Foi publicado no mês passado Ce que je sais de toi, primeiro romance de Éric Chacour, natural de Montreal e filho de pais egípcios. O autor é diplomado em economia aplicada e relações internacionais, trabalha hoje no sector financeiro e partilha a sua vida entre o Québec e a França.
Este livro dá-nos o ambiente da sociedade egípcia dos anos 60 do século passado até ao princípio deste século. É um magnífico fresco de um Egipto que eu ainda conheci e que se encontra em vias de extinção. E o autor, ainda que nascido no Canadá, sabe bem do que fala, no caso concreto, do que escreve.
Neste texto, utilizarei os nomes egípcios na transliteração que Chacour usa no livro, que é a usual em francês, mas que não corresponde à transliteração oficial da língua árabe para caracteres latinos, normalmente respeitada pelas versões em inglês.
A estória é simples e comum, os pormenores deliciosos, o desfecho talvez surpreendente. Mas o todo é magnífico.
Resumamos:
Tarek [um nome de que conservo as mais gratas recordações], filho de uma abastada família do Levante, há muito tempo imigrada no Egipto, torna-se médico, a exemplo do seu pai. Como todo o bom egípcio, mesmo que não muçulmano (Tarek é cristão) casa-se com uma mulher, Mira Nakeilian (da comunidade arménia), por quem se julga suficientemente atraído. A família habita na zona elegante de Dokki, numa villa em cujo rés-do-chão o pai possui o consultório, que Tarek herdará por morte deste. A mãe é a grande matriarca, como acontece nas sociedades árabes (cristãs ou muçulmanas), quem verdadeiramente tem a última palavra, ainda que no Ocidente se propague a ideia de que as mulheres são consideradas inferiores nos países orientais. Tarek tem uma irmã, Nesrine, uma espécie de confidente, que só casará muito mais tarde, depois dos "acontecimentos". E há, inevitavelmente, uma criada, Fatheya.
[Deve dizer-se que desde o século XVIII habitavam o Egipto muitas comunidades "estrangeiras": judeus, gregos, italianos, sírios, libaneses, palestinianos, franceses, ingleses, etc., algumas das quais possuíam até jurisdição própria. O Egipto, teoricamente fazendo parte do Império Otomano, era na realidade uma colónia britânica, desde a derrota das tropas francesas aquando da invasão de Napoleão Bonaparte em 1798. Em 1919, Londres concedeu uma independência nominal ao Egipto mas só com a Revolução de 1952 (promovida pelo Movimento dos Oficiais Livres), que depôs o rei Faruq, que abdicou em seu filho Ahmed Fuad II (uma criança) se começou a caminhar para uma verdadeira independência. Em 1953, foi proclamada a República, com o general Naguib como presidente, e em 1954 um golpe de Estado depôs Naguib e instituiu um Conselho da Revolução (presidido por Nasser) que liderou o país entre 1954 e 1956. Em 1956, o coronel Gamal Abdel Nasser foi eleito presidente da República.]
Ainda em vida do pai, a quem já ajudava no consultório, Tarek resolve abrir um dispensário na paupérrima zona de Moqattam [ao lado da Cidade dos Mortos, essa extensão de vários quilómetros quadrados, no leste do Cairo, que abriga uma infinidade de sepulturas, onde vivem mais de seis milhões de pessoas e que tive a oportunidade de visitar, discretamente, uma vez]. Tarek desloca-se semanalmente ao dispensário e é sempre aguardado por uma interminável fila de pacientes a quem atende gratuitamente, ou mediante parco pagamento, nada que se compare com os honorários da sua rica clientela de Dokki.
Um dia, no fim da consulta, um rapaz aguarda-o à saída. Pede-lhe que vá a sua casa ver a mãe que já não se pode deslocar. Tarek acede e constata que a mãe, mulher simples, muito pobre mas inteligente, que o acolhe com entusiasmo (e insiste em estar de boa saúde), é vítima de uma progressiva doença do sistema nervoso. A pedido do filho, Tarek acede continuar a visitá-la e acaba por receber o filho, Ali, um belo rapaz de 19 anos, como auxiliar no dispensário. Esperto e empenhado, o rapaz torna-se imprescindível e os próprios pacientes começam a pedir a Ali, que verifica os casos mais urgentes, precedência no seu atendimento pelo doutor.
A mãe está encantada com a nova ocupação do filho (não sabemos se ela conhece as outras ocupações dele, pois o filho todos os dias se desloca ao centro da cidade, porventura para vender alguns bens recuperados da sucata de que é armazém a zona de Moqattam, o bairro dos zabbaline (em árabe, do lixo) e pede a Tarek que, por sua morte, tome o rapaz sob a sua protecção.
E, finalmente, a mãe morre. Tarek decide contratar Ali para seu auxiliar na própria clínica de Dokki, sem prejuízo do dispensário que continua a ser objecto da sua actividade benévola. É claro que Tarek, talvez imperceptivelmente (tais ideias nunca lhe tinham ocorrido), começa a ficar seduzido por Ali.
Nestes anos, Nasser é a grande figura do Egipto, as mulheres consideram-no o homem mais belo do país. Pelo meio da estória há a Guerra dos Seis Dias, o assassínio de Sadate, e mil e uma coisas que os conhecedores do Cairo conhecem e adoram. Ruas, lojas, comidas, monumentos, artistas, músicas, locais diversos,etc.
Um dia, Tarek é visitado inesperadamente por Omar, homem já idoso, corpulento e muito rico, um dos grandes comerciantes de algodão do Egipto, uma figura poderosa na vida política e social do país. Chega no fim da consulta e insiste em estar a sós com o médico. Tarek que o conhece, Omar é visita de casa, recebe-o, tendo aquele insistido em saber se estão sós, já que se trata de assunto muito importante. O homem começa por invocar o amor por sua mulher Dahlya, com quem está casado há 32 anos, e tenta explicar-se por meias palavras o seu problema. Como Tarek não o entende bem, Omar acaba por ser mais explícito e o médico fica a saber que o homem se queixa de que desde há algum tempo não consegue excitar-se e ter ejaculação. Tarek vai tentar explicar-lhe mas eis que Ali surge da dependência ao lado. Omar tem um ataque de fúria e sai intempestivamente. Tarek repreende Ali pela sua aparição súbita mas este diz-lhe que não tem importância, que ele conhece o homem e que é um seu cliente. Tarek fica siderado. "Cliente?". Então o rapaz confessa-lhe que Omar é um dos clientes com quem ele habitualmente se prostitui e que o homem não precisa realmente de medicamentos, conforme se recorda da última vez que esteve na cama com ele. E diz a Tarek: «Tu crois que tu fais le seul métier où les gens acceptent qu'on les palpes?». E Tarek interroga-se: » Imaginer Omar avec Ali. Le corps usé du premier se payant la vigueur du second. Quel tarif pouvait justifier d'imposer sa déchéance à un jeune homme tel qu'Ali?».
E a uma pergunta de Tarek sobre a sua prostituição «Ce n'est pas difficile pour toi?», Ali responde: «Qu'est-ce que tu veux dire? Difficile de devoir vendre mon corps? De coucher avec des hommes que je n'ai pas choisis? Avec des vieux, des malpropres? D'obéir à leurs fantasmes? Non, ça va, ce n'est pas difficile. Et toi, ce n'est pas difficile d'examiner les incontinents et de manipuler des plaies gorgées de pus? Tu veux que je te dise? Ce qui est difficile, c'est d'attendre toute une nuit et de rentrer sans avoir trouvé de client...»
O livro está recheado de sábias e oportunas reflexões do autor sobre a vida, a natureza humana, o mundo.
[A homossexualidade, é condenada penal, social e moralmente no Egipto pela religião muçulmana, como, aliás, em toda a parte, pelo judaísmo e pelo cristianismo, uma herança trágica das religiões monoteístas, mas sempre foi largamente praticada nos países árabes (e em todo o mundo) apesar dos mais variados interditos. Supõe-se que as novas organizações designadas LGBTQI+,etc., com os seus programas radicais, contribuirão poderosamente para acentuar a rejeição das ligações do mesmo sexo. Em grande parte do mundo árabe, até há bem pouco tempo, a actividade homófila foi significativamente tolerada, ainda que «sobre a nudez forte da verdade estivesse o pouco diáfano manto da hipocrisia».]
Retomemos o fio condutor.
A mulher de Tarek, que já notou as cada vez mais demoradas permanências do marido no consultório e no dispensário, começa a fazer viagens pelo pais, com o pretexto de passar uns dias nesta ou naquela cidade e, depois, já sem qualquer pretexto. E Tarek resolve instalar Ali em casa durante as ausências da mulher, e tornam-se amantes.
Mas começa a difundir-se na cidade o boato de que Tarek é ajudado na sua prática médica por um rapaz de má vida. Boato sem dúvida propagado por Omar: a melhor defesa é o ataque. Entretanto as marcações de consultas começam a ser anuladas e a clientela elegante da clínica começa a rarear. E há mesmo uma proposta de egípcios regressados da Arábia Saudita e convertidos ao salafismo que pretendem adquirir o dispensário (a caridade sempre foi uma das armas dos Irmãos Muçulmanos) e até de admitir Ali desde que este "renuncie ao pecado".
De repente, aconteceu o impensável. O consultório de Tarek foi vandalizado, mas sem que algum objecto tenha sido roubado. E o médico descobre o seu gato de estimação, Tarbouche, pregado numa parede, ainda com o sangue a escorrer. E esta inscrição na parede: «Il t'attend en enfer.» Quem? O gato, ou Ali?
O rapaz tinha sido dispensado dias antes, para serenar os ânimos, mas não voltará a reaparecer. A mãe anuncia-lhe que Ali morreu, provavelmente afogado. Tarek não acredita. Quer ver os despojos. Esta diz-lhe que ela mesma, quando soube, ordenou que deitassem o cadáver na vala comum, já que era empregado da casa (do consultório) e não tinha família. Tarek, desesperado, tenta encontrar indícios da morte, mas debalde. Vai mesmo ao Mogamma [célebre e gigantesco edifício administrativo que existe na Praça Tahrir e ao pé do qual passei muitas vezes] para descobrir o que sucedeu, que registos existem, mas não obtém qualquer informação.
Neste momento, Tarek toma a decisão mais importante da sua vida. Abandona o Egipto e emigra para o Canadá, onde reiniciará a vida a partir do zero.
Termino aqui a descrição da narrativa, quando o livro se encontra sensivelmente a meio. Mas não seria correcto da minha parte desvendar os inesperados episódios seguintes e a surpreendente conclusão.
Ce que je sais de toi é um livro notável, pelo que diz e pelo que deixa entrever. Como primeiro romance, constitui uma agradável surpresa. E recorda-nos a coexistência (nem sempre pacífica) entre as diversas comunidades egípcias: muçulmana, copta, ortodoxa grega, melkita, maronita, etc., pelos seus usos e costumes. A comunidade judaica quase desapareceu depois da revolução de Nasser.
Procurei sintetizar da melhor forma a primeira metade do livro. Obviamente com muitas falhas, já que não é condensável a riqueza do texto. Os interessados poderão adquirir a obra e apreciar a sua qualidade.
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