A jornalista francesa Florence Aubenas, grande repórter de "Le Monde", acabou de publicar L'inconnu de la poste, que se encontra no top das vendas em França, classificação plenamente justificada.
Trata o livro de um caso que à data apaixonou o país. Em Dezembro de 2008, Catherine Burgod, de 41 anos, grávida de cinco meses, foi assassinada com 28 facadas na sala traseira da pequena estação dos Correios de Montréal-la-Cluse (commune de l'Ain) em que trabalhava. O seu cão permaneceu junto do cadáver e foram roubados 3.000 euros. As suspeitas viraram-se primeiro para o ex-marido (ela estava grávida de um novo companheiro) mas o ADN inocentou-o. As atenções voltaram-se a seguir para um marginal que se instalara há um ano na aldeia, visto habitualmente na companhia de dois toxicómanos, e que se tornou rapidamente no culpado ideal. Nem mais nem menos do que Gérald Thomassin (n. 1974), então com 34 anos, que sempre levara uma vida precária mas que se notabilizara aos 16 anos por ter interpretado, quase por acaso, o protagonista do filme Le petit criminel (1990), de Jacques Doillon, o que lhe valeu o César de "meilleur jeune espoir masculin" (1991). Na sequência dessa revelação cinematográfica, Thomassin entraria noutros filmes (quase sempre como delinquente), com intermitência, devido à sua vida um pouco vagabunda e ao consumo de álcool e de droga.
Tornando-se suspeito do crime aos olhos da população, embora sem provas, Thomassin decidiu abandonar a aldeia, mudando-se em 2009 para Rochefort, onde acabaria por ficar sem domicilio fixo, até obter um alojamento de emergência em 2012. Em 2013, foi acusado do assassinato de Catherine e colocado em prisão preventiva, mas em 2015 passou a prisão domiciliária com pulseira electrónica, que acabaria por quebrar, sendo de novo enviado perante a Justiça e condenado a prisão efectiva. Em 3 de Junho de 2016, sem ter sido ainda julgado, foi posto em liberdade, já que a lei francesa não permite a detenção provisória de uma pessoa por mais do que três anos.
Em 2017, um segundo suspeito foi preso por cumplicidade e colocado em prisão provisória, embora sem quaisquer provas evidentes. Mas o choque haveria de chegar em 2018, quando o ADN de um jovem condutor de ambulâncias, de 29 anos, de origem guineense, com registo criminal limpo, é identificado, circunstancialmente, com o ADN do sangue encontrado no local do crime. O rapaz acabaria por confessar o roubo (teria visto o cofre aberto), mas nunca a morte da funcionária. Gozando da melhor reputação na região, não teria então alertado para a situação com medo de que a sua cor negra o pudesse comprometer.
Gérald Thomassin |
Em Agosto de 2018, o juiz de instrução de Lyon, decidido a encerrar o dossier, promoveu uma confrontação entre os três indiciados. Thomassin tomou o comboio em Rochefort mas não chegou ao seu destino. Incontactável, jamais foi visto por alguém. A família presume que tenha morrido.
Nessa última diligência, em Lyon, Thomassin seria certamente absolvido, uma vez que as suspeitas mais fundamentadas se concentravam no jovem guineenese.
Num registo entre o inquérito policial e alguma ficção, Florence Aubenas, que se apaixonou pelo caso, encontrou-se várias vezes com Thomassin, reconstituindo a história do crime e investigando pormenorizadamente a vida das personagens. E debruçou-se também sobre a carreira do actor antes do trágico acontecimento. O resultado é um retrato emocionante de uma França estranha em que o acaso parece governar a vida dos protagonistas desta narrativa.
2 comentários:
Muito interessante. Não conhecia o assunto,embora siga com alguma atenção a actualidade francesa. Mas,entretanto, de 2018 até agora, o que sucedeu? O guineense foi condenado,dados os indícios do ADN, ou houve outros desenvolvimentos neste bizarro caso?
Para o Anónimo de 24 de Abril:
Desconheço a evolução da situação. O livro encerra-se com o desaparecimento de Thomassin.
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