segunda-feira, 24 de maio de 2021

CRIMES EM BOMBAIM, NOS SANITÁRIOS PÚBLICOS

Por sugestão de um amigo indiano residente em Chennai (a antiga Madras) encomendei Meurtres à Mahim, edição franco-indiana, publicada em Março deste ano, mas que inicialmente se encontrava indisponível na Amazon, só tendo recebido o livro esta semana.

Posteriormente à encomenda, e reflectindo sobre o uso da língua inglesa na Índia, pesquisei e encontrei afinal uma edição inglesa, aliás a original, Murder in Mahim, publicada em 2017. A indicação deste meu amigo, quanto à edição francesa, dever-se-á ao facto de ele ser francófono. A edição inglesa teve um extraordinário sucesso no país.

Trata-se de um livro do escritor indiano de ascendência goesa Jerry Pinto (n. 1966), autor de obra já relevante, e largamente premiada (obteve o equivalente indiano do Prémio Goncourt), também jornalista, poeta, tradutor, e ele mesmo natural de Mahim, uma zona da imensa metrópole que é a cidade de Bombaim, hoje conhecida como Mumbai, com mais de dez milhões de habitantes.

Podendo ser classificado como romance policial, o livro é muito mais do que isso. É verdade que o autor nos mantém em suspenso até às últimas páginas, mas trata-se especialmente de uma obra sobre relações humanas, decorrendo a intriga nos meios homossexuais subterrâneos de Bombaim, cuja existência é desconhecida da maioria dos indianos, incluindo da própria "comunidade" homossexual.

Começa a história pelo assassinato de um rapaz nos urinóis públicos (mal iluminados) da estação ferroviária de Mahim, frequentados especialmente por homossexuais e por prostitutos (homossexuais ou não) que atendem os seus clientes no local, dada a escassez de privacidade numa região onde uma parte dos habitantes dorme na rua. Insiste o autor que os mais generosamente dotados pela natureza conseguem obter razoáveis proventos e se convertem em utilizadores assíduos daquela edícula, tornando-os frágeis presas da polícia, que os utiliza como armadilha para prender e chantagear os respeitáveis chefes de família que passam à noite discretamente pelo local para consumar algumas fantasias.

A partir do primeiro crime, desenvolve-se uma inesperada teia de inter-relações e de assassinatos, envolvendo polícias e civis, que Jerry Pinto manuseia habilmente para nos dar a conhecer o submundo da cidade, as suas misérias mas também as suas grandezas, as cumplicidades, as afinidades electivas, a esperança e as promessas da juventude, a decadência da velhice e a fatalidade da morte.

As personagens principais são um jornalista reformado, Peter Fernandes, que resolve ajudar na investigação o seu amigo comissário de polícia de Mahim - e que, logo no início, descobre que o seu próprio filho, Sunil, é gay (não gosto da palavra inglesa mas por esta vez passa) - e o dito comissário, Jende Shiva, um homem sério mas cuja esquadra integra alguns polícias corruptos, dois dos quais, no final,  acabarão por morrer também, um assassinado e o outro suicidado.

O autor esclarece-nos que o Tribunal Superior de Delhi anulou em 2009 o artigo do Código Penal indiano "Secção 377" que criminalizava a homossexualidade, decisão invalidada quatro anos mais tarde pelo Supremo Tribunal de Justiça da Índia. Só em 6 de Setembro de 2018, o Supremo Tribunal viria a considerar a "Secção 377" como inconstitucional.

Também é referida no livro, en passant, a circunstância da homossexualidade ter sido muito bem aceite na Índia durante séculos e só começar a ser condenada, criminal e socialmente, depois da instalação dos ingleses no subcontinente, primeiro como Companhia das Índias e depois como Império das Índias. Os súbditos de sua majestade britânica foram sempre muito puritanos (pelo menos nas aparências), especialmente na época vitoriana e até há bem poucos anos. Recordem-se os casos emblemáticos de Oscar Wilde e de Alan Turing!

Constituindo este livro um notável documento sobre a condição humana, não admira que a sua publicação original se tenha revelado um êxito, e que a tradução francesa inicie agora o seu caminho em outras geografias.

 

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