segunda-feira, 5 de abril de 2021

ORDEM MORAL

A RTP1 transmitiu no sábado o filme Ordem Moral, de Mário Barroso, sobre o célebre caso de Maria Adelaide Coelho da Cunha (1869-1954) que, em 1918, fugiu da sua residência com o motorista Manuel Claro, 20 anos mais novo, com quem viria a viver até ao fim da vida.

Este acontecimento, que abalou a sociedade portuguesa da época, e chegou a ser discutido no Parlamento, resume-se em breves palavras. Filha e herdeira de Eduardo Coelho, fundador do "Diário de Notícias", e mulher de Alfredo da Cunha, que sucedeu ao sogro como director e administrador do jornal, Maria Adelaide, senhora prendada e frequentadora da melhor sociedade, abandonou sem aviso a sua casa de Lisboa na companhia do ex-motorista da família, Manuel Claro, que havia sido despedido dois meses antes pelo patrão. 

Para se apropriar da fortuna, e porque pretendia vender o jornal, o marido conseguiu interditá-la, com a com a cumplicidade dos grandes psiquiatras de então, Egas Moniz (Prémio Nobel da Medicina em 1949), Júlio de Matos e José Sobral Cid, que a consideraram louca e incapaz de gerir os seus bens. De facto, uma geração de reputados especialistas, todavia pouco aptos à compreensão dos sentimentos humanos e agrilhoados a tradições puritanas e a dúbios interesses políticos e financeiros. Meu pai, que ainda conheceu pessoalmente o professor Egas Moniz, considerava-o um escroque.

Maria Adelaide foi compulsivamente internada, Manuel Claro foi preso (acusado de rapto e violação) e Alfredo da Cunha conseguiu vender o jornal. Mais tarde, veio a verificar-se que várias mulheres haviam sido internadas para abafar "escândalos" e como castigo. A lei então vigente acabou por ser alterada.

Ao contrário do que se julga, a Primeira República foi uma época muito puritana e severa nos costumes, tanto ou mais do que o Estado Novo. Recordo, por exemplo, que a comedida peça Mar Alto, de António Ferro, foi retirada do cartaz do Teatro de São Carlos e proibida por imoralidade, em 1923, o que motivou um violento protesto subscrito por muitas personalidades, entre as quais Fernando Pessoa, António Sérgio, Raul Proença, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão ou Alfredo Cortez.

Em 1922, Maria Adelaide e Manuel Claro puderam finalmente viver juntos, até à morte desta, em 1954. Instalados no Porto, subsistiram graças aos trabalhos de costura dela e ao salário dele, como taxista, já que, não tendo sido levantada a interdição, o marido e o filho se apoderaram da totalidade da fortuna da família. A atracção de Maria Adelaide pelo rapaz é algo estranha e supõe-se até que não tenham sido amantes, nem chegassem a ter relações sexuais, pois ele conservou sempre a posição subalterna de empregado. Agustina Bessa-Luís, que sobre o caso escreveu o seu romance Doidos e Amantes, considera mesmo que Manuel seria homossexual, faceta que é evidenciada no filme ao apresentar cenas bastante explícitas ocorridas entre ele e um amigo.

Ordem Moral, em que Maria Adelaide é interpretada pela actriz Maria de Medeiros, fornece uma visão resumida mas elucidativa deste drama português do século passado, infelizmente tão comum no nosso país e no mundo.

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