quinta-feira, 6 de maio de 2021

A ESPANHA DE PÉREZ-REVERTE

Por insistência de um amigo, li um livro publicado recentemente, Uma História de Espanha, de Arturo Pérez-Reverte, o escritor espanhol hoje mais lido em todo o mundo.

Conheço alguns romances de Pérez-Reverte, onde a História tem normalmente lugar, mas desconhecia esta sua incursão em terreno histórico propriamente dito, ainda que interpretado de forma muito pessoal.

É ESTE UM LIVRO QUE DEVERIA SER LIDO POR TODOS OS ESPANHÓIS.

O olhar de Pérez-Reverte sobre o passado (e o presente) de Espanha é profundamente irónico, de um humor corrosivo, acutilante e por vezes feroz. O autor a ninguém poupa e é de extrema severidade o julgamento que faz dos seus compatriotas. Desde os tempos remotos até hoje, o escritor relata as sistemáticas desavenças entre os espanhóis, que verdadeiramente se comprazem em odiar-se mutuamente. Monárquicos ou republicanos, conservadores ou progressistas, católicos ou ateus, ricos ou pobres, analfabetos ou letrados, centralistas ou autonómicos, ninguém escapa ao juízo implacável de Pérez-Reverte.

Mas os seus "ódios de estimação" dirigem-se sobretudo à Igreja Católica, responsável pelo secular atraso cultural de Espanha, com o seu beatério, a moral retrógrada, a Inquisição, a aliança com o Poder mais conservador, e à Inglaterra, a pérfida Albion, inimiga tradicional (e, por extensão, à América) a quem acusa de combater a emergência de qualquer hegemonia continental e de ter querido ingressar na União Europeia para a fazer implodir.

Para Filipe II, o rei-funcionário, há uma palavra de relativo apreço, apesar da eterna aliança entre o Trono e o Altar (que Verdi tão bem explicitou no texto de Schiller) mas não para Fernando VII, «o maior filho da puta que cingiu a coroa em Espanha» (p. 123), um «absoluto filho da puta» (p. 124), que, na pena de um Shakespeare, faria parecer Ricardo III um vulgar travesso. É verdade que Reverte usa uma linguagem muito vernácula, na acepção vulgar do termo. Uma linguagem e umas imagens dignas de provocarem o rubor das faces mais pudicas.

De Isabel II, filha de Fernando VII, alude Reverte aos seus amantes e amigos civis e militares, que desfilavam pela alcova real. E também aos amantes do marido, Francisco de Assis de Bourbon, que ele critica «não por ele ser homossexual normal, como qualquer outro, mas sim porque era maricas de ostentação e de gerânios na janela» (p. 137).

Transcrevo um parágrafo sobre Isabel II: «E, para mais, porque a Isabelinha (que não era uma lânguida Sissi imperatriz, muito pelo contrário) foi muito dada aos intercâmbios carnais e acabou, ou melhor, começou cedo, a alternar a sua real bissectriz com diversos jovens de boa aparência; ao ponto de, dos onze filhos que pariu - e sobreviveram seis -, quase nunca ter tido dois seguidos do mesmo pai. Foi mesmo trabalhar no duro. O que, pormenor simpático, valeu à nossa rainha esta elegante definição do papa Pio Nono: É puta, mas piedosa. O que situa este assunto no seu contexto. Entre estes diversos pais contaram-se, assim por alto, gente de palácio, vários militares - a rainha adorava generais - e um secretário particular. Por certo, e como pormenor técnico de importância decisiva mais adiante, apontaremos que o futuro Afonso XII (o de dónde vas tu triste de ti e o resto do poema) era filho de um engenheiro militar muito bonito chamado Enrique Puigmoltó.» (p. 137)

Procede o autor a uma análise curiosa da queda da Monarquia e do convite a Amadeu de Saboia, duque de Aosta, para ocupar o trono, de que este se fartou, deixando escrito: «Se ao menos fossem estrangeiros os inimigos de Espanha, ainda vá que não vá. Mas não. Todos os que com a espada, com a pluma, com a palavra, agravam e perpetuam os males da Nação são espanhóis.» (p. 145) Ocorre dizer (Reverte não o menciona) que antes do convite a Amadeu de Aosta, os espanhóis haviam sondado D. Fernando II de Portugal, e depois o rei D. Luís I, que declinaram o convite. Regressado a Itália, Amadeu haveria de morrer em 1890, vítima da epidemia de gripe.

Segue-se a proclamação da I República, e todos os seus desvarios, a restauração monárquica, na pessoa de Afonso XII, a regência de Maria Cristina e o reinado de Afonso XIII. Até à expulsão do rei e proclamação da II República, que levou ao extremo a exacerbação de ódio entre espanhóis, que conduziria à Guerra Civil de 1936-1939. O século XX espanhol é tratado por Pérez-Reverte com algum detalhe, descrevendo os vários chefes políticos e militares, o estado do país, as influências estrangeiras.

Impiedoso crítico dos governantes, até aos dias de hoje, Reverte escreve: «E neste ponto convém destacar um facto decisivo: à frente dos dois principais partidos, cujo peso era enorme, estavam dois políticos de estatura e inteligência extraordinárias, para os quais Pedro Sánchez, Mariano Rajoy, José Luís Zapatero e José María Aznar, só para referir quatro chefes de governo muito recentes, não serviriam nem para lhes engraxar os sapatos. Cánovas e Sagasta, o primeiro, líder do partido conservador, e o segundo, do liberal ou progressista, eram dois equilibristas da cora bamba que estiveram de acordo em repartir o poder de forma pacífica e construtiva, na medida do possível, salvando os seus interesses  e os dos tipos que eles representavam. Foi a isto que se chamou período (longo) de alternância ou de governo alternantes.» (p. 156)

É também destacada a posição do País Basco e da Catalunha, regiões consideradas hoje muito progressistas mas que mantiveram ao longo dos últimos séculos atitudes especialmente conservadoras. Não dá para explicar aqui, mas Reverte encarrega-se disso no livro. Desfilam depois figuras como Miguel Primo de Rivera, Manuel Azaña, Largo Caballero, Gil Robles, José Antonio Primo de Rivera (fundador da Falange), Calvo Sotelo, Emilio Mola Vidal, José Sanjurjo, e, finalmente, Francisco Franco Bahamonde, Caudilho de Espanha. Curiosamente, os dois últimos, generais que com Franco se haviam rebelado e chefiavam a insurreição contra o governo republicano, morreram em acidentes de aviação, deixando a Franco o campo livre para assumir a chefia do Estado.

Escreve Reverte: «Quando um papa, neste caso Pio XII, se dirige a um país como nação eleita por Deus, baluarte inexpugnável da fé católica, é claro que quem governa esse país vai estar um tempo longo a governá-lo. Nunca alguém teve um olfacto mais fino do que o  Vaticano, mais ainda naquele 1939, com a Segunda Guerra Mundial em ponto de rebuçado. Quanto a Franco e a Espanha era claro. O general que menos se comprometera com o golpe contra a República e que no entanto acabou por conseguir o poder absoluto, o militar frio que dirigira com crueldade, sem complexos e sem pressas, a metódica carnificina da Guerra Civil, iria durar bastante tempo. Quem não vise isso era cego. O franquismo vitorioso não era um regime militar, pois não eram os militares a governar, nem era um regime fascista, pois também não eram os fascistas a governar. Era uma ditadura pessoal e autoritária, a de Francisco Franco Bahamonde: esse galego cauteloso, inteligente, manobreiro, sem outros escrúpulos além da sua consciência pessoalíssima de católico fervoroso, anticomunista e patriota radical. Marimbava-se para tudo o resto, militares, Falange, carlismo, espanhóis em geral. Eram simples instrumentos para executar a ideia que ele tinha de Espanha. E nessa ideia ele era Espanha.» (pp. 204-5)

O leit-motiv do autor é o quase permanente clima de confronto entre os espanhóis, nomeadamente desde a I República. A propósito, cita o prólogo do livro A Sangre y Fuego (1937), do jornalista Manuel Chaves Nogales, que diz dever constituir matéria de estudo em todas as escolas: «Idiotas e assassinos surgiram e agiram com profusão e intensidade idênticas nos dois lados que partiram a Espanha [...] Na minha deserção tanto pesava o sangue derramado pelas quadrilhas de assassinos que exerciam o terror vermelho em Madrid como pelos aviões de Franco, assassinando mulheres e crianças inocentes. E eu tenho tanto ou mais medo da barbárie dos mouros, dos bandidos do Tércio e dos assassinos da Falange, como dos anarquistas ou comunistas analfabetos [...] O resultado final desta luta não me preocupa muito. Não me interessa grande coisa saber se o futuro ditador de Espanha vai sair de um lado ou do outro das trincheiras [...] Terá custado a Espanha mais de meio milhão de mortos. Podia ter sido mais barato.» (p. 201)

São estas duas Espanhas, desde há séculos antagónicas, que Fidelino de Figueiredo evoca no seu livro As Duas Espanhas, a que já me referi mais do que uma vez neste blogue.

«Nacional-catolicismo, é a palavra. O que define o ambiente. A pedra angular de Pedro foi o outro pilar, Exército e Falange à parte, sobre o qual Franco edificou tudo. [...] Foram abolidos o divórcio e o casamento civil, penalizou-se duramente o aborto e ordenou-se a estrita separação dos sexos nas escolas. Sociedade, moral, costumes, espectáculos, educação escolar, tudo foi posto sob o olho vigilante do clero, que nos primeiros tempos incluía os bispos a saudarem o Caudilho de braço estendido à porta das igrejas. [...] Havia multas e prisões por condutas morais inadequadas; e a isso temos de acrescentar, é claro, a infame natureza da condição humana, sempre disposta a apontar o dedo, marginalizar e denunciar - esses piedosos vizinhos de então, de agora e de sempre - as mulheres marcadas pelo opróbrio e pelo escândalo (as que, para nos entendermos, não punham o hijab de então, metaforicamente falando). Para não mencionar, é claro, a sexualidade alternativa ou diferente. Nunca, desde dois ou três séculos antes, se perseguira os homossexuais como se fez durante aquele tempo obscuro do primeiro franquismo, e ainda durou bastante tempo. Nunca a palavra maricas fora pronunciada com tanto desprezo e com tanta sanha.» (pp. 216-7-8)

«Enquanto não chegamos à última etapa da ditadura franquista, impõe-se uma reflexão retrospectiva e útil: uns afirmam que Francisco Franco foi providencial para Espanha, e outros afirmam que foi o pior que podia acontecer. Na minha opinião, Franco foi uma desgraça; mas também acredito que na Espanha prostituída, violenta e infame de 1936-39 não havia qualquer possibilidade de surgir uma democracia real; e que, se tivesse ganhado o outro lado - ou os mais fortes e disciplinados do outro lado - , provavelmente o resultado teria sido também uma ditadura, mas comunista ou de esquerda e com intenção idêntica de exterminar o adversário e eliminar a democracia liberal, que naquela altura do rebuliço estava de facto encostada às cordas.» (p. 223)

«A verdade é que, voltando a 1975, uma vez apagada a luzinha d'El Pardo, Juan Carlos foi proclamado rei jurando manter intacta esta barraquita, e foi aí que os cálculos falharam ao franquismo mais empedernido, porque - felizmente para Espanha - o rapaz saiu um bocadinho perjuro. Tinha sido bem educado, com preceptores que eram pessoas formadas e inteligentes e que ainda se mantinham perto dele. A essas excelentes influências se deveram os bons conselhos. [...] Ignoro, na verdade, até que ponto D. Juan Carlos era inteligente; mas os seus conselheiros não eram nada parvos.» (pp. 229-230) 

Transcritas que foram algumas passagens do livro de Arturo Pérez-Reverte, importa registar, como faz o autor no fim da obra, que os textos (91) incluídos neste volume foram publicados entre 5 de Maio de 2013 e 28 de Agosto de 2017, alternando com outros assuntos, na sua página de XL Semanal, suplemento que aparece aos domingos juntamente com vinte e dois jornais espanhóis, fornecendo a sua visão muito pessoal da história de Espanha, sem de forma alguma pretender ultrapassar os historiadores profissionais, nem mesmo qualquer historiador, embora alguns se tenham ofendido com a sua suposta intrusão. «Nesses noventa e um episódios passeei pela nossa história, pela dos Espanhóis, pela minha, um olhar próprio, subjectivo, feito de leituras, de experiência, de bom senso na medida do possível. Afinal de contas, uma longa vida de livros e viagens que nos moldam o olhar não decorre em vão, e até o mais desatento pode extrair de tudo isso conclusões enriquecedoras. [...] Ninguém que conheça o nosso passado pode ter ilusões; ou pelo menos eu não as tenho. Creio que nós, os Espanhóis, estamos infectados por uma doença histórica, perigosa, quiçá mortal, cuja origem talvez tenha aflorado ao longo de todos estes artigos: séculos de guerra, violência e opressão sob reis incapazes, ministros corruptos e bispos fanáticos, a guerra civil contra o mouro, a Inquisição e o seu infame sistema de delação e suspeita, a insolidariedade, a inveja como indiscutível pecado nacional, a falta atroz de cultura que nos pôs sempre - e continua a pôr-nos - nas mãos de pregadores e charlatães de qualquer índole, fizeram-nos como somos; entre outras coisas, um dos poucos países do chamado Ocidente que se envergonham da sua glória e se comprazem na sua miséria, que insultam as suas gestas históricas, que maltratam e esquecem os seus grandes homens e mulheres, que apagam o testemunho do que é digno e só conservam como arma de arremesso contra o vizinho, a memória do agravo e esse fratricídio suicida que salta aos nossos olhos como um escarro ao virarmos cada página do nosso passado (a maior parte dos nossos jovens ignoram, porque lhes apagámos isso da memória, que nós, os Espanhóis, já nos odiávamos antes de Franco).» (pp. 236.7)

NOTA: O livro segue o sinistro Acordo 90, pelo que tive de proceder às indispensáveis correcções ortográficas.

1 comentário:

Anónimo disse...

E que pena não haver um Perez-Reverte para a História de Portugal! Aliás, alguns dos problemas tradicionais espanhois tambem são portugueses. Não é por acaso que o Antero escreveu as "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares". O livro do Reverte é realmente muito bom,e muitas vezes divertido no seu humor corrosivo e sem contemplações. E é curioso referir neste post o Cánovas del Castillo, apreciável estadista, a cuja morte por estúpido atentado anarqista o Eça dedicou algumas magníficas páginas nas "Notas Contemporâneas", que por acaso li hoje. Coincidências.