sábado, 1 de maio de 2021

COMEÇOU AGORA E NÃO VAI ACABAR TÃO DEPRESSA!

Foi publicado há dias o livro de José Sócrates, prefaciado por Dilma Rousseff (antiga presidente do Brasil), Só Agora Começou. Presumo que a "Operação Marquês" não irá terminar tão depressa. 

Neste livro, José Sócrates descreve os 288 dias passados, em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora, desde 21 de Novembro de 2014, acompanhando a narrativa de considerações posteriores ao período de detenção.

Transcrevo o § 19:

«A prisão como prova:

A prisão preventiva foi utilizada para investigar; mas  também para aterrorizar; para despersonalizar e, neste caso em particular, para silenciar. Mas prendeu-se também para, em certo sentido, "provar". Quem quis esta prisão injusta sabe bem que a prisão funciona como prova aos olhos da opinião pública. A prisão substitui-se assim ao processo, à investigação, à instrução, aos indícios, às provas, ao contraditório, ao julgamento - e até à sentença. É, numa palavra, a prisão como prova. Afinal, se está preso, que mais é ainda preciso provar?» (p. 29)


UM ESCLARECIMENTO: 

Não conheço o Processo da Operação Marquês, não conheço o conteúdo da Acusação do Ministério Público, não conheço o Despacho de Pronúncia do Juiz Ivo Rosa, tendo apenas lido extractos do resumo que este apresentou publicamente.

Mas conheço as noticias difundidas durante anos pela comunicação social, cirurgicamente transmitidas pelo Ministério Público, a quem competia a investigação e a elaboração da acusação.

Logo, não sou completamente ignorante do caso.

O livro de José Sócrates é um pouco repetitivo, ele mesmo o reconhece. Relata o que considera ser o abuso da sua detenção, episódios da prisão, a falta de equilíbrio num tribunal entre os procuradores do Ministério Público e os advogados de defesa, que deveriam situar-se ao mesmo nível, quando os procuradores se sentam ao nível do juiz, etc. E sustenta que a sua prisão teve por objectivo impedi-lo de se candidatar à presidência da República.

Contesta os casos em de que a Justiça o acusa: apartamento em Paris, PT, Parque Escolar, TGV, proximidade com Ricardo Salgado e muito mais. E lamenta a atitude da direcção do Partido Socialista. Não que desejasse a intervenção desta no processo, mas porque nunca teve uma palavra para condenar as prepotências a que foi sujeito, permitindo que se instalasse uma espécie de condenação pública sem julgamento, contrária ao direito à presunção de inocência. Essa a razão por que pediu a sua desfiliação do Partido. 

Uma das queixas de José Sócrates é que a de que todos os prazos de conclusão do inquérito foram ultrapassados, mesmo considerando a "especial complexidade" e as "circunstâncias excepcionais". Ora isto é verdade e afigura-se claramente inconstitucional, embora a hermenêutica permita sempre leituras diversas para todas as coisas.

Refere-se depois José Sócrates a Mário Soares e ao apoio que dele sempre recebeu, exibindo cartas trocadas durante o período da sua prisão. E alude também à prisão de Lula da Silva, já depois do impeachment de Dilma Rousseff.

Segundo Sócrates, só no primeiro interrogatório soube como começara o processo: por causa de uma sociedade de transmissão de jogos de futebol da liga espanhola, propriedade de Carlos Santos Silva e de Rui Pedro Soares, cuja existência ele desconhecia em absoluto. E clama: «Dêem-me o homem, encontrarei o crime», era preciso encontrar um crime para o condenar!

José Sócrates nega que alguma vez tivesse sido proprietário do apartamento de Paris, que pertencia, de facto, ao seu amigo Carlos Santos Silva. Aliás, quando se iniciaram as obras nesse apartamento, Sócrates alugou um outro na capital francesa, onde viveu até ao fim da sua estada em Paris.

Protesta também o autor pelo facto de ter aguardado trinta e seis meses para que o Estado tivesse deduzido qualquer acusação, depois de o prender e o difamar, quando ministros e deputados, em 2015, protestaram contra o facto de um cidadão português ter estado preso preventivamente e sem acuação, durante cinco meses, em Timor-Leste.

O livro contém numerosas citações de escritores e filósofos e está escrito num estilo que corresponde à personalidade do antigo primeiro-ministro. Não adianta muito sobre o que é do conhecimento público, embora permita salientar o facto de a sua detenção, em 21 de Novembro de 2014, filmada por uma cadeia de televisão convidada para o efeito, quando regressava de avião a Portugal, recorde outro espectáculo televisivo proporcionado pela Justiça: a detenção na Assembleia da República, em 21 de Maio de 2003, do deputado Paulo Pedroso, indiciado por pedofilia, e posteriormente absolvido por um tribunal comum. Penso eu de que a indicação às televisões de que uma pessoa vai ser detida constitui não só uma violação (entre muitas) do segredo de justiça como um profundo desprestígio para a própria Justiça. 

Não refere José Sócrates, no seu livro, a questão do recebimento de numerosas quantias em numerário que constitui, julgo, uma das coisas que mais intriga o cidadão comum. Tratando-se de importâncias avultadas, porque não utilizar os mecanismos de transferência bancária ou emissão de cheque? Até porque não é natural transportar em mão tanto dinheiro. Esta foi uma das questões a que José Sócrates não respondeu na entrevista que concedeu à TVI depois do despacho de pronúncia, e que teria constituído uma oportunidade de esclarecimento. Confesso que, assistindo à entrevista, me impressionou a agressividade de José Sócrates para com o jornalista, que também não conduziu da melhor forma a conversa.

O despacho de pronúncia do juiz Ivo Rosa provocou um sobressalto cívico, e pessoas desvairadas subscreveram uma petição a pedir a remoção do juiz. Até o inefável Marques Mendes disse no seu comentário habitual na SIC que o juiz era um perigo público ou um perigo à solta, já não me recordo exactamente dos termos, talvez fossem mesmo os dois. Essas pessoas ignoram, ou fingem ignorar, que os juízes são juridicamente irresponsáveis e inamovíveis, e que existe um órgão chamado Conselho Superior da Magistratura, presidido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para apreciar o comportamento dos juízes.

Não sou jurista mas presumo que Ivo Rosa aplicou a lei segundo as melhores interpretações. E se assim não foi, o recurso para o Tribunal da Relação, de imediato anunciado pelo Ministério Público, permitirá decidir da bondade das decisões. Aliás, também José Sócrates recorreu para a Relação do respectivo despacho de pronúncia.

A questão da corrupção, que agora regressou em força às páginas dos jornais, às ondas da rádio e aos ecrans de televisão é velha como o mundo. Suponho que existe já legislação suficiente, ou até talvez excessiva, para tentar prevenir a corrupção. Talvez não existam os meios adequados e talvez haja alguma corrupção que seja, por natureza, indetectável. Depende também da dimensão da mesma. Há países onde a corrupção é endémica, e em que é praticada desde o pedinte de rua até ao magistrado supremo, cada um na sua escala. Nestes casos, nunca poderá ser eliminada.

Mas é necessário evitar que a Respublica seja minada por aquele tipo de corrupção que extravasa do que poderíamos chamar a "esfera doméstica", que integra o quotidiano dos cidadãos e que por esse facto nem mesmo se chama corrupção. O que não pode acontecer é os agentes do Estado receberem favores em troca de decisões parciais.

Regressando agora ao livro de José Sócrates e à "Operação Marquês". Com tantos "cancelamentos" de actos acusatórios, alguns deles por se encontrarem prescritos, outros por infundamentação da acusação, parece que a investigação do Ministério Público não se encontrará suficientemente concretizada, apreciação que caberá naturalmente ao Tribunal da Relação. Embora mesmo assim José Sócrates discorde da pronúncia do juiz Ivo Rosa.

Presumo que este processo ou mega-processo (uma deficiência já reconhecida pelo presidente do Supremo) de muitos milhares de páginas e de horas de escutas não conhecerá um desfecho nos próximos tempos. Dos recursos do despacho de pronúncia para a Relação, da apreciação e decisão da Relação, do envio do processo para o tribunal de 1ª Instância, dos eventuais recursos para a Relação da decisão da 1ª Instância, ou mesmo de recursos para o Supremo, vão decorrer anos. 

Por isso há quem pergunte se não seria melhor haver processos de dimensão razoável para poderem ser apreciados num razoável período de tempo. O que leva muita gente a interrogar-se se estes processos não terão um carácter político, como já se disse acerca do processo da Casa Pia. 

Aguardemos...

 

 

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