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O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é a pátria,
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas -
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.
Beijo na bôca todas as prostitutas,
Beijo sôbre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos,
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.
Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre êles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
Os braços de todos os atletas apertaram-me sùbitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.
Foram dados na minha bôca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de tôdas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu fôste para mim!)
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
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In Fernando Pessoa, Passagem das Horas
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