sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

MAYERLING, O SUICÍDIO DA EUROPA




Na manhã do dia 30 de Janeiro de 1889, o arquiduque Rudolf de Habsburg, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi encontrado suicidado (embora existam versões não coincidentes) no Pavilhão de Caça de Mayerling, 25 km a sudoeste de Viena, na companhia de sua amante a baronesa Maria Vetsera.

Rudolf era o único filho varão do imperador Francisco José e de sua  mulher a imperatriz Elisabeth (da Casa de Wittelsbach, na Baviera, mundialmente conhecida por Sissi). O casal teve também três filhas: Sofia Frederica, que morreu em criança, Gisela e Maria Valéria.

As circunstâncias da tragédia que se desenrolou em Mayerling nunca foram devidamente esclarecidas. Existem testemunhos, inclusive dos membros da Família Imperial, de que Rudolf (que era casado com a princesa Stéphanie da Bélgica, um matrimónio politicamente imposto) e a jovem Maria Vetsera, que tinha então 17 anos, teriam sido assassinados. De resto, a Corte encarregou-se de mascarar imediatamente os factos, publicando no dia 31 um relatório médico em que se afirmava que o príncipe  morrera vítima de um aneurisma. De acordo com o protocolo da Casa de Áustria nenhum membro da Família Imperial se podia suicidar, até porque tal acto, condenado pela Igreja, impediria que fosse sepultado na Cripta Imperial da Igreja dos Capuchinhos, em Viena. Assim, Francisco José diligenciou rapidamente junto do Papa para que não houvesse impedimento aos funerais oficiais do arquiduque herdeiro. Quanto a Maria Vetsera, o corpo foi vestido e o rosto recomposto e, na madrugada seguinte, foi transportada morta numa carruagem, macabramente amparada por dois funcionários, e arrastada por eles para dentro de um caixão, ficando sepultada no cemitério de Heiligenkreuz, próximo de Mayerling.

As relações de Rudolf com Francisco José eram péssimas. Não só o arquiduque tinha ideias políticas muito diferentes das do pai, como nutria especial simpatia pelos (separatistas) húngaros e era partidário de profundas reformas no Império. Chegaram a atribuir-lhe uma tentativa de assassinar o imperador durante uma caçada. Possuía um carácter depressivo e padecia de uma grave doença venérea.

O suicídio de Rudolf em Mayerling, pelo modo como ocorreu e pelas consequências que dele resultaram, pode considerar-se, simbolicamente, como o primeiro suicídio da Europa. Morto Rudolf, e estando as mulheres afastadas da linha da sucessão devido à Lei Sálica, foi preciso designar um herdeiro. Francisco José tinha três irmãos mais novos: Fernando Maximiliano, que foi imperador do México e morreu fuzilado pelos republicanos em Queretaro, em 1867, Carlos Luís (que, devido a certa debilidade mental, renunciou a favor do filho, Francisco Fernando) e Luís Vítor (que nunca casou e que por causa da sua homossexualidade pública e ostensiva foi banido da Corte pelo irmão e morreu no Palácio de Klessheim, perto de Salzburg, com 76 anos).

Mas a fatalidade abatera-se sobre a Casa de Áustria. Depois da morte do filho, Elisabeth, que sempre detestara a rigidez da Corte e o feitio da sogra (a arquiduquesa Sofia), aumentou a frequência das suas viagens no Império e  no estrangeiro. Em 10 de Setembro de 1898, quando se dirigia do Hotel Beau-Rivage, em Génève (onde se encontrava pretensamente incógnita) para embarcar no vapor "Génève", a fim de atravessar o lago homónimo, foi assassinada pelo anarquista italiano Luigi Lucheni. Não se apercebeu imediatamente da gravidade do golpe que sofrera, ainda entrou a bordo, mas morreu pouco depois.

Viena chorou Sissi. Todavia, a maldição que parecia pesar sobre os Habsburg ainda não terminara. O novo herdeiro do trono, o arquiduque Francisco Fernando, tal como Rudolf, mantinha as mais tensas relações com o imperador, quer do ponto de vista político (opunha-se à linha de governação prosseguida pelo monarca), quer do ponto de vista pessoal (Francisco José tinha-se oposto ao seu casamento com a condessa checa Sofia Chotek e só a ameaça de o ver renunciar à sucessão levou o velho Francisco José a aceitar o casamento, mas Sofia, entretanto promovida a duquesa de Hohenberg, nunca foi admitida no círculo mais restrito dos arquiduques e Francisco José obrigou o sobrinho, no Palácio Imperial de Hofburg, em 28 de Junho de 1900, perante si, toda a família imperial e o governo, o cardeal-arcebispo de Viena e o arcebispo de Budapeste e Primaz da Hungria, a comprometer-se de que Sofia jamais usaria o título de imperatriz, rainha ou arquiduquesa. Foi também obrigado a renunciar em nome dos seus descendentes a todos e quaisquer direitos dinásticos). Precaução inútil.

Em 28 de Junho de 1914, quando Francisco Fernando e Sofia visitavam Sarajevo, foram assassinados pelo anarquista sérvio Gavrilo Princip, um jovem de 19 anos. Os corpos foram transportados de comboio, de barco e novamente de comboio até Viena, onde o cortejo chegou propositadamente à noite para evitar manifestações públicas de pesar, apenas se encontrando para o receber o arquiduque Carlos, filho do arquiduque Otto Francisco, irmão de Francisco Fernando, e por isso, sobrinho neto de Francisco José, e que era agora o primeiro na linha de sucessão, mortos que estavam os herdeiros presuntivos da Coroa. O governo austríaco dissuadiu os chefes de Estado estrangeiros de assistirem aos funerais (com o pretexto da debilitada saúde de Francisco José) e as cerimónias fúnebres foram reduzidas ao estritamente indispensável. A título excepcional, o imperador autorizou que o caixão de Sofia fosse colocado na capela imperial ao lado do  caixão do marido, mas num plano 20 cm mais baixo. Como Francisco Fernando manifestara o desejo de ser sepultado ao lado da mulher, e esta não poderia ser inumada na Cripta Imperial, os dois caixões acabaram por ser depositados na Cripta do castelo de Artstetten, em  Klein-Pöchlarn.

Toda a gente sabe que o atentado de Sarajevo desencadeou a Primeira Guerra Mundial. A Europa iria entrar numa espiral de violência que, com alguns hiatos, dura até aos nossos dias. Francisco José (1830-1916), que subira ao trono com 18 anos e reinara 68 anos, um dos reinados mais longos da história, foi, pela sua rigidez de raciocínio e pelo seu apego indefectível às mais obsoletas tradições,  um dos soberanos responsáveis pela primeira grande confrontação europeia. Parece que também não era muito inteligente.

Morreu em 21 de Novembro de 1916, e o seu funeral foi a última grande manifestação pública da monarquia dos Habsburg, a que acorreu toda a população de Viena.

Sucedeu-lhe, como estabelecido, o arquiduque Carlos, com o nome de Carlos I, para um efémero reinado de dois anos, que terminaria com a derrota dos impérios centrais na guerra de 1914-18.

A tragédia de Mayerling, observada à distância, pode configurar simbolicamente o suicídio original da Europa, que, a partir de então, se obstinou a auto-mutilar-se, num processo que voltaria a ensanguentar o velho continente duas décadas mais tarde, e que prossegue hoje, num grau de menor intensidade, com os conflitos abertos da Jugoslávia (por ora suspenso) e da Ucrânia e com outros conflitos latentes que ninguém cuida de apaziguar, antes pelo contrário.

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Tudo isto a propósito do notável bailado Mayerling, coreografado por Kenneth  MacMillan, com música de Franz Liszt, adaptada e orquestrada por John Lanchbery. Criado em 1978 para o Royal Ballet, de Londres, a gravação que se apresenta refere-se a uma reposição, no Covent Garden, em 2009. Os bailarinos Edward Watson e Mara Galeazzi interpretam o arquiduque Rudolf e a baronesa Vetsera. A Orquestra da Royal Opera House é dirigida por Barry Wordsworth.

O drama de Mayerling deu origem a centenas de obras, desde livros a filmes, a peças de teatro, a bailados, a espectáculos musicais, etc. Entre os filmes, refira-se, De Mayerling à Sarajevo (1940), do alemão Max Ophüls e pela originalidade, a película Vizi privati, pubbliche virtù (1975), do húngaro Miklós Jancsó.



Dos muitos livros, refiro uma curiosa obra que comprei há alguns anos em Veneza, Mayerling - Il Mito, de Romana de Carli Szabados, mas a lista é interminável.


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