jack-Alain Léger, que era homossexual, suicidou-se em 17 de Julho de 2013 (com 66 anos), defenestrando-se do 8º andar do seu apartamento em Paris.

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