sexta-feira, 28 de maio de 2021

DA PROSTITUIÇÃO

Parece, mas não li o documento, que uma deputada ex-PAN apresentou um projecto de lei visando criminalizar os clientes da prostituição. Eu sei que em alguns países europeus existe legislação semelhante, mas é uma insanidade. Por um lado, porque jamais alguém saberá se existe uma relação prostitucional se ambos os intervenientes o não revelarem, depois, porque sendo a prostituição o mais antigo ofício que a História regista, nada nem ninguém a fará desaparecer, sendo a penalização dos utentes um acto contra-natura.

Sabemos todos que o sexo e a morte são os temas que, em geral, obcecam o género humano. Não é em vão que, para nos restringirmos à cultura ocidental, Fausto e Dom João são os grandes mitos da nossa civilização. Pouco tempo antes de morrer, Jorge de Sena, a mais notável figura intelectual portuguesa da segunda metade do século XX, em entrevista suponho que ao EXPRESSO (não disponho agora do texto), louvava as grandes virtudes da prostituição, como factor de equilíbrio nas relações sociais e como a possibilidade de relação sexual que restava aos velhos, aos feios, aos aleijados, em suma, a todos os que não possuíssem capacidade de atracção do seu semelhante e se vissem excluídos do universo erótico. Como estou a citar de cor, não sei se as palavras eram exactamente as que refiro, mas o sentido é o mesmo.

Escreveram-se já sobre o tema, centenas de livros, a favor e contra a prostituição, embora nem todos coloquem objectivamente o problema. Agita-se muitas vezes o fantasma de "vender" o corpo, e reciprocamente de "comprá-lo", como se não tivéssemos de comprar todos os dias aquilo de que necessitamos, vendendo o trabalho do nosso corpo (incluindo a mente). Estou propositadamente a simplificar o enunciado, pois o assunto obrigaria a muitos milhares de linhas. Acrescentarei apenas que há quem se prostitua por gosto, não por necessidade vital (os inquéritos testemunham-no), e é ténue a fronteira entre o prazer consentido e o prazer remunerado. Não utilizo aqui uma linguagem técnica, que os especialistas da matéria conhecerão melhor do que eu.

Também existem diferenças entre prostituição masculina e feminina, prostituição permanente e conjuntural, prostituição meramente circunstancial e efectivamente assumida, etc., dependendo também dos lugares, dos universos culturais, das épocas. 

Nem sei como se pode criminalizar a prostituição nos dias que correm, com o arsenal tecnológico que se encontra mundialmente ao nosso dispor, à distância de um clique. 

A propósito do assunto, reli obliquamente Prostitution: les uns, les unes et les autres, de Daniel Welzer-Lang, publicado em 1994 e que aborda o assunto, a partir de uma investigação realizada na cidade de Lyon e arredores. Embora com 27 anos, e muitas coisas tenham mudado nas últimas décadas em todas as áreas, é verdade que este livro se mantém actual no fundo, ainda que na forma se possa fazer uma abordagem diferente, como acontece em obras mais recentes.

O autor (com a participação dos colaboradores) trata equanimemente a prostituição feminina e a masculina (que embora mais discreta não será inferior), discorre sobre travestis, transexuais e transgéneros (o estudo das identidades ainda era embrionário à data), menciona o proxenetismo (a nossa legislação condena o lenocínio), salienta o facto de publicações como jornais, guias, etc., mencionarem (já naquela data) os locais de "engate", o que desviou muitos praticantes dos sítios de referência, enfatiza a importância das fardas na atracção dos homossexuais masculinos, o que sempre determinou uma acentuada preferência destes por marinheiros ou soldados, que em todos os países atraíram habitualmente numerosa clientela. 

Também é referido o pânico provocado pela sida nos prostitutos de ambos os sexos e nos seus clientes, que levou todos à adopção de especiais precauções, que ainda hoje são aconselhadas. Se o livro fosse escrito agora teria de mencionar o susto, que ainda se mantém, em consequência do Covid-19, de contágio muito mais perigoso. Estas grandes epidemias são particularmente nocivas para os trabalhadores do sexo.

A propósito da transexualidade, o livro evoca ainda Gilles Lipovetsky e Jean Baudrillard, que nela vêem um avatar da antiga figura do andrógino (página 174 e seguintes).

Aqui deixo estas breves considerações sobre assunto inesgotável, com a exclusiva preocupação de relembrar que não se deve exacerbar a "cultura" contra a "natura".


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