A revista "Lire - Magazine Littéraire" publicou no seu número 495, do mês corrente, um dossier especial consagrado à Academia Francesa.
Já em 2014 Daniel Garcia dera à estampa o seu livro Coupole et dépendances - Enquête sur l'Académie française, hoje completamente esgotado, rico de informação e sobre o qual comecei a escrever um post que não cheguei a terminar, razão porque não foi publicado neste blogue.
A Academia Francesa foi fundada em 1634 e oficializada em 1635 pelo Cardeal-Duque de Richelieu, com a missão de zelar pela língua francesa, contando quarenta membros, número que se manteve até aos nossos dias. Faz hoje parte do Institut de France, criado em 1795 (com a contribuição de Napoleão Bonaparte) , que engloba mais quatro instituições: Academia das Inscrições e Belas-Letras (1663, Colbert); Academia das Ciências (1666, Colbert); Academia das Ciências Morais e Políticas (1795, Convenção) e Academia das Belas-Artes (1816, Luís XVIII). O Institut está instalado no edifício do Quai-Conti, mandado edificar pelo Cardeal Mazarin e destinado a um colégio para educação de 60 gentis-homens.
É apaixonante a história da Academia, e o livro citado dá-nos disso conta, mas vamos restringir-nos aqui apenas a alguns tópicos salientados pela revista. Todos desejam sentar-se sob a Cúpula mas é de bom tom desdenhar um lugar enquanto se não possui. Muitos dos Imortais estão hoje completamente esquecidos pela opinião pública, mesmo a mais bem informada, e notáveis personalidades jamais se sentaram nos fauteuils do Quai-Conti.
A Academia é uma instituição conservadora, que só muito lentamente se vai adaptando às novas realidades. Durante séculos apenas foram admitidos homens, e foi preciso esperar por 1980 para se registar o ingresso de uma mulher (por sinal, lésbica), a grande escritora Marguerite Yourcenar. Notáveis figuras, como Georges Dumézil e Claude Lévi-Strauss bateram-se contra a entrada de mulheres e o famoso historiador Pierre Gaxotte chegou mesmo a dizer: «Se elegermos uma mulher, acabaremos por eleger um negro...». Tinha razão: a Academia elegeria, que me lembre, dois negros. Em 1983, Léopold Sédar Senghor, ex-presidente do Senegal, e em 2013 o haitiano Dany Laferrière, autor do livro Comment faire l'amour avec un Nègre sans se fatiguer que comentei neste blogue. Um tom mais escuro só pode engrandecer a vetusta instituição. A segunda mulher a entrar na Academia foi a historiadora Jacqueline de Romilly (1988) e a terceira a também historiadora (de origem georgiana) Hélène Carrère d'Encausse (1990), actualmente secretário-geral perpétuo da Academia (ela recusa usar o título no feminino), ainda em funções, à beira dos seus 92 anos. Até hoje ingressaram na instituição dez mulheres, das quais seis se encontram vivas.
Hélène Carrère d'Encausse, secretário-geral perpétuo
O principal trabalho da Academia é a elaboração do célebre Dictionnaire, de cuja nona edição se ocupam agora os académico. Foram já publicadas oito edições: 1694, 1718, 1740, 1762, 1798, 1835, 1878 e 1935. As duas grandes questões que se colocam são a feminização e os anglicismos. Inicialmente relutante, a Academia tem cedido à consagração de algumas designações no feminino, atendendo a que muitas mulheres têm hoje acesso a novas profissões. Mas sempre muito lentamente e nunca cedendo às tentações do politicamente correcto. Os anglicismos constituem outro quebra-cabeças para a Academia, designadamente os que provêm de termos técnicos, maxime, do vocabulário digital. Foi uma tragédia para o mundo a imposição generalizada da língua inglesa, mais concretamente da língua americana. Se o imperialismo britânico conseguira pôr uma parte do planeta a entender-se em inglês, os americanos, graças à informática, aos filmes de Hollywood, à financiarização da economia e à globalização, haveriam de transformar a língua outrora usada por Shakespeare no único veículo de comunicação à escala planetária. Realizaram o que o esperanto nunca alcançou. Por exemplo, certos termos informáticos são usados exclusivamente em inglês, idem na medicina, idem nas comunicações aéreas. Já é tarde para o francês recuperar o a sua influência como língua internacional, língua de cultura, língua diplomática, que foi durante muitos anos.
A Academia, possui um considerável património, que lhe advém da herança da mais importante fortuna imobiliária de França. Louis-Henri de Bourbon, o último príncipe de Condé constituíra seu herdeiro universal o duque de Aumale. Não tendo também herdeiros, o duque de Aumale, por sua morte, em 1897, legou ao Institut a sua imensa fortuna. E seguindo este exemplo, tornou-se chique, durante muitos anos, os homens ricos (e pretensiosos) legarem a sua fortuna ou parte dela ao Institut, ou directamente à própria Academia. Por isso, muitos académicos vivem em apartamentos (de função) pertencentes à instituição, que pode conceder anualmente inúmeros prémios, do mais variado cariz, alguns de avultadas importâncias.
Em 1945, a Academia excluiu do seu seio o marechal Pétain, o escritor Charles Maurras (os seus lugares nunca foram todavia preenchidos em vida destes) e os escritores Abel Bonnard (que fora ministro de Vichy) e Abel Hermant, curiosamente ambos homossexuais. O diplomata e escritor Paul Morand, que sempre ambicionou fazer parte dos Imortais, viu recusada a sua entrada em 1959, por causa do seu passado colaboracionista, devido à oposição do general De Gaulle, protector da Academia enquanto chefe do Estado. Conseguiria ser finalmente eleito em 1968, já com 80 anos, mediante a anuência de De Gaulle, que contudo não recebeu o escritor para a audiência da praxe.
A designação de Imortais, usada pelos académicos, decorre da inscrição ostentada no selo que foi oferecido pelo Cardeal de Richelieu à instituição: «À l'Immortalité». Os académicos usam a célebre farda verde bordada a ouro e uma espada, que no caso das mulheres pode ser substituída por outro adereço. E também bicórnio e capa. Marguerite Yourcenar não usou a casaca bordada optando por um trajo desenhado expressamente para o efeito. Mas Hélène Carrère d'Encausse (grande amiga de Putin) usa casaca e espada e apesar da idade avançada não pensa renunciar (como alguns dos seus antecessores) ao lugar de secretário-geral perpétuo.
Actualmente, não podem ser admitidas na Academia pessoas com mais de 75 anos, o que reduz as esperanças de muitos pretendentes. Encontram-se vagas nesta altura cinco cadeiras e os académicos analisam o perfil dos potenciais candidatos (é de norma a apresentação de uma candidatura, ainda que possam ser os Imortais a propor o nome de um dos seus futuros pares). As admissões são sujeitas à votação dos membros, devendo o candidato obter metade dos votos mais um de um quorum de vinte membros, isto é, metade dos académicos efectivos. Se a maioria absoluta não se verificar, o escrutínio é adiado, sendo que os votos brancos não contam para o estabelecimento dessa maioria. Os votos brancos assinalados com uma cruz representam uma rejeição. Se após três ou quatro escrutínios não se atingir a maioria absoluta, a Academia decidirá se deve prosseguir a votação ou abandonar a candidatura. A eleição deve merecer a aprovação do presidente da República, que é o patrono da Academia, consubstanciada na audiência concedida ao novo eleito. Como se escreveu acima, o general De Gaulle, acabando por aceitar a eleição, recusou-se a receber Paul Morand.
Segundo o académico Jean-Marie Rouart, há várias qualidades indispensáveis para ingressar na Academia Francesa. Entre elas, aponta a obstinação e a modéstia. Os eleitos não o são apenas pelos seus livros mas também pelo seu perfil. E há uma qualidade essencial: serem frequentáveis. Personalidades como Baudelaire ou Verlaine, ainda que literariamente notáveis, não teriam qualquer sorte. Diz Rouart: «A França é um país que mostrou sempre uma paixão extraordinária pela literatura. É o seu ADN: a herança greco-latina, o espírito francês... Para os ingleses, seria o desporto, para os alemães, a música... Para a França, é a língua.»
Valéry Giscard d'Estaing, que como presidente da República fora já patrono da Academia, nunca escondeu o desejo de tornar-se membro efectivo. E apresentou a sua candidatura, em 2003, para o lugar vago pela morte de Léopold Sédar Senghor. A sua candidatura suscitou uma tempestade sob a Cúpula. Muitos entenderam que tendo ele estado acima da Academia pelas funções que exercera, a sua candidatura rebaixava essas funções. Mas conseguiu finalmente ser eleito por 19 votos, em 34 votantes, juntando-se aos três outros presidentes que anteriormente haviam envergado o uniforme verde: Thiers, Poincaré e Deschanel.
Registadas estas breves notas, os interessados no tema poderão recorrer ao livro citado, se conseguirem encontrá-lo, ou ao próprio sítio da Academia no Google.
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