domingo, 17 de setembro de 2023

O ENGATE DOS VAGABUNDOS

Foi publicado há algumas semanas Prélude à son absence, primeiro romance de Robin Josserand, francês, de 31 anos, bibliotecário em Lyon.

Trata-se de um livro presumivelmente autobiográfico, em que o narrador, suposto alter ego do autor, é um jovem de 30 anos, que trabalha na Bibliothèque de la Part-Dieu, em Lyon. Nos dezassete andares do edifício, o narrador, de que não sabemos o nome, aborrece-se entre as estantes de livros, os ficheiros, as obras de arte e os objectos anacrónicos que ali permanecem desde 1972, data de inauguração da biblioteca. E possui um fascínio especial por Jean Genet, que se revela ao longo da obra e do qual cita, em epígrafe, a citação da tarja da 13ª edição do Journal du voleur: «Il faut d'abord être coupable.»

Aliás, o autor diz ao que vem logo no primeiro parágrafo do livro: «Si je devais réfléchir à ce pour quoi j'ai commencé à écrire, je dirais que la littérature, pour moi, consiste à décrire de beaux jeunes hommes. Des garçons partout, des garçons tout le temps: le project vain d'un voyeur innocent. Mais à force de buter, le désir s'est usé. À ceux croisés régulièrement dans ma rue, je refuse désormais mon regard, regard qui n'est plus ce qu'il était, qui ne s'attarde plus partout, que je peux dès lors laisser aller sans crainte. La jouissance me fait l'effet d'un coup reçu au sommet du crâne et le plaisir vient cogner dans ma tête comme un troupeau de bêtes fuyantes. Dorénavant, ma vie est en surdine et d'aucuns diront que j'ai un peu abandonné la partie. Cette existence est devenue laide, décevante. Je n'écris plus. Je viens d'avoir trente ans.»

Talvez por isso, o narrador manifesta agora uma predilecção especial pelos sem-abrigo e nos intervalos em que abandona o serviço para se passear pelas ruas adjacentes não deixa de perscrutá-los com um atento olhar. Assim, surpreende um dia, sentado em frente de uma farmácia, um jovem vagabundo que, pela sua beleza, lhe desperta particular atenção. E há uma troca de sorrisos. 

Durante alguns dias, o rapaz não se mostra nas redondezas, que o narrador percorre com redobrada atenção. Julga vê-lo ali ou acolá, mas é sempre um outro clochard. Até que finalmente o descobre e se vai estabelecendo um parco relacionamento, através de oferta de cigarros, de uma pequena moeda, da oferta da valiosa 13ª edição do Journal du voleur, que o narrador subtrai da biblioteca e que presume possa interessar ao sem-abrigo.

Os encontros furtivos de rua sucedem-se, até que o narrador o convida para se instalar no seu apartamento. Convite aceite após alguma hesitação do rapaz, que desde o início percebeu o jogo e deixa claro estar fora de questão qualquer relação sexual.

Mas o narrador não perde a esperança de ver aquele corpo sujo, que não despe uma peça de roupa, cujo vestuário miserável instintivamente o excita. E tentará a sua sorte, citando Koltès: «Ce n'est pas toujours celui qui aborde qui est le plus faible.»

Com persistência, consegue saber o nome e a idade do rapaz: Sven, 22 anos. 

A instalação de Sven no apartamento não implica deste a aceitação de quaisquer regras ou a prestação de quaisquer favores sexuais. Entra e sai às horas que lhe apetece, levando uma vida obscura, entre desaparecimentos bruscos, desejos insólitos e telefonemas insistentes que escapam à compreensão do narrador. E há, também, pelo meio álcool e drogas. Nem remexendo nos dois sacos com os seus pertences, que o vagabundo depositou na sua casa, o narrador consegue saber algo da sua vida, salvo que nasceu em Paris, talvez no seio de uma família burguesa e que, por opção, se tornou clochard. E encontra uma pequena fotografia de Sven, que subtrai, já que este recusa terminantemente deixar-se fotografar.

A vida sobressaltada do narrador prossegue, com ausências forçadas ao trabalho, devido ao ritmo alucinante em que se tornou o seu quotidiano. O apartamento é agora um local de imundície e de desassossego. As impertinências, as más vontades, os desejos insólitos e provocadores de Sven sucedem-se. E a paciência do narrador parece ilimitada. Mas para evitar que o rapaz, por quem está apaixonado, desapareça definitivamente (o que já quase aconteceu), resolve convidá-lo para uns dias de repouso na Bretanha, na ilha de Groix, donde lhe será difícil evadir-se. A viagem será um  pesadelo. E as férias também. A recusa a contactos permanece inalterável e a mão na perna ou no pescoço de Sven vale 50 ou 100 euros, mesmo assim regateados, porque este não está normalmente disposto. Por isso, o narrador, continua a saga de se masturbar sozinho no quarto várias vezes ao dia. 

Mas as férias têm um desfecho imprevisível, que não deve ser aqui revelado.

A obra é salpicada amiúde por citações musicais e literárias, como convém no domínio culto dos livros que tratam de homossexualidade. Nunca é demais invocar os grandes espíritos que também apreciaram as carnes dos seus semelhantes sexuais, já que sabemos, desde sempre, que o espírito está pronto mas a carne é fraca.

Até cerca de metade do livro a narrativa de Robin Josserand é muitíssimo interessante, revelando um promissor escritor. Com a continuação, a estória perde ritmo, talvez pela repetição de situações e pela circunstância, que se me afigura inverossímil, do narrador aceitar durante tanto tempo todas as impertinências do rapaz, mesmo tratando-se de uma verdadeira paixão, o que não parece ser o caso. A atracção física por Sven afigura-se relevar mais de um interesse sexual e de uma obsessão fetichista. Sempre houve, no milieu homossexual, um desejo por mendigos, vagabundos, drogados, quiçá criminosos, como existe um interesse, nunca desmentido, por fardas. E o coração tem razões que a razão desconhece.

Com a reserva apontada, Prélude à son absence prenuncia uma estimulante rentrée literária.



Sem comentários: