Já escrevi diversas vezes neste blogue sobre a crise na Ucrânia. Nomeadamente aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui. O assunto parece de meridiana clareza, excepto para os cérebros empedernidos ou, melhor dizendo, para os que se recusam a aceitar a evidência por força de interesses que já nem sequer são inconfessáveis.
Hoje não escrevo, mas transcrevo do blogue "Duas ou Três Coisas", do embaixador Francisco Seixas da Costa, uma análise lúcida, concisa e brihante do conflito que, no Leste da Europa, se arrisca a assumir proporções de consequências incomensuráveis:
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
Jogos de guerra ou brincar com o fogo
Há uma guerra civil em curso na Ucrânia, que está a agravar-se de forma
perigosa. As perdas humanas são já muitas e a barbaridade de certas
ações, que não poupam civis, tornam o diálogo e a capacidade de
compromisso cada vez mais difíceis, a menos que um dos lados venha a
desequilibrar as coisas em seu favor.
Porque não acredito que seja possível unificar toda a Ucrânia (e já dou
por adquirido que a secessão da Crimeia é um ponto assente) sob a
autoridade de um governo de Kiev que não conceda um estatuto particular
às minorias russas ou russófilas, acho desastrosa a aventura - porque é
de uma perigosa aventura que se trata - de rearmamento desse mesmo
governo, a que o mundo ocidental se tem dedicado, de forma mais ou menos
velada. Os "amigos" da Ucrânia que entusiasmaram os revoltosos da praça
Maidan a derrubar um presidente eleito democraticamente e a desencadear
uma pulsão anti-russa que conduziu ao estado de coisas atual foram
irresponsáveis, mas têm nome: chamam-se NATO e União Europeia. Em lugar
de perceberem que a especificidade geopolítica do país impunha um
sentido de compromisso, injetaram em Kiev sonhos de adesão àquelas duas
instituições e a ilusão de que, pela força, poderiam vir a impor esse
"salto" geopolítico, explorando a fragilidade conjuntural de Moscovo.
Derrotado pela Rússia na Geórgia, o "Ocidente" quis tirar desforço na
Ucrânia. O resultado está à vista, com a Rússia a financiar e municiar
os revoltosos, havendo fortes suspeitas de que haja mesma russos a lutar
ao seu lado.
A Rússia perdeu a Guerra Fria mas permanece no seu lugar geográfico de
sempre. Não perceber isto, à luz de proselitismos de oportunidade, é
brincar com o fogo. O poder vigente em Moscovo, não sendo uma ditadura,
está já longe de ser democrático. Putin é um quase autocrata que, tal
como aconteceu no passado, se alimenta do nacionalismo para se impor
internamente. Tem hoje taxas elevadíssimas de popularidade e a crise
económica em que o país entrou, por via da quebra do preço do petróleo,
cria um sentimento de insegurança na população russa que facilita a sua
entrega a um "guia". Porque não há um verdadeiro sistema de "checks and
balances" no país, o poder está hoje muito concentrado em Putin. Ora a
História já provou que as assimetrias entre o processo de decisão das
democracias e dos regimes mais ou menos autoritários provoca facilmente
os conflitos, porque tem mecanismos diferenciados de formatação.
Os países ocidentais devem entender, de uma vez por todas, que os russos
não vão deixar esmagar os seus "irmãos" do lado de fora da sua
fronteira (e que viveram sob a mesma bandeira até há escassas décadas
atrás) e que cada dia em que estimulem o governo ucraniano a reprimir as
revoltas de Donetsk e Lugansk é um dia a menos para uma possível
intervenção militar direta de Moscovo. Nesse dia, o que fará a NATO? Vai
para a guerra? Não haverá consenso ocidental para uma operação NATO na
Ucrânia, porque não estamos perante uma situação de invocação do artigo
5° do Tratado de Washington (agressão a um Estado membro). Haverá uma
"coalition of the willing" dentre os Estados NATO para enviar tropas
para a Ucrânia? Se alguns ensandecessem por esta via, aí sim, estaríamos
a caminho de um novo conflito global.
Torna-se urgente uma mediação internacional que ponha cobro a esta
situação e - tenho pena em constatar isto - duvido que os países da
União Europeia tenham hoje um estatuto reconhecido de independência que
lhes permita executar esse papel. Esse compromisso poderia passar pelo
reconhecimento por Kiev de um estatuto especial das zonas russas da
Ucrânia no âmbito do seu país, pelo abandono das pretensões de
"independência" ou de integração na Rússia por parte dessas regiões,
pelo reforço de garantias de Moscovo do respeito pelas fronteiras
ucranianas, por uma substancial ajuda financeira ocidental para fins não
militares ao governo de Kiev, ligado a um programa de reconstrução
nacional que incluiria as zonas pró-russas (para as quais Moscovo
poderia contribuir com ajuda não letal).
Para tal, impunha-se um prévio cessar-fogo na base de um "stand-still"
de posições no terreno, fiscalizado por uma operação de separação de
forças decidida pelo Conselho de Segurança da ONU. Por muito que me
custe ter de admitir, a OSCE, organização a que dei alguns anos de
trabalho, parece ter esgotado a sua capacidade de intervenção neste
conflito e a Europa terá de aceitar que um instrumento criado para
pilotar o fim da Guerra Fria tem poucas condições de operacionalidade
quando um novo modelo de tensão Leste-Oeste se consagra paulatinamente.
Alguns dirão que o que acima escrevi não tem qualquer sentido, que assim
se abriria a porta a mais um "frozen conflict" na área e que, no fundo,
isso representaria uma abdicação de princípios e interesses
estratégicos. A esses apenas perguntaria se estarão dispostos a ver os
filhos morrer na estrada para Donetsk.
1 comentário:
Como espectador assíduo da "Casa dos Segredos",mal posso esperar por ler o desenlace deste tórrido romance.Obrigadinho, Oriente (muito)Médio, pela dica. Xau!
Enviar um comentário