domingo, 15 de fevereiro de 2015

AVISO POR CAUSA DA MORAL





Comprei há algumas semanas, mas só agora tive oportunidade de lê-lo, o livro Notícia do Maior Escândalo Erótico-Social do Século XX em Portugal, um volume organizado por Zetho Cunha Gonçalves, que reúne os documentos relativos à polémica ocorrida em 1922 a propósito da edição de Canções, de António Botto e da publicação na revista "Contemporânea" (nº 3) do texto de Fernando Pessoa António Botto e o Ideal Estético em Portugal. 

 Um jornalista chamada Álvaro Maia decidiu responder na mesma revista (nº4) a esse texto com um artigo, Literatura de Sodoma, onde criticava, em termos cuja leitura provoca o vómito, o artigo de Pessoa. Estava instalada a polémica. Em 1923, Raul Leal publica Sodoma Divinizada e desencadeia a hostilidade da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, capitaneada pelo respectivo presidente, Pedro Theotonio Pereira, que se insurge contra o que chama "literatura de Sodoma" e solicita ao governador civil de Lisboa, o major Viriato Lobo, a apreensão das obras de António Botto e de Raul Leal. A sua pretensão tem vencimento (apesar de estarmos em plena I República, mas esta sempre se caracterizou por um acentuado puritanismo) e as obras são retiradas do mercado, não obstante o protesto, que importa registar, de Júlio Dantas, presidente da Academia das Ciências e homem de vasta cultura humanística. Ainda em 1923, Álvaro de Campos divulgaria o folheto Aviso por Causa da Moral e em 1924, Marcello Caetano publicaria na revista "Ordem Nova" um artigo miserável, Arte Sem Moral Nenhuma, onde apela à intervenção da polícia de costumes contra António Botto, Raul Leal e Judith Teixeira e verbera o acolhimento de Júlio Dantas às obras destes autores.

Os escritos de Theotonio Pereira e de Marcello Caetano podem causar espanto a quem, ainda se lembrando deles, se admire dos lugares que ocuparam no Estado Novo, tal a sua tacanhez de espírito. O primeiro, apesar de matemático distinto e de devoto servidor do anterior Regime, em que exerceu funções de ministro e de embaixador de Portugal em várias capitais, nunca se distinguiu por qualquer rasgo de inteligência; o segundo, também ministro e competente professor de Direito, acabaria por ser alcandorado à chefia do Governo, de que seria derrubado pela Revolução de 25 de Abril. A sua queda, e a queda do regime que protagonizava, dever-se-a em parte à ausência de vislumbrar, para além das sebentas, a mínima centelha de poder criativo. Nem um nem outro possuíam, ao contrário de Salazar, a quem serviam  e que deles se servia, a cultura humanística que é suposto ser apanágio de um estadista. Nem alguma vez compreenderam o Mestre. Salazar, não sendo imoral, era profundamente amoral, e era-lhe olimpicamente indiferente a actividade sexual dos portugueses, desde que ela não ultrapassasse a linha vermelha que impusera da manutenção das aparências. Sempre fiel ao princípio "Em política o que parece é", se não parecesse nada de mal vinha ao mundo do Regime. Assim, nunca se importou se o ministro A tinha várias amantes, se o ministro B ia para a cama com rapariguinhas, algumas porventura de menor idade (ainda não fora inventada a pedofilia) ou se o subsecretário de Estado C andava ao engate de magalas e marujos nos jardins de Belém. Impunha-se a discrição, e desde que ela se mantivesse, estava tudo bem assim. Por isso, permaneceu como presidente do Conselho até ao momento em que caiu da cadeira".

As peças publicadas neste volume são na quase totalidade do conhecimento público pelo que não existem propriamente revelações, mas o livro tem o mérito de reunir os textos relativos a uma polémica que, ao tempo, fez correr muita tinta, e onde intervieram Fernando Pessoa (ortónimo e através do seu heterónimo Álvaro de Campos), Raul Leal, António Botto e algumas infelizes figuras arvoradas em defensoras de uma moral que elas mesmas não cultivavam. Acresce ainda a divulgação de um texto, António Botto, Fernando Pessoa, outros e eu, de Luís Pedro Moitinho de Almeida, filho de um dos patrões da casa comercial onde Fernando pessoa trabalhou.


Registe-se ainda, que já em 1989 fora publicado o livro Sodoma Divinizada, reedição do texto de Raul Leal, acompanhado da maior parte das peças que constituem o volume que hoje apreciamos, organizado por Aníbal Fernandes, e a que aqui fizemos referência.

Apenas uma citação de Para os Sórdidos Estudantes de Lisboa, de Raul Leal: «E são esses pulhas, esses theotónios de merda que nem merecem que se lhes escarre no focinho, são eles que andam para aí a pregar moral à maneira de um ignóbil Frei Thomaz. Muitos dos estudantes - sei-o de boa fonte - que foram ao Governo Civil requerer a apreensão do meu livro Sodoma Divinizada e Canções de António Botto, tinham acabado de vir da alcova com os homens de quem são souteneurs! Isso seria extraordinariamente ridículo se não fosse antes profundamente reles. »

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