sábado, 7 de fevereiro de 2015

O SUICÍDIO EUROPEU (II)







Continua no top das vendas de livros de não-ficção, em França, desde a sua publicação em Novembro passado, o livro de Éric Zemmour, Le suicide français.

Fiz aqui uma breve referência à obra, nos primeiros dias de Janeiro, quando havia apenas lido as primeiras páginas de um volume com perto de 600. É tempo de escrever mais algumas linhas. 

A tese sustentada por Zemmour é a de que a França entrou em profundo declínio desde a morte do general De Gaulle, cometendo um suicídio progressivo ao longo dos últimos 40 anos, consumado com a inenarrável presidência de François Hollande.

Começando pelo fim:

«De Gaulle a échoué. Quarante ans après sa mort, son chef-d'oeuvre est en ruines. Il avait rétabli la souverainité du peuple. Depuis 1992, la France a abandonné sa souverainité nationale au profit d'un monstre bureaucratique bruxellois, dont on peine à saisir les bienfaits. Depuis 2007, pour complaire à cet "Empire sans impérialisme", sa classe politique quasi unanime a expédié la souverainité populaire dans les poubelles de l'Histoire, en déchiquetant la tunique sans couture du référendum que le général De Gaulle avait instauré pour imposer la volonté du peuple à tous "les notables et notoires" qui avaient l'habitude séculaire de la confisquer. (p. 517)

«Nous vivons dans une ère carnavalesque. Nicolas Sarkozy fut un Bonaparte de carnaval; François Hollande est un Mitterrand de carnaval et Manuel Valls, un Clemenceau de carnaval. La Ve République est devenue la République radicale en pire. En ce temps-là, les Clemenceau, Jaurès, Waldeck-Rousseau, Poincaré, Briand etc. avaient encore de la tenue, de l'allure, du caractère, mais les institutions les entravaient et les étouffaient. Aujourd'hui, seules les institutions, comme le corset des femmes d'antan, maintiennent droit nos molles éminences. Chirac dissimulait sous un physique de hussard une prudence matoise de notable rad-soc. Sarkozy masquait par une agitation tourbillonante et un autoritarisme nombriliste une crainte irraisonnée de la rue et une sensibilité d'adolescent. Hollande cache derrière un humour potache un cynisme d'airain et une main de velours qui tremble dans son gant de fer.» (p. 518)

«Le traité de libre-échange transantlantique a pour but, aux dires mêmes des négociateurs américains, d'édifier "une OTAN commerciale". Cet accord soumettrait l'économie européenne aux normes sanitaires, techniques, environnementales, juridiques, culturelles des États-Unis; il sonnerait le glas définitif d'une Europe cohérente et indépendante.» (p.519)

«La monnaie unique avait été conçue par François Mitterrand pour soustraire aux Allemands réunifiés leur "bombe atomique": le mark. Les Allemands utilisèrent la corde qui devait les ligoter pour étrangler les industries françaises et italiennes qui ne pouvaient plus s'arracher à leur étreinte mortelle par des dévaluations compétitives. La supériorité allemande est telle que la France ne pourra plus échapper à sa vassalisation. Un siècle après le début de la Première Guerre mondiale, nous entérinons le plan des dirigeants allemands conçu par Guillaume II qui prévoyait déjà l'unification continentale autour de l'hégémon germanique. (p. 520)

«Depuis quarante ans, la litanie des "réformes" a déjà euthanasié les paysans, les petits commerçants et les ouvriers. Au profit des groupes agroalimentaires, des grandes surfaces, des banquiers, des patrons du CAC 40, des ouvriers chinois et des dirigeants de Volkswagen. Ceux qui ont survécu à l'hécatombe ne veulent pas mourir. Cette hantise les rend méchants et hargneux. Les taxis, les pharmaciens, les cheminots, les notaires, les employés se battent comme les poilus à Verdun. Nos élites, qui viennent pour la plupart de la haute fonction publique, et ont bénéficié des avantages du système mandarinal à la française, veulent imposer le modèle anglo.saxon du "struggle for life" à toute la population, sauf à eux-mêmes.» (p. 521)

«La droite trahit la France au nom de la  mondialisation; la gauche trahit la France au nom de la République. La droite a abandonné l'État au nom du libéralisme; la gauche a abandonné la nation au nom de l'universalisme: La droite a trahit le peuple au nom du CAC 40; la gauche a trahit le peuple au nom des minorités. La droite a trahit le peuple au nom de la liberté; cette liberté mal comprise qui opprime le faible et renforce le fort; cette liberté devoyée qui contraint la laïcité à se parer de l'épithète "positive" pour se rendre acceptable aux yeus de tous les lobbies communautaires. La gauche a trahit le peuple au nom de l'égalité. L'égalié entre les parents et les enfants qui tue l'éducation; entre les professeurs et les élèves qui tue l'école; l'égalité entre Français et étrangers qui tue la nation.» (p. 522/3)

«L'idéologie de la mondialisation, antiraciste et multiculturaliste, sera au XXIe siècle ce que le nationalisme fut au XIXe siècle et le totalitarisme au XXe siècle, un progressisme messianique fauteur de guerres; on aura transféré la guerre entre nations à la guerre à l'intérieur des nations. Ce sera l'alliance du "doux commerce" et de la guerre civile.» (p. 527)

«La France se meurt, la France est morte.» (p. 527)

«Nos élites politiques, économiques, administratives, médiatiques, intellectuelles, artistiques, crache sur sa tombe et piétinent son cadavre fumant. Elles en tirent gratification sociale et financière. Toutes observent, goguenardes et faussement affectées, la France qu'on abat; et écrivent d'un air las et dédaigneux, "les dernières pages de l'Histoire de France".» (p. 527)

*****

O livro de Éric Zemmour destina-se especialmente aos franceses, e não a todos, já que as referências em que se alicerça a obra obrigam a um conhecimento da vida no Hexágono que não estará ao alcance das gerações mais novas, por natureza (com as excepções que a regra, a inteligência  e o dinheiro impõem) funcionalmente analfabetas.

Parte Zemmour do pressuposto de que a França se afunda inelutavelmente desde a morte de De Gaulle, estabelecendo um paralelo entre Napoleão I e o general e entre a Revolução Francesa e a revolução de Maio de 1968.

O livro está concebido como uma sequência cronológica de capítulos anuais (ou quase) em que se referem casos que, na opinião do autor, contribuíram para a decadência da França. Como leit-motiv, a denúncia da perniciosa influência norte-americana, o que é manifestamente evidente e que poderíamos extrapolar para Portugal ou para quaisquer outros países do Velho Continente, à excepção, bien entendu, da Inglaterra, essa astuta comparsa de Wall Street e de Hollywood e de temerárias aventuras militares pelo mundo.

A União Europeia é outro dos alvos de Éric Zemmour, evidenciado nas citações acima. Tal como a desregulação financeira protagonizada pelo "diable à deux têtes" incarnado por Thatcher e Reagan (p. 232), a globalização económica, o horror do liberalismo e a sacralização do mercado.

Seria uma lista interminável enumerar os pontos fundamentais da obra. Num relance, e de memória: a criação de hipermercados de proporções mastodônticas e a extinção do pequeno comércio urbano, com a consequente desertificação da vida nas cidades; a imigração descontrolada, nomeadamente maghrebina (aspecto caro ao autor) para satisfação de certo patronato desejoso de mão-de-obra não reivindicativa e barata e o bem intencionado mas desastroso reagrupamento familiar que permitiu a instalação e reprodução no Hexágono de milhões de árabes, que sem horizontes de futuro ingressaram na marginalidade; a nefasta influência do audiovisual anglo-saxónico na cultura francesa; a "emancipação" da mulher, que levou à destruição da família tradicional, ao aumento do desemprego pela sua entrada no mercado do trabalho e ao abandono da educação dos filhos; a desindustrialização do país e a deslocalização das empresas para países emergentes; a sujeição da soberania nacional, à revelia do povo, a instituições sem legitimidade democrática; o fascínio de uma certa elite francesa pelos teóricos liberais americanos, que à volta de Milton Friedman começavam a suplantar nas universidades além-Atlântico a velha guarda keynesiana; a entrada da Inglaterra na Europa como o cavalo de Tróia americano; a lei Pleven de 1972 (a mãe de todas as batalhas) e a sua descendência (leis Gayssot, Taubira, Lellouche, Perben) e o fim da liberdade de expressão em França (imigração, islão, homossexualidade, história da escravatura, da colonização e da Segunda Guerra Mundial, do genocídio dos judeus pelos nazis); a falsificação da História pelo americano Robert Paxton no que concerne à Segunda Guerra Mundial e ao Regime de Vichy  (este capítulo, p. 87, é importante); a actividade nefasta do sinistro Bernard-Henri Lévy e a deturpação sistemática da verdade no seu livro L'idéologie française (p. 191); a actuação intempestiva do CRIF a favor de Israel (p. 257) e a famosa resposta de De Gaulle ao grande rabino de França: «Si c'est pour me parler des Français de confession juive, vous êtes le bienvenu, si c'est pour me parler de mes relations avec l'État d'Israël, j'ai un ministre des Affaires étrangères pour ça.»; a emergência do poder gay; a carreira irresistível de Louis Schweitzer, responsável pela destruição da Renault (p. 278); a questão dos símbolos religiosos; a reunificação da Alemanha; a morte da democracia em Maastricht; a questão dos nomes próprios; o fim do serviço militar obrigatório, sob Chirac; a reintegração da França na NATO, por Sarkozy; a falhada criação por este do Conselho Francês do Culto Muçulmano, à imagem do CRIF (p. 475); a traição do eticamente duvidoso Jean-Claude Trichet como primeiro governador do Banco Central Europeu, depois da "regência" de Wim Duisenberg (Trichet, cujas primeiras palavras foram «I'm not French» e que motivaram o comentário sarcástico do antigo vice-presidente britânico da Comissão, Christopher Soames: «Dans une organisation internationale, il faut toujours mettre un Français, car ils sont les seuls à ne pas défendre les intérêts de leur pays.») (Ainda não conheciam Passos Coelho); a presença malfazeja de Thatcher na chefia do Reino Unido: «I want my money back», «There is no alternative», «There is no such thing as society»; a aberração do funcionamento da oligarquia imperial da União Europeia: «Au fil des ans, un jeu de rôle se mit en place: les chefs de gouvernement mettaient en scène leurs conflits au cours de "sommets européens" médiatisés, défendant leurs "intérêts nationaux"; mais derrière la scène de ce théâtre, le vrai pouvoir instaurait les règles et des  normes qui s'imposaient à tous.» (p. 488); os tumultos juvenis em França em Outubro de 2005; e tantos outros temas que o autor propõe à reflexão dos leitores.

***

O livro abre com a evocação das soleníssimas exéquias do general De Gaulle, em 12 de Novembro de 1970, em Notre-Dame de Paris, com a presença dos chefes de Estado e de Governo de quase todos os países do mundo e das mais altas personalidades da França. Entre os presentes, Zemmour menciona André Malraux mas, se bem me lembro, o ex-ministro da Cultura não esteve presente, assistindo ao funeral íntimo propriamente dito (uma das raras pessoas autorizadas pela família) e à inumação no cemitério de Colombey-les-Deux-Églises. Mas posso estar equivocado, já lá vão tantos anos.

Sem dúvida que Le suicide français peca por excesso de informação, tornando a leitura por vezes fastidiosa, e colocando ao mesmo nível factos inegavelmente importantes e fait divers. O autor poderia ter reunido os temas principais, evitando o desdobramento cronológico, a meu ver desnecessário, e facilitando a compreensão do leitor, nomeadamente do leitor não francês. Mas são opções que importa respeitar.

As convicções de Éric Zemmour não deixam lugar a dúvidas. O seu discurso identifica-se largamente com as posições da Frente Nacional, de Marine Le Pen e, nesse aspecto, distancia-se de Michel Houellebecq, o autor do outro best-seller da saison, também um conservador, mas cujo argumentário, porque ficcionado, lhe permite evitar posições de um controverso radicalismo.
É evidente que não subscrevo grande parte das teses de Zemmour, nem perfilho a bondade das suas conclusões (algumas francamente precipitadas), mas não posso deixar de reconhecer que ele procede a um apurado diagnóstico dos males da sociedade francesa e que, em muitos casos, a razão sobejamente lhe assiste.

 Éric Zemmour tem a nostalgia de la grandeur de la France. Creio, porém, que trava um combate inelutável. È TARDÌ !




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