quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

D. SEBASTIÃO, UMA CRÓNICA ANÓNIMA?

Em 1978, a Imprensa Nacional - Casa da Moeda publicou, com prefácio de Francisco de Sales Mascarenhas Loureiro, Jornada del-rei Dom Sebastião à África e Crónica de Dom Henrique.

O prefaciador descreve D. Sebastião com as características que lhe são habitualmente atribuídas, recorrendo amiúde à obra de referência de Queiroz Veloso. Salienta-se a educação ministrada pelos jesuítas, com um inusitado relevo dado à castidade, a aptidão para aprender, dotes de inteligência e de memória, e desde muito cedo a sua obsessão pela conquista de África. É aludida também a inegável misoginia do rei, que é parcialmente atribuída ao conhecido problema das suas perdas nocturnas.

Cita Loureiro o prof. Manuel Heleno, quando este, fazendo o elogio de Queiroz Veloso na Academia Portuguesa da História, em 28 de Fevereiro de 1958, se refere ao reinado de D. Sebastião: «A Nação concentrava no novo rei todas as suas esperanças e aguardava que ele, restaurando as antigas virtudes e reagindo contra os costumes de que Clenardo nos dá uma imagem, encarnasse os anseios da alma portuguesa e restituísse ao País as suas glórias passadas. Mas o temperamento do monarca, mais religioso que político, mais Quixote do que prático, excitado pelo ambiente e pela lisonja, não permitiu a realização desse ideal, mau grado as suas boas intenções.» (p. XXXI)

Também Joaquim Veríssimo Serrão (in D. Sebastião à Luz dos seus Itinerários) é citado: «Reconheçam-se em D. Sebastião as marcas de uma personalidade não equilibrada - falta de bom senso, tendências impulsivas, fraco poder de reflexão, um caprichoso desejo de se ver obedecido -, se bem que se não possam estranhar essas marcas num homem que se sentia quase divinizado como rei e que viveu numa época em que a máquina do governo se centrava em formas de autoridade.» (p. XXXII)

Escreve o prefaciador que «Em um manuscrito que Rui Barreto de Meneses endereça de Moura, a 12 de Outubro de 1618, ao cronista-mor do Reino, que tudo indica tratar-se de D. Manuel de Meneses, refere o mesmo que da Jornada de África havido três histórias "muy particulares" em mão de Fr. Bernardo de Brito, escritas por pessoas que se acharam presentes não só no Exército, mas igualmente nos conselhos. Acrescentava ainda que uma elas não tinha o nome do seu autor, estando riscada em muitas partes, e que, todavia, lhe parecera boa.» (pp. XXXIII-XXXIV) Mais acrescenta que a edição das crónicas agora publicadas, embora tendo por núcleo original a Jornada de África de autor anónimo, que Fr. Bernardo de Brito possuíra, foi acrescentada com inserções de outras proveniências. O nome completo desta crónica é Iornada de ElRey Dom Sebastião as partes de Africa aonde se perdeo Na Batalha q deu aos Mouros em o anno & Era de 1578, cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Municipal de Viseu.

«A obra, em si, consta de três livros, desdobrados numa série de capítulos, o primeiro abrangendo vinte e oito, o segundo vinte e sete, enquanto o terceiro, dedicado ao governo do cardeal-rei, se desenvolve por dez. Verifica-se, deste modo, que na sua quase totalidade ela é votada ao período sebástico e que neste a jornada de África tem uma relevância muito especial. Não é, pois, por acaso que o historiógrafo designa a sua obra por Jornada Del-Rei D. Sebastião de Portugal às Partes de África. »(p. XXXIX)

«Seja o exemplar da Jornada, que é razão das nossas considerações, apenas uma cópia de um original que se perdeu, o que justifica que o mesmo não venha assinado; seja, todavia, o próprio original que aguardava uma última redacção, que o autor por motivos circunstanciais não teve oportunidade de efectuar; seja ele ainda motivo de um anonimato, para escapar à sanha filipina, pelo seu portuguesismo, como mesmo à da Companhia, que tão copiosamente ataca - o que parece incontroverso é a nossa convicção de tratar-se de um trabalho lúcido, que abre perspectivas sobre um período histórico ainda bastante confuso.» (p. XL)

Entre as múltiplas hipóteses de autoria das crónicas de D. Sebastião e do cardeal D. Henrique há que considerar, devido a várias similitudes, a de Fernando de Góis Loureiro, que foi moço de câmara de D. Sebastião e, enquanto jovem fidalgo, acompanhou o rei na fatal expedição de 1578. De regresso ao país, foi ordenado presbítero e permaneceu depois largos anos em Roma. 

«Segundo o autor da Biblioteca Lusitana, "por ser muito versado na História política e militar deste Reino escreveo e dedicou a D. Vicente Gonzaga de Austria, Duque de Mantua e Monserrato, Breve Summa y Relacion de las vidas, y hechos de los Reys de Portugal y cosas sucedidas en aquel Reyno desde su principio hasta el ano de 1595. Mantua, 1596, e Tratado de la Jornada de Africa. M.S.". Na dedicatória com que abre a Breve Svmma, demonstra Góis Loureiro a sua formação humanística. Cita, entre outros, Plínio, Plutarco, Diodoro.» (p. XLI)

O prefaciador aduz depois vários argumentos tendentes a provar que o autor da Crónica é realmente Góis Loureiro, em especial pelo paralelismo que existe entre esta e a Breve Svmma, cujo capítulo XVII é dedicado a D. Sebastião. 

«O facto de a Jornada Del-Rei D. Sebastião abranger, em vários capítulos, o governo do cardeal-rei nada tem de extraordinário. Significa apenas que o autor o englobou na matéria da Jornada, não só por ele ser o coroamento natural desse episódio infeliz, que foi a expedição a África, como ainda pela necessidade de dar conta aos leitores, e sobretudo aos vindouros, de toda a problemática com que se encerra o percurso histórico da dinastia de Aviz.» (p. XLV)

Analisando o conteúdo da obra, Mascarenhas Loureiro escreve: 

«Traduz ainda manifestações do despotismo de D. Sebastião a asserção do autor, no mesmo capítulo, quando refere "e tudo corria por seu appetite e uontade".

Essa faceta despótica da personalidade do monarca fica expressivamente marcada no capítulo XVIII da Jornada quando el-rei reúne os grandes do Reino, que em Lisboa se encontravam, para lhes comunicar a sua disposição de passar a África, com vista à conquista de Larache, "sem se submeter ao parecer dos que estauam prezentes". E aí o autor mais uma vez se insurge contra a atitude adulatória dos que assistiam a essa reunião, nobres e prelados, que no final se chegaram a D. Sebastião "a lhe beiar a maõ como que recebiam merce de os leuar ao Martirio".» (p. XLIX)

«Toda a obra, que vem servindo de interesse ao nosso estudo, é entretanto dominada, de princípio a fim, pela ideia de que os infortúnios pátrios são a expiação dos erros cometidos. A concepção providencialista, que faz intervir no jogo dos acontecimentos históricos o factor divino, é concepção dominante no tempo, encontrando-se em numerosos cronistas e escritores dos séculos XVI e XVII.» (p. L)

Continuando com a análise da obra, o prefaciador escreve: «Desta forma e, em conclusão, segundo o autor da Jornada, ao rei faltaram-lhe os homens entendidos no sentido preciso do termo, concebidos na sua dimensão própria.» (p. LVIII)

«A Iornada, ou antes a Jornada, como decidimos chamá-la, é um documento da mais alta importância para a análise do período sebástico e pós-sebástico.  E deverá ser-lhe reservado especial lugar na historiografia dos fins do século XVI.» (p. LIX)

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

UMA FALSA CRÓNICA DE D. SEBASTIÃO

Convenhamos que a Crónica não é falsa, o autor sim.

A presente Chronica d'El-Rei D. Sebastião foi atribuída por Alexandre Herculano a Fr. Bernardo da Cruz, sendo muito citada nos livros que tratam da figura do "Desejado". O próprio Herculano, no Prólogo, se refere ao monge como tendo vivido na segunda metade do século dezasseis, acrescentando que «embarcou-se na frota que transportou a África El-Rei D. Sebastião e o seu exército».

Na prossecução do estudo que venho fazendo sobre D. Sebastião, interessou-me saber quem foi Fr. Bernardo da Cruz. E numa primeira pesquisa, com recurso á Wikipédia, constatei que o monge viveu de 1505 a 1565, o que torna impossível que tivesse escrito esta Chronica, que começa com os últimos tempos do reinado de D. João III e se prolonga até à batalha de Alcácer-Quibir e ao reinado do Cardeal D. Henrique. Tendo morrido em 1565, Fr. Bernardo não podia ter sido testemunha desses eventos. 

Tendo à mão a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, por onde todos estudámos, procurei a figura de Fr. Bernardo da Cruz, para saber algo sobre a sua obra. Nenhuma "entrada" particular mas uma nota de rodapé: «Queirós Veloso, em Estudos Históricos do Século XVI, Lisboa, 1950, demonstrou que a crónica atribuída por Alexandre Herculano e A. A. Costa Paiva a Bernardo da Cruz (edição 1837, reeditada em 1903), não pode ser deste autor, e atribui-a a António de Vaena. Francisco Rodrigues, in Brotéria, 1926, vol. III, fasc. IV, págs. 193-195, mostrou a inconsistência da atribuição desta obra a Amador Rebelo, feita por Ferreira Serpa na edição incorrecta de 1925, Porto. Queirós Veloso descobriu capítulos que continuam esta crónica, ficando a saber-se, deste modo, que ela abrangia provavelmente todo o reinado de D. Henrique. A Relação da vida de El-Rei D. Sebastião de Amador Rebelo acha-se inédita na Torre do Tombo, códice 1745 da Livraria» (p. 471)

As grandes figuras da nossa literatura, como Alexandre Herculano, também se enganam.

Mas quem foi António de Vaena? Continuando a minha pesquisa, apurei que Augusto Ferreira do Amaral, que foi presidente da Causa Monárquica, dirigente do Partido Popular Monárquico e ministro do VII Governo Constitucional,  publicou em 1982 um livro intitulado António de Vaena e a Crónica d'El-Rei D. Sebastião. Esta obra não se encontra disponível no mercado e não tive oportunidade de procurá-la na Biblioteca Nacional, onde certamente estará depositado um exemplar.

Curiosamente, no Prólogo o próprio Herculano alude a António de Vaena, mas recusando-lhe a autoria desta Crónica: «Escreveu também António de Vaena uma Chronica de D. Sebastião. Este, pelo tempo e circumstancias em que se achou, poder-se-hia crêr auctor do manuscripto: mas cumpre fazer algumas reflexões sobre o que Barbosa traz acerca d'elle na Bibliotheca Lusitana. Nesta obra affirma que Vaena escrevera uma Chronica de que elle possuia a copia, tirada do original que se conservava na livraria do Conde de Vimieiro: ora o Conde da Ericeira, que, em diversas sessões da Academia de Historia Portugueza, deu conta dos manuscriptos mais importantes d'aquella livraria, falla sómente de uma historia do cerco de Mazagão, a que vinham appensas algumas relações dos acontecimentos do reino por aquelle tempo, a qual obra era escripta por Antonio de Vaena, e nada mais diz d'este auctor: assim podemos ter por averiguado que esta era a obra que possuia o Abbade de Sever. E dado que assim seja, é certo que a obra de Vaena não se contem no manuscripto do Porto; porque n'este não se trata do cerco de Mazagão. 

Da Relação da vida d'El-Rei D. Sebastião pelo P. Amador Rebello vimos nós uma copia, que tambem existe na Bibliotheca do Porto. É obra mui succinta, como diz Barbosa; e por nossos proprios olhos nos certificamos de que nada tinha com o manuscripto de Fr. Bernardo da Cruz.

Fr. Manoel dos Santos cita muitas vezes na Historia Sebastica certa Memoria ou Relação coétanea, de que transcreve pedaços inteiros: estes pedaços são exactamente tirados da Chronica inedita que existe na Bibliotheca do Porto. Era esta uma das mais poderosas razões que tinhamos para crêr o mabuscripto de auctor diferente dos já apontados; porque, a ser de algum d'elles, te-lo-hia dito aquelle erudito cisterciense, ou pelo menos formado acerca d'isso algumas conjecturas: as reflexões que acima fazemos nos confirmaram inteiramente nesta opinião.

Parece que foi fado avesso de Fr. Bernardo da Cruz o servirem aos outros suas lucubrações, sem que d'elle ninguem faça menção, e conservando-se o seu nome até os fins do seculo passado em total esquecimento. Não foi somente Santos que se aproveitou do que elle escreveo; tambem Faria e Sousa o copiou, sem d'elle dizer uma unica palavra. Esta anecdota trouxe-a a lume o Bispo de Beja, e nós conferindo-a achámos que era verdadeira.

Notaremos em ultimo logar, que havendo apontado Faria, no principio da sua Asia, as fontes d'onde tirara o que escreveu, traz entre outros manuscriptos, notado um, que tratava d'El-Rei D. Sebastião, o qual diz lhe communicára o Abbade João Salgado de Araujo, e que se atribuia a Pedro de Mariz. Foi por este ut aiunt, que Barbosa ajuntou á lista dos escriptos de Mariz uma Chronica de D. Sebastião. Ora, não apparecendo no Apparato de Faria outro algum escriptor duvidoso, pertencente a essa epocha, pode-se colligir sem temeridade, que era a obra de Fr. Bernardo da Cruz, a que viu Faria e Sousa, e que por ventura não existe a que se attribue a Mariz.» (pp. 13-14-15)

A presente Crónica contém 113 capítulos, em dois volumes. O primeiro intitula-se "Da prosperidade dos reinos de Portugal em tempos d'El-Rei D. João terceiro"; o último "Como El-Rei mandou citar por carta de Editos ao senhor D. Antonio, e da falla que D. Francisco Pereira lhe fez". E abrange, como se disse,  o período final do reinado de D. João III, o reinado de D. Sebastião e o começo do reinado do Cardeal D. Henrique.

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Frei Bernardo da Cruz (1505-1565) foi um frade dominicano e prelado português, que chegou a ser nomeado bispo de São Tomé, embora nunca tenha ocupado a diocese. Nascido em Braga, foi enviado de D. João III a Roma e comissário do Santo Ofício por nomeação do Cardeal-Infante D. Henrique. Exerceu também as funções de reitor da Universidade de Coimbra.

 

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CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

CATÁLOGO TEMÁTICO
DE CRÓNICAS E RELATOS
SOBRE D. SEBASTIÃO

Séculos XVI e XVII

Tradições manuscritas

Bibliotecas portuguesas

Índice
 
Frei Bernardo da Cruz? - Crónica de D. Sebastião  p. 3
P. Amador Rebelo - Relação da vida d’elrey D. Sebastião  p. 9
Anónimo - Sumario de todas as cousas succedidas em Berberia/História da Jornada del Rey D. Sebastião a
Africa  p. 13
Fernando de Góis Loureiro - Jornada del Rey D. Sebastião à África  p. 15
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião  p. 17
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião escrita por um Homem Africano  p. 18
Miguel Pereira - Crónica de El Rey Dom Sebastiam  p. 19
Anónimo - Relação do princípio do governo de D. Sebastião  p. 20
Anónimo - [Relação da infeliz jornada d'El Rei D. Sebastião]  p. 21
Anónimo - Vida d’el-rei D. Sebastião  p. 22
Pedro Rodrigues Soares - Memorial  p. 23
Manuel Teixeira - Sumario breve das coisas que vio e alcansou saber manoel teix.ra da vida del Rey d.
Sebastião  p. 24
Anónimo - Relações ao Dr. Paulo Afonso  p. 25
Anónimo - Relação muito certa do apparato da armada para Africa o anno de 78   p. 27


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

D. SEBASTIÃO (A REABILITAÇÃO ?!?)

Em 1941, Costa Brochado (célebre por dele existir uma icónica fotografia com Fernando Pessoa à mesa do Martinho da Arcada), publicou D. Sebastião, o Desejado, livro onde pretende "reabilitar" a figura do rei D. Sebastião.

Denuncia o autor o "processo de El-Rei", levado a cabo por escritores do século XIX, e também no século XX, a começar por Manuel Bento de Sousa (O Doutor Minerva), José Agostinho de Macedo (Os Sebastianistas) ou Camilo Castelo Branco (Narcóticos), ou ainda Júlio Dantas (Outros Tempos e a Arte de Amar), Sampaio Bruno (O Encoberto), António Sérgio (Ensaios), etc. Considera Costa Brochado que nenhum deles conseguiu penetrar na personalidade do rei, e recorre a Alexis Carrel (O Homem, esse desconhecido) para justificar a sua afirmação.

Na óptica de Costa Brochado, D. Sebastião foi um monarca exemplar, dotado das mais altas virtudes. Rejeita as teorias da epilepsia, do carácter da doença do rei, da sua aversão ao casamento (o que seria apenas motivado pelo alto conceito em que tinha a castidade). Longe de ser um alucinado seria um espírito excepcionalmente dotado com uma aguda visão dos perigos da moirama. O pudor do rei ia ao ponto de jamais se ter despido na presença dos criados de quarto, que nunca lhe viam sequer um pé. Quis mesmo manter-se casto a vida inteira e só admitiu casar-se perante a insistência do seu confessor que lhe demonstrou a necessidade de gerar herdeiros para o trono. Louva o rei por se afastar da vida desregrada da gente do seu tempo (e ainda mais do nosso) e denúncia «o miserável preconceito de que a castidade é uma anomalia patológica» acrescentando que «Hoje sabe-se, pelos condutos das ciências, que o amor não é mais que um meio de que a natureza se serve para realizar a propagação da espécie, e registam-se até casos em que o macho, depois de ter fecundado a fêmea, e portanto tornado inútil, paga com a própria vida o fatalismo do seu género!» (pp. 49-50) E mais, citando o Dr. Roux: «Porque esse "prazer não é mais do que o meio de que a Espécie se serve para atingir os seus fins, a venda que ela põe nos olhos do indivíduo para o forçar ao sacrifício".» (p. 50)

O autor insiste no desejo que D. Sebastião tinha de casar-se e que os pretensos casamentos foram inutilizados por Filipe II. Refere-se a cada passo à existência e confronto dos dois partidos, o "partido português" e o "partido castelhano", este chefiado por D. Catarina, que seria uma fiel executante da política de Carlos Quinto e que nunca aprendeu a língua portuguesa. Trata da questão das regências do Reino e do problema da sucessão. Menciona o entusiasmo dos portugueses com a expedição a África e louva o sentido de Estado de D. Sebastião, a quem não cessa de atribuir as mais notáveis características de personalidade, uma invulgar inteligência, uma cultura excepcional. 

Na descrição geral dos acontecimentos, Costa Brochado segue as obras dos autores que o precederam, mas interpreta sempre os factos na sua óptica da defesa da pessoa do rei, nas culpas da Casa de Áustria e das traições de que foi vítima. Os irmãos Câmara merecem os maiores louvores e a batalha de Alcácer-Quibir foi militarmente ganha pelos portugueses, devendo-se a derrota apenas a um pormenor no momento final.

Mais do que uma interpretação muito pessoal da História, o autor chega a distorcer a mesma para suportar as conclusões que apresenta. O seu livro é uma apologia do "Desejado", aureolado de qualidades infirmadas pelas fontes históricas tradicionalmente aceites. Sabemos hoje, e sabia-se já em 1941, data da publicação do livro, que muito pouco ou nada ocorreu como Costa Brochado desejaria que tivesse ocorrido. 

Não sendo a História uma ciência exacta, este livro todavia exagera os limites permitidos pela razão e pelo bom senso. Alcácer-Quibir não é uma data gloriosa da nossa História, foi uma tragédia nacional.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

D. SEBASTIÃO E O ENCOBERTO



Contribuindo para a vasta bibliografia sobre D. Sebastião e o Sebastianismo, António Machado Pires deu à estampa em 1971 D. Sebastião e o Encoberto.

Na sequência dos comentários que tenho vindo a publicar sobre os livros respeitantes a esta matéria existentes na minha biblioteca, chegou agora a vez deste importante estudo editado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Para facilidade de apreensão do conteúdo, indico os títulos fundamentais do Índice:

PRIMEIRA PARTE- O Sebastianismo - Mito Nacionalista Português

I - O Problemas das Origens do Sebastianismo: Sua História

II - O Sebastianismo

 

SEGUNDA PARTE - Antologia

 

I - Documentos da Crença Sebástica

 A - Messianismo Pré-Sebastianista

B - Sebastianismo

C - Anti-Sebastianismo

 

II - O Sebastianismo como Tema Literário

A - Poesia

B - Teatro

C - Prosa de Ficção

D- Escritos Ensaísticos, Históricos e Polémicos

 

III - Sebastianismo no Brasil

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Evitando redigir um longo post, apresentarei apenas alguns comentários sobre pontos que se afigurem mais importantes, neste livro de 445 páginas.

O autor começa por citar as abordagens de José Agostinho de Macedo, Oliveira Martins, Sampaio Bruno, Costa Lobo, António Sérgio, João Lúcio de Azevedo, Afonso Lopes Vieira, Antero de Figueiredo, Carlos Malheiro Dias, Mário de Castro, Aquilino Ribeiro, José Marinho, Joel Serrão, António Quadros.

Transcrevo do Capítulo I da Primeira Parte:

«No sebastianismo, nome genérico dado ao messianismo português relativo a D. Sebastião e, por transposição, a outros chefes - têm-se incluído diversíssimos problemas que devem ser diferenciados:

O valor da personalidade de D. Sebastião como homem e como rei (na ética da História, Alcácer tornou-se o lugar de juízo do rei, porque vencido);

A batalha de Alcácer (o lugar como símbolo da derrota; a derrota como símbolo da decadência; a derrota sublimada em mito de redenção futura pela volta do rei salvador);

A crença no regresso do rei salvador (quer se chame D. Sebastião, D. João IV, D. João VI, D. Miguel ou Sidónio Pais).» (p. 27)

* * *

«Se fizermos corresponder a criação literária aos esquemas atrás mencionados de Luís Chaves e Garcia Figueras, teremos, em resumo:

Pré-Sebastianismo - Trovas do sapateiro Bandarra (datando a sua redacção do segundo quartel do século XVI), que anunciam o "Encuberto" (e as quais são interpretadas posteriormente à perda da Independência, em relação a D. Sebastião).

Sebastianismo:

Sebastianismo real: exaltação do rei adolescente (Camões, Diogo Bernardes, António Ferreira). Anuncia-se um destino glorioso para o jovem rei.

Sebastianismo profético: após a perda da independência as Trovas são interpretadas em relação a D. Sebastião, cujo regresso se profetiza; com a Restauração identifica-se o "Encuberto" com D. João IV; descontentes perseveram na interpretação sebástica das Trovas, enquanto que outros as interpretam em relação a governantes sucessivos. A esta evolução da crença sebástica posteriormente ao desaparecimento do rei também se chama pós-Sebastianismo - que é, afinal, a fase que constitui propriamente o Sebastianismo, quando se fala dele correctamente: a crença no regresso do rei.

A fase do "Desejado" (a que corresponde determinada produção literária em vida do rei) é substituída pela fase do Encoberto (a que corresponde também larga produção literária, a diversos níveis).» (pp. 31-2)

«É certo que o sebastianismo tem, na sua origem, uma forma de messianismo judaico, difundida pelas Trovas do sapateiro Bandarra e que esse messianismo conheceu extraordinário êxito com os boatos de sobrevivência do rei e com a opressão castelhana. É certo que o messianismo se apropriou da figura de D. Sebastião e que este rei foi sucessivamente substituído por outros chefes no "molde do Encoberto", como o demonstrou Sérgio.» (pp. 33-4)

No Capítulo II da Primeira Parte o autor passa em revista o reinado de D. Sebastião, a batalha de Alcácer-Quibir e os falsos "D. Sebastião", que já comentámos a propósito de obras anteriormente referenciadas. Ainda neste capítulo, discorre sobre as bases fundamentais do Sebastianismo: a esperança judaica no Messias, o mito do Encoberto vindo de Espanha e reminiscências de lendas arturianas, sendo as Trovas o documento mais importante desse messianismo anterior a D. Sebastião.

«O profetismo foi fenómeno importante no século XVI português. Ilustram-no figuras bem conhecidas, como Gonçalo Anes, por alcunha o Bandarra, Simão Gomes, o sapateiro santo, Luís Dias, alfaiate de Setúbal. Mas já no princípio do século XVI há uma actividade profética digna de nota: Isaac Abravanel, conhecido financeiro hebreu, anunciou para 1503 a vinda do Salvador. Em 1502, em Ístria, um aventureiro diz ser o Messias, o que perturbou a população judaica de Itália e a notícia deve ter chegado a Portugal. Em Portugal, um contemporâneo de Bandarra, o alfaiate Luís Dias, de Setúbal, fez crer que era o Messias e acabou no fogo, condenado pela Inquisição em 1542. Em 1526 chegara a Portugal um judeu, David Rubeni, que vinha anunciar a próxima chegada do redentor. Dizia-se até que fora chamado por D. João III e que seria o chefe condutor dos Hebreus à Terra Prometida. A sua influência foi tão grande que muitos cristãos-novos voltaram a adoptar as suas velhas crenças, embora muitos deles nunca as tivessem abandonado, sendo apenas cristãos-novos de nome e por conveniência. Um célebre discípulo de David Rubeni foi Diogo Peres, que se converteu ao judaísmo com o nome de Salomão Malco. Viajou, cultivou-se, criou fama em toda a Europa, e, segunda consta, foi recebido pelo próprio Papa.» (pp. 65-6)

«Pode dividir-se a história das Trovas em períodos ou ciclos, segundo o quadro de Álvaro Rodrigues de Azevedo:

- Período Messíaco (1500-1578): Vida de Bandarra, composição das Trovas (fase genuína; circulação das Trovas clandestinamente; perda do texto autêntico; aparecimento de textos vários, com mais ou menos inovações e alterações (fase apócrifa). Este período messíaco é uma fase de messianismo judaico baseado em textos bíblicos, e não é ainda sebastianismo.

- Período Sebástico (1578-1640): As Trovas ganham popularidade e apoderam-se da esperança messiânica em volta do regresso de D. Sebastião desaparecido em Alcácer. (Interpretação sebastianista das Trovas.) O grande intérprete: D. João de Castro (Paraphrase, 1603).

- Período Bragantino (1640-1652):Transposição do mito do Encoberto de D. Sebastião para D. João IV. (Edição das Trovas de Nantes, de 1644, na base das edições de 1809 e 1866).

- Período do Quinto Império (1652-1750): Doutrinação do Padre António Vieira referente ao Quinto Império (Esperanças de Portugal, V Império do Mundo; História do Futuro).

- Período de Repressão Pombalina (1750-1799): Várias correntes de Sebastianismo, com ideias diferentes, provocando inquietação, levam a uma acção repressiva, exercida pelo Marquês de Pombal.

- Período do Século XIX (1799-1866): Interpretação do Sebastianismo sob pressão das invasões francesas. Reacção anti-sebastianista expressa no opúsculo de J. Agostinho de Macedo, Os Sebastianistas (1810). Edição das Trovas de 1809 e 1866. » (pp. 77-8)

 O autor desenvolve a seguir a evolução do Sebastianismo nos seis períodos referidos.

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A Segunda Parte é uma Antologia.

O Capítulo I apresenta os documentos da Crença Sebástica, começando pelo Messianismo Pré-Sebastianista, com as Trovas do Bandarra (1866).

No Sebastianismo estão incluídos fragmentos de: Paraphrase et Concordançia de Alguas Propheçias de Bãdarra, Çapateiro de Trancoso, de D. João de Castro, Anacephaleosis da Monarquia Lusitana, de Manuel Bocarro Francês (1624), Restauração de Portugal Glorioso, de Gregório de Almeida (1753), História do Futuro, do Padre António Vieira (1718), Resposta de 1714 - Resposta q s deu em 1714, Aquem fez a seguinte pergunta - Devemos ainda hoje esperar pelo Senhor Rey Dom Sebastião?, Trovas,de Gonçalo Annes de Bandarra (1810), O Egregio Encuberto, de Manuel Claudio (1849).

No Anti-Sebastianismo, figura um fragmento de Os Sebastianistas, de José Agostinho de Macedo (1810).

No Capítulo II, o Sebastianismo como Tema Literário, são considerada obras de Poesia, Teatro, Prosa e Ensaios.

Em Poesia são apresentados excertos das obras: D. Sebastião e O Sebastianista, de Luís Augusto Palmeirim, AlcacerKibir, de João de Lemos, Alcacer Kibir (in Nas Trevas), de Camilo Castelo Branco, Pátria, de Guerra Junqueiro, O Desejado (in Despedidas), de António Nobre, A Sinfonia da Tarde (in Poesia I), de Jaime Cortesão, Aos Lusíadas e Oração Sebastianista, de Teixeira de Pascoaes, Dom Sebastião (in Lusitania) e O Sonho de Alcácer-Quibir, de Mário Beirão, O Encoberto (in Ilhas de Bruma), de Afonso Lopes Vieira), Quando Voltar El-Rei! (in À Margem das Chronicas), de Branca de Gonta Colaço, Alcácer-Kibir (in Renúncia), de Virgínia Vitorino), D. Sebastião, O Desejado, O Bandarra e Nevoeiro (in Mensagem) e À Memória do Presidente-Rei Sidónio Paes, de Fernando Pessoa, Soneto de Alcácer e A Derradeira Nau (in Pequena Casa Lusitana), de António Sardinha, Portugal (in Tríptico), de António Botto, Redondilhas (in Sibila), de Afonso Duarte, Xácara de D. Sebastião, de Vitorino Nemésio, D. Sebastião (in Alguns Poemas Ibéricos), de Miguel Torga, Repente (in Desesperadamente Vigilante), de António Manuel Couto Viana, Vou Retornar à Ilha (in Poesia), de Tomás de Figueiredo.

Em Teatro, o autor apresenta excertos destas obras: As Prophecias do Bandarra e Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, D. Sebastião, de Tomás Ribeiro Colaço, El-Rei Sebastião, de José Régio, El-Rey D. Sebastião, de Metzner Leone.

Em Prosa de Ficção, surgem: O Frade que Fazia Reis (in As Virtudes Antigas ou A Freira que fazia chagas e o frade que fazia reis) e A Brasileira de Prazins, de Camilo Castelo Branco, O D. Sebastião da Villa da Praia (in Quadros Açóricos), de Ferreira Deusdado, A Volta de El-Rei (in Capa e Espada), de Henrique Lopes de Mendonça, As Violas de Alcácer Quibir (in Pátria Portuguesa), de Júlio Dantas, Aventura Maravilhosa... (in Aventura Maravilhosa de D. Sebastião Rei de Portugal depois da batalha com o Miramolim), de Aquilino Ribeiro

Em Escritos Ensaísticos, Históricos e Polémicos, são apresentados: O Sebastianismo (in História de Portugal) e D. Miguel em Viena, A Vinda do Messias e Fuit Homo Missus a Deo (in Portugal Contemporâneo), de Oliveira Martins, O Encoberto, de Sampaio Bruno, Interpretação não Romântica do Sebastianismo (in Ensaios I), O Desejado e Tréplica a Carlos Malheiro Dias, de António Sérgio, A Evolução do Sebastianismo, de Lúcio de Azevedo, O Túmulo de D. Sebastião (in Em Demanda do Graal), de Afonso Lopes Vieira, O Encoberto (in D. Sebastião, Rei de Portugal), de Antero de Figueiredo, Exortação à Mocidade, de Carlos Malheiro Dias, Reflexões à Margem do Enigma Sebástico (in Regresso ao Sebastianismo), de PETRUS.

O Capítulo III é dedicado ao Sebastianismo no Brasil. São apresentados excertos de Profecias (in Os Sertões), de Euclides da Cunha e Pedra Bonita, de José Lins do Rego.

No fim do livro é apresentada extensa bibliografia.

 


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

D. SEBASTIÃO, ANTES E DEPOIS DE ALCÁCER-QUIBIR (BELARD DA FONSECA)

Em 1978, António Belard da Fonseca publicou a obra em dois volumes Dom Sebastião, Antes e Depois de Alcácer-Quibir, sobre a vida e a pós-vida do sempre lembrado monarca português.

No Primeiro Volume o autor trata do nascimento, educação, feitos do reinado e iconografia do rei e das causas e ocorrência da batalha de Alcácer-Quibir. No Segundo Volume são abordadas as origens do Sebastianismo, o aparecimento dos falsos "Dom Sebastião" e a investigação nos arquivos nacionais e estrangeiros.

Por se tratar de matéria já comentada anteriormente a propósito de livros sobre idêntico tema - que continuaremos a analisar -  limitar-nos-emos a referir os aspectos singulares da obra agora em apreço.

Escreve António Belard da Fonseca no Prefácio: «Efectivamente, no meio dessas centenas de livros, artigos, notas ou simples referências, apenas se destacam, pela análise documentada e generosa e patriótica intenção, a notável obra de Costa Brochado e o interessantíssimo estudo de Costa Ramalho.»

O livro de Costa Brochado é D. Sebastião, O Desejado, sobre o qual escrevermos oportunamente; o estudo de Costa Ramalho (Manuel) é um texto (O Desejado) publicado no Guia de Portugal Artístico. Parece que Belard da Fonseca se esqueceu (1978) das obras mais importantes já então publicadas sobre D. Sebastião.

Afirma ainda o autor no Prefácio que foi a contemplação do epitáfio no túmulo de D. Sebastião nos Jerónimos que deu origem ao seu trabalho, deixando supor que duvida da autenticidade dos seus restos mortais (provavelmente mesmo da sua morte em Alcácer-Quibir).

Do Primeiro Volume, a Primeira Parte incide sobre "Dom Sebastião" e a Segunda Parte sobre "A Batalha de Alcácer-Quibir".

Sobre o nascimento, mocidade e educação do rei (Capítulo I), Belard da Fonseca segue, em geral, a narrativa que já conhecemos. O Capítulo II é dedicado à pessoa do soberano e ao seu temperamento, compreendendo as doenças, os casamentos malogrados e os amores desconhecidos. 

Começa o autor por tecer considerações infundadas sobre os críticos de D. Sebastião: «E se os feitos pelos escritores que o conheceram  - ou os daqueles que, posteriormente, se inspiraram nessas obras - ainda se revestem de certo valor histórico e iconográfico, os dos historiadores e romancistas e os dos clínicos dos séculos XIX e XX são quase sempre destituídos de qualquer mérito especial ou fundamento sério. Estes últimos "retratos" do infeliz soberano são, realmente, pintados com as tintas das ideias políticas, dos devaneios literários, ou das fantasias pseudo-científicas ou psiquiátricas do seus autores, pelo que nos dão uma imagem imperfeita do retratado ou, pior ainda, inteiramente deformada.» (p. 32)

Cita Belard da Fonseca vários escritos sobre a personalidade de D. Sebastião, enaltecendo os que louvam as virtudes do monarca mas menosprezando aqueles que não suportam a sua visão laudatória do monarca, como Manuel Bento de Sousa, Camilo Castelo Branco, Sampaio Bruno, Costa Lobo, António Sérgio, Ricardo Jorge ou Montalvão Machado. Mas aceita o juízo de Alexandre Herculano. E, valha-nos isso, concorda com a opinião de Queiroz Veloso e subscreve o parecer de Moura Relvas (já comentado neste blogue). 

Sobre as doenças, o autor nada adianta em relação aos testemunhos conhecidos, embora insista em negar a impotência do rei.

Quanto aos malogrados casamentos, também o autor elenca os nomes das (im)prováveis noivas. Margarida de Valois, a arquiduquesa Isabel de Áustria e a infanta Isabel Clara Eugénia, escolhidas por terceiros, é certo, embora no caso da última D. Sebastião tivesse solicitado a sua mão a Filipe II em Guadalupe. Já por sua iniciativa, D. Sebastião propôs casamento à filha do Grão-Duque da Toscana (enquanto negociava com o tio Filipe II o casamento com sua prima Isabel Clara Eugénia) mas apenas com a intenção de obter apoio para a expedição a África (Belard não refere este pormenor, insistindo em que o rei não era de algum modo avesso ao casamento). 

Sobre os amores desconhecidos de D. Sebastião, menciona o autor uma princesa moura (Xerine, filha do derrotado Muley Mohammed), a filha do duque de Aveiro (D. Juliana) e até D. Joana de Castro, filha dos condes da Feira. A estes "amores" ter-se-ão referido o visconde da Juromenha e até Frei Luís de Sousa. Da leitura de obras anteriores, parece que estas alusões não passarão da imaginação fértil daqueles que as mencionam. É por demais conhecida a misoginia de D. Sebastião, dir-se-ia mesmo a sua aversão às mulheres, conforme testemunham algumas das biografias eruditas que comentámos anteriormente.

O Capítulo III intitula-se "Os Gloriosos Feitos Guerreiros do seu Reinado e os Actos Mais Notáveis da sua Administração". Escreve o autor: «E, todavia, tratou-se na realidade de um dos períodos mais brilhantes (se esquecermos, por momentos, a Gesta dos Descobrimentos) da História dos Portugueses. As graves consequências dessa derrota e a perda da independência da Pátria, como que ofuscaram da mente dos modernos historiógrafos - mesmo dos poucos verdadeiramente imparciais - a marcha gloriosa deste pequeno-grande Povo que, com escassa gente e fracos meios, se impôs em todas as partes do Mundo.» (p. 73) E menciona os feitos dos portugueses desde 1568 a 1574. Refere igualmente a Lei de 28 de Abril de 1570, que impõe rigorosas medidas de austeridade (algumas idiotas) que nunca foram verdadeiramente aplicadas e caíram rapidamente em desuso.

O Capítulo IV é dedicado à "Iconografia de D. Sebastião e seus Pais". O livro inclui reproduções de retratos de D. Sebastião, de D. Joana de Áustria, sua mãe e de D. João Manuel, seu pai. Os retratos do rei apresentados são os do Mosteiro das Descalzas Reales, de Madrid, por Cristóvão de Morais; do Museu Nacional de Arte Antiga, por Cristóvão de Morais (que Belard da Fonseca atribui erradamente a Cristóvão de Figueiredo); do Museu San Telmo, de San Sebastián, por Alonso Sánchez Coello (o retratado é muito improvavelmente D. Sebastião); do Kunsthistorisches Museum, de Viena, por Alonso Sánchez Coello (igualmente improvável que o retratado seja D. Sebastião); da colecção do arquiduque Fernando do Tirol, sem indicação de localização e autor, que Belard da Fonseca apresenta como sendo do rei; e o de Hieronymus Cock, que Belard da Fonseca indica encontrar-se em Viena, embora haja informação de que pertence a uma colecção particular portuguesa. Segundo José de Figueiredo, que foi o primeiro director do Museu Nacional de Arte Antiga, apenas as duas pinturas de Cristóvão de Morais e a gravura de Cock podem ser considerados retratos autênticos de D. Sebastião.

Na Segunda Parte, o autor trata das causas da batalha (Capítulo I), do desaparecimento e morte do rei (Capítulo II), da identificação do cadáver (Capítulo III) e do funeral nos Jerónimos (Capítulo IV).

Sobre as causas próximas e remotas da guerra em África e motivos da derrota, Belard da Fonseca acompanha, em geral, os relatos de Queiroz Veloso e Alfonso Danvila, embora enfatize sempre a necessidade de se combaterem os mouros, o perigo turco e a manifesta vontade dos portugueses na realização da expedição e justifique, na sua opinião pelas melhores razões, a decisão de D. Sebastião. Sabemos que a verdade histórica é bem diferente, mas importa compreender que a publicação desta obra se destina, acima de tudo, a "reabilitar" a figura do monarca português. O autor recusa admitir a obstinação, a arrogância e vaidade do rei. Insiste Belard que a causa da derrota em Alcácer-Quibir foi a decisão de tomar Larache por terra, devido à falta do prometido auxílio naval de Filipe II. Ora sabemos que a generalidade dos nobres portugueses que acompanhavam D. Sebastião procurou, debalde, a conquista marítima, para a qual existiam meios, e que foi a teimosia do rei, desejoso de confrontar pessoalmente Abd el-Malik, que prevaleceu na decisão de realizar a malograda expedição terrestre, olvidando Larache e embrenhando-se na planície de Alcácer-Quibir.

No Capítulo II, o autor esclarece que utilizará apenas elementos de Frei Bernardo da Cruz, Jerónimo de Mendonça e Miguel Leitão de Andrada, no que respeita ao desaparecimento ou morte de D. Sebastião, pois que as narrativas dos autores seiscentistas, setecentistas e oitocentistas ou mesmo as do nosso tempo não lhe merecem grande crédito. Mas recorre ao espanhol Luís de Oxeda, que combateu em Alcácer-Quibir [publicação de 1904, ao que presumo], que a certa altura afirma que D. Sebastião foi degolado, o que inviabilizaria, naturalmente, o reconhecimento do cadáver. Cita também Salvador de Medeiros, criado do cardeal D. Henrique, António de Escovar, então em Marrocos, D. João de Castro, filho de D. Álvaro de Castro, salientando que Luís de Brito, Jorge de Albuquerque Coelho e Sebastião Figueira viram o rei, embora em ocasiões distintas, já fora do campo de batalha e livre de mouros, e segundo Figueira, com alguns fugitivos, e segundo Oxeda, a caminho de Arzila (na outra hipótese de D. Sebastião não ter sido degolado). Esta é  velha tese do "embuçado" chegado a Arzila, que já comentámos em posts anteriores. Também Diogo Barbosa Machado, em Memorias para a Historia de Portugal, que comprehendem o governo d'el-rei D. Sebastião, unico do nome, desde o anno de 1554 até o de 1561, publicadas de 1736 a 1751, considera que a precipitação de D. Diogo de Sousa partir com a armada rapidamente de Arzila só se explica por ter a bordo D. Sebastião. Belard insiste que a identidade posteriormente divulgada do "embuçado" como sendo Diogo de Melo apenas teve lugar muito mais tarde, na Historia general del mundo del tiempo del rey Felipe II, desde 1559 hasta su muerte, (1601-1612), de Antonio de Herrera. Acrescenta Belard que Herrera não se refere a Diogo de Melo na edição de 1601 mas apenas na 2ª edição de 1606, pois nessa altura já tivera lugar a execução do "4º falso D. Sebastião", em 1603, em Sanlúcar de Barrameda. Segundo o autor, também o historiador espanhol Ignacio Bauer y Landauer (1891-1961) observa, em Miscelanea histórica referente al rey Don Sebastián, citando uma obra da época de Alcácer, que o médico Mendez Pacheco foi castigado em vida do cardeal D. Henrique por ter dito que D. Sebastião estava vivo e por ter tratado as suas feridas. Ainda Belard transcreve passagens da Historia Sebastica (1735), do monge cisterciense Frei Manuel do Santos.

Conclui Belard da Fonseca que em face dos elementos históricos disponíveis não se pode afirmar que D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir.

O Capítulo III reporta-se à inscrição "Si vera est fama" existente no no túmulo de D. Sebastião no Mosteiro dos Jerónimos. Logo, sobre a dúvida dos restos mortais do rei se encontrarem no sarcófago. Belard da Fonseca divide o assunto em três partes: 1 - O pretendido achamento do corpo do rei; 2 - A sumária identificação do cadáver; 3 - A marcha do corpo de Alcácer até Ceuta.

Segundo  a narrativa aceite, na manhã de 5 de Agosto, dia posterior à batalha, Sebastião de Resende, moço de câmara do rei, comunicou ao novo xerife que tinha reconhecido D. Sebastião entre os mortos, oferecendo-se para ir buscar o cadáver, para o que lhe foi dada uma mula e escolta. E trouxe um corpo completamente nu para a tenda de Muley Ahmed. O soberano ordenou então a alguns fidalgos prisioneiros que procedessem ao reconhecimento do cadáver: D. Duarte de Meneses, D. Jorge de Meneses, D. Constantino de Bragança, D. Nuno de Mascarenhas, D. António de Noronha, João Rodrigues de Sá, D. Duarte de Castelo Branco e Belchior do Amaral. O corpo apresentava vários fermentos, um dos quais muito profundo do lado direito, e também na cabeça. No dia 7, antes de meterem o corpo no caixão, foi solicitada a presença de dois portugueses para nova identificação. Um não compareceu por estar ferido (Fernão da Silva), o outro quando viu o cadáver não o reconheceu, por se encontrar em adiantada decomposição (Martim de Castro dos Rios). Então, o corpo foi coberto por uma grande porção de cal e o caixão transportado para Alcácer-Quibir. O autor transcreve as afirmações de Leitão de Andrada, Jerónimo de Mendonça e Frei Bernardo da Cruz, que têm alimentado a narrativa oficial, e também a de Luís de Oxeda, testemunha presencial, que declara que o corpo só chegou à tenda do Xerife às oito da noite. E que era um mouro quem trazia o cadáver e que Sebastião de Resende se limitou ao reconhecimento prévio ao dos fidalgos por ser moço de câmara e poder reconhecer os sinais físicos e íntimos do rei. [Aqui Belard releva a falta de rigor desta interpretação, pois é dado como adquirido que D. Sebastião, por um excesso de pudor, nunca se despia nem mesmo diante de criados, apenas perante os médicos].  

Contesta Belard da Fonseca o valor probatório do depoimento de Sebastião de Resende, que se ofereceu ao Xerife para reconhecer o corpo em troca da liberdade, e interroga-se como tenha o seu testemunho podido servir aos cronistas e escritores posteriores. Opina, assim, que a verdade deve estar com Oxeda. 

Menciona ainda o autor um texto de Pedro Matheo (Histoire des Derniers Troubles de France, c. 1606) em que este refere uma conversa entre o Príncipe de Condé, Henri de Bourbon e o Padre José Teixeira, erudito português muito considerado na corte de Henrique IV. Nesse trecho, é afirmado que o "ce cadavre qui fut enterré en Betheleem, comme sien [de D. Sebastião], en Janvier 1583, était celui d'un Suisse, aussi l'appellaient commument les Portugais.»

Como é sabido, o corpo foi transportado, em 7 de Agosto, para uma dependência da casa do alcaide de Alcácer -Quibir. Estavam presentes dois cativos chamados para o efeito: Fernão da Silva e Martim de Castro, que deveriam proceder a nova identificação, o que se revelou inútil dada o rosto se encontrar já irreconhecível. O corregedor da Corte, Belchior do Amaral, acompanhou o cadáver, tendo sido logo libertado e indo dar a notícia a Arzila e Tânger. Belard da Fonseca considera-o uma personagem muito duvidosa e oportunista.

Antes de concluir este capitulo, Belard da Fonseca fornece uma informação que não consta das obras anteriormente comentadas neste blogue (pp. 160-1):

«Em 28 de Agosto, D. Henrique é aclamado rei e começa logo a fazer diligências, a fim de resgatar o corpo sepultado em Alcácer, encarregando dessa missão Frei Roque, religioso da Ordem da Santíssima Trindade, residente em Ceuta o qual foi autorizado a oferecer ao xerife uma importância até setenta mil cruzados. Surge, porém, nessa altura, uma situação absolutamente anormal e estranha. É que um estrangeiro, de nome André Gaspar Corso, comerciante genovês que vivia em Marrocos, faz também negociações por sua conta, para esse resgate, obtendo do sultão a promessa de só lhe entregar, a ele, o referido cadáver. Os cronistas, ao mencionarem tal actuação misteriosa - tanto mais que, juntamente com essa entrega, o genovês negociava a de D. João da Silva, embaixador de Espanha em Lisboa, feito prisioneiro na batalha, o que mostrava não ser Filipe II alheio ao negócio - concluem, apenas, que Gaspar Corso pretendia obter as boas graças do soberano espanhol. O certo é que foi este genovês quem foi a Alcácer buscar o corpo, dito de D. Sebastião, acompanhando-o cinco fidalgos portugueses, já resgatados, e o citado diplomata espanhol, sendo aquele, igualmente, quem o veio a entregar a Frei Roque, na cidade de Ceuta. O certo é, também, que esse restos mortais não vieram, para Portugal, senão passados quase cinco anos (o que se torna inexplicável, em face das diligências de D. Henrique), quando já tinha morrido o Cardeal e era novo rei Filipe II de Espanha. Por que vieram essas ossadas, em fins de 1582, para Lisboa, compreende-se perfeitamente; mas que as não tenham trazido, em Dezembro de 1578, é que faz pensar num motivo oculto.»

Entende o autor que a intenção de Gaspar Corso era a de que o corpo fosse entregue a Filipe II e não a D. Henrique, visto que aquele pretendia conduzi-lo para Castela. Mas o rei de Espanha reconsiderou, e como se aprestava a tornar-se rei de Portugal, entendeu que seria preferível que os restos mortais permanecessem em Ceuta, para só posteriormente serem trasladados para Lisboa. E conclui que o facto das ossadas terem permanecido em África quase cinco anos (o tempo normal para a desagregação do esqueleto) confirma que Filipe II, ao contrário de D. Henrique, tinha dúvidas sobre a sua autenticidade.

O Capítulo IV trata do funeral de "D. Sebastião". Em Dezembro de 1582, sendo Filipe II já rei de Portugal e encontrando-se em Lisboa, o duque de Medina Sidónia foi buscar os restos mortais a Ceuta. A esquadra aportou ao Algarve, tendo o féretro sido desembarcado em Faro a 7 desse mês. Depois das cerimónias fúnebres, o funeral seguiu para Tavira, Beja e Évora, onde chegou no dia 9, sendo aguardado pelo arcebispo, D. Teotónio de Bragança. Após algumas missas, o cortejo dirige-se a Almeirim, onde é incorporado no préstito o corpo do cardeal D. Henrique, que ali estava sepultado. O funeral desce então o Tejo até Belém,  e a 20 de Dezembro são sepultados nos Jerónimos D. Sebastião, D. Henrique, bem como os restos mortais de alguns infantes, filhos de D. Manuel I e de D. João III, que se encontravam em Évora. 

O autor, contra algumas opiniões já expressas, defende que as ossadas dos infantes que se encontravam em Évora foram aí misturadas, intencionalmente, no caixão em que vinham os restos mortais atribuídos a D. Sebastião. No túmulo do rei foi colocado este epitáfio: HOC JACET IN TUMULO (SI VERA EST FAMA) SEBASTUS QUEM DICUNT LYBICIS OCCUBUISSE PLAGIS. Todavia, no túmulo de mármore hoje existente, mandado construir por D. Pedro II, a inscrição é a seguinte: CONDITVR HOC TVMVLO, SI VERA EST FAMA, SEBASTVS/ QUEM TVLIT IN LIBICIS MORS PROPERATA PLAGIS/ NEC DICAS FALLI REGEM QVI VIVERE CREDIT/ PRO LEGE EXTINCTO MORS QVASI VITA FVIT (Guarda-se neste túmulo (se é verdade o que se diz) Sebastião a quem a morte prematura levou nas plagas da Líbia. Não digas que se engana aquele que crê viver o rei para o morto, pela lei cristã, a morte é como se fosse a vida). [Tradução do autor].

António Belard da Fonseca discorda que o primeiro epitáfio tenha podido existir, não só porque as ossadas de D. Sebastião estavam encerradas num caixão de madeira, insusceptível de gravação, mas porque Filipe II nunca teria permitido a inscrição "si vera est fama", que colocaria em dúvida a autenticidade dos restos mortais. Explica depois que o primeiro epitáfio, mencionado na História Sebástica (1735),  de Frei Manuel dos Santos, é uma invenção deste, possivelmente devida a confusão decorrente da consulta de obras anteriores. A mudança dos ossos do caixão de madeira para o mausoléu de mármore, em 1682, efectuada em cerimónia privada, deve ter obedecido à comemoração do primeiro centenário da trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos realizada em 1582. Estiveram presentes os Conselheiros e o Secretário de Estado, além do Provedor das Obras, que mandou encerrar o túmulo.

Insiste Belard da Fonseca que, mesmo no século XVII, haveria médicos capazes de determinar se os ossos eram de D. Sebastião, atendendo a algumas conhecidas deformidades do rei, mas que isso não seria possível pois que, no saco de linho que viera de Ceuta, tinham sido introduzidas em Évora, como se disse, as ossadas de alguns infantes. 

A concluir o Primeiro Volume, afirma o autor, e aí estaremos todos de acordo, que, quer em 1582, quer em 1682, quer hoje, ninguém tinha ou tem a certeza que que os restos mortais contidos no mausoléu dos Jerónimos sejam os de D. Sebastião.

* * * * *

Vejamos agora o Segundo Volume. A matéria encontra-se dividida em quatro capítulos. Trata o I das Origens do Sebastianismo; o II, dos Falsos "Dom Sebastião"; no III, se o "Prisioneiro de Veneza" seria D. Sebastião; o IV aborda a investigação do caso nas bibliotecas e arquivos nacionais e estrangeiros.

No Capítulo I o autor começa por referir a obra de Costa Lobo, Origens do Sebastianismo, e a de Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, que comentaremos em publicações posteriores. E também as Trovas, de Gonçalo Anes, mais conhecido por o "Bandarra", sapateiro de Trancoso, que as escreveu entre 1530 e 1540, portanto antes do nascimento de D. Sebastião, que se inspirou nas Coplas de Frei Juan de Rocacelsa, religioso aragonês, contemporâneo dos Reis Católicos. O autor empenha-se em reabilitar a figura de D. João de Castro, neto do célebre vice-rei da Índia e filho natural de D. Álvaro de Castro, que foi ministro de D. Sebastião. É verdade que D. João de Castro foi um partidário acérrimo do Prior do Crato, tendo combatido ao lado deste, e empenhou-se em provar que o "D. Sebastião de Veneza" era verdadeiramente o rei.  Belard entende que ele não foi um louco, um sonhador ou um visionário, como é habitualmente tratado pelos historiadores, mas um patriota, uma pessoa inteligente e um escritor de mérito. Barbosa Machado diz que ele esteve em Alcácer-Quibir, Lúcio de Azevedo contesta, chegando a afirmar que ele nunca conheceu D. Sebastião. Belard da Fonseca infirma a afirmação de Lúcio de Azevedo. 

O Capítulo II é dedicado aos Falsos "Dom Sebastião". Estes pretendentes foram já analisados em posts anteriores. São, por esta ordem, o "Rei de Penamacor", cujo nome se ignora, o "Rei da Ericeira", o açoriano Mateus Álvares, o "Pasteleiro do Madrigal", o espanhol Gabriel de Espinosa e o "Prisioneiro de Veneza", o italiano Marco Túlio.

A descrição a que Belard da Fonseca procede acerca dos três primeiros pretendentes coincide com a apresentada nas obras que comentámos anteriormente, salvo no que respeita à presumível existência de uma filha de Espinosa e de D. Ana de Áustria referida pelo autor. Haveria no Arquivo de Simancas documentos sobre essa ligação, também mencionada no livro As Virtudes Antigas, de Camilo Castelo Branco. Já no que se refere ao italiano Marco Túlio o caso é diferente. O caso deste 4º pretendente ocupa muitas páginas do livro, já que Belard parece não estar convencido da inverosimilidade, largamente comprovada à época, do calabrês, assunto convenientemente descrito nas obras eruditas já comentadas neste blogue. A pretensão de Marco Túlio foi objecto de um livro de um dos seus mais ardentes defensores, D. João de Castro (neto do célebre vice-rei da Índia): Discurso da vida do sempre bem vindo e apparecido Rey D. Sebastião. Belard da Fonseca recorre especialmente ao livro (que já comentámos) de Miguel D'Antas, considerando que este desvaloriza a priori as possibilidades de o calabrês poder ser o rei D. Sebastião. E insinua que o "prisioneiro" de Veneza e, depois, do Bargello, em Florença (e que terá sido reconhecido por alguns portugueses como o verdadeiro rei).o chamada "Cavaleiro da Cruz", não é o mesmo que o calabrês Marco Túlio Catizone que foi preso em Nápoles.

O autor narra depois, com algumas variantes, o processo e posterior execução de Marco Túlio Catizone, conforme a narrativa constante das anteriores obras comentadas. E transcreve alguns manuscritos do Arquivo Geral de Simancas. 

O Capítulo III é expressamente dedicado a «O "Prisoneiro de Veneza" seria D. Sebastião?»

Começa Belard por escrever: «Como se viu no capítulo anterior, o aparecimento dos "Falsos D. Sebastião" não teve, inicialmente, a mesma causa. Com efeito, os casos do "Rei de Penamacor", do "Rei da Ericeira" e do "Pasteleiro do Madrigal" obedeceram a planos - alguns habilmente preparados - de terceiras pessoas, com o aproveitamento de indivíduos de qualquer forma semelhantes ao infeliz soberano, para se conseguir, assim, o alvoroço e o apoio do povo português na luta contra a dominação espanhola. Tratou-se, pois, em todos, da organização de movimentos patrióticos, com o fim de obter a independência, por meio de uma revolução nacional. E se dois deles abortaram quase à nascença, o do chamado "Rei da Ericeira" deu origem a um levantamento popular e a escaramuças de certa importância, que só foram sufocados, a custo, pelas tropas espanholas. De resto, esses três impostores surgiram, respectivamente, nos anos de 1584, 1585 e 1594, ou seja num período ainda próximo do desaparecimento do Rei em Alcácer-Quibir, quando o povo esperava vê-lo voltar um dia, e em que era, portanto, relativamente fácil atear, nele, a chama do patriotismo. Mas o caso do "Prisioneiro de Veneza" começa em 1598, vinte anos depois da cruenta batalha, quando as paixões patrióticas já estavam inteiramente adormecidas e quando o domínio espanhol parecia consolidado por completo. E surge espontaneamente, sem resultar como os outros mais antigos de uma cabala preparada por outrem, que urdira o plano, em todos os pormenores, e dirigia os "falsos D. Sebastião", como personagens de uma peça de teatro. Neste estranho caso de Veneza, o indivíduo que o viveu aparece, misteriosamente, sob o título de "Cavaleiro da Cruz", com toda a modéstia e sem fazer alarde da sua pretendida posição social ou qualidade de soberano.» (pp. 89-90)

O autor considera que Miguel d'Antas se apressou a descartar a possível autenticidade do "Prisioneiro de Veneza", para fundamentar a sua tese da falsidade de todos os pretendentes, o que foi rapidamente aceite por Rebelo da Silva, Mendes Leal e Pinheiro Chagas. E em abono da sua convicção de que o "Prisioneiro" era o verdadeiro Rei, publica a "Sentença de Clemente VIII", de 23 de Dezembro de 1598, onde o Papa reconhece D. Sebastião. Este documento é citado em Noites de Insomnia, de Camilo Castelo Branco. Existe também outra sentença papal, esta de Paulo V, de 17 de Março de 1617, mandando Filipe III entregar o Reino a D. Sebastião, sendo que Catizone havia sido executado em 1603!?! Haveria então em 1617 outro indivíduo em Roma a clamar os seus direitos? Mas há ainda um breve pontifício de Urbano VIII, destinado a Filipe IV, datado de 20 de Outubro de 1630, em que este Papa, ordena ao rei de Espanha a entrega de Portugal a D. Sebastião, que lhe fora apresentado no  Castel Sant'Angelo e lhe exibira as duas sentenças anteriores. É referido neste último breve que o peticionário tem filhos e mulher e solicita a transmissão de direitos.

«É claro que, como não há conhecimento de qualquer quinto "falso D. Sebastião" e o quarto tinha morrido em 1603, só se podem considerar duas hipóteses: ou os breves são autênticos e o rei sobreviveu à batalha de Alcácer-Quibir e lutou pelos seus direitos ao trono de Portugal, entre 1598 e 1630; ou essas sentenças são falsas e foram forjadas com determinado propósito. Os ilustres escritores que, antes de nós, se ocuparam desse problema - e que só conheceram tais breves, pela citação de Camilo - resolvem-no por forma, salvo o devido respeito, bastante simplista. Assim, Lúcio de Azevedo afirma, sem qualquer prova: "Os breves referiam-se ao D. Sebastião, de Veneza (Marco Túlio), de cujo suplício em S. Lúcar poucos sabiam, e que a parte dos sebastianistas, a quem eram desconhecidas as obras de D. João de Castro, supunha ter passado de Florença para França, pela Sabóia, escapando às ciladas dispostas no caminho pela protérvia dos Castelhanos."» (p. 98)

O autor refere-se também à Prova Num. XXVII, dos autos criminais contra a Companhia de Jesus, em que Seabra da Silva aponta três fingidas Bulas em toda a sua extensão, acrescentando: «Ora isto não prova, de qualquer forma, uma falsidade, porquanto nada do texto dessa intitulada "Prova Num. XVII", de Seabra da Silva, testemunhal ou documentalmente, mostra que tais sentenças pontifícias não sejam autênticas.» (p. 103)

Volta agora Belard da Fonseca a colocar a questão dos sinais físicos de D. Sebastião, que já abordara no capítulo anterior e que tem sido referido nos diversos livros sobre os falsos pretendentes. «Quando os pouco portugueses, exilados em Veneza, conheceram o "Cavaleiro da Cruz", em Junho de 1598, e o tomaram por D. Sebastião, como já tivessem decorridos vinte anos sobre o desaparecimento do seu soberano em Alcácer-Quibir, pretenderam certificar-se do facto com absoluta segurança. Tratava-se, todavia, de pessoas de condição modesta, alguns comerciantes e religiosos. que não tinham privado com o rei, ou que eram muito novos em 1578, quando este partira para Marrocos. Tinham, portanto, somente, duas formas de fazer essa identificação: por pessoas mais idosas, nobres que tivessem frequentado a Corte e que o tivessem conhecido pessoalmente; ou pela indagação exacta dos seus sinais particulares, devidamente comprovada. Procuraram, por tal motivo, chamar a Veneza outros compatriotas de elevada condição social, como Frei António de Sousa, Manuel de Brito de Almeida, Frei Lourenço de Portugal, D. Cristóvão, filho do Prior do Crato, e Frei Estêvão de Sampaio. Quando estes chegaram, porém, àquela cidade, já o "Cavaleiro da Cruz" tinha sido preso, por ordem da Senhoria e a pedido do embaixador de Espanha. E não mais conseguiram ver o prisioneiro, ao qual não eram permitidas visitas. Um juiz ou senador veneziano, de nome Marco Quirini, que pretendia esclarecer-se sobre a identidade do prisioneiro, aconselhou Frei Estêvão a ir a Portugal obter os elementos necessários para se concluir se o mesmo seria ou não o infeliz soberano português. Esse religioso parte, por isso, para Lisboa onde chegou no fim de 1599, tendo procedido a demorada indagação quanto aos sinais particulares de D. Sebastião. Essa investigação foi escrupulosa, feita com a colaboração do cónego Rodrigues da Costa, junto de pessoas de idade que o tinham conhecido bem, tendo sido elaborada uma relação completa autenticada pelo notário Tomé da Cruz, dos sinais característicos ou morfológicos do corpo do rei. Tal relação - que Frei Estêvão de Sampaio levou, seguidamente, para Veneza, onde já se encontrava em Junho de 1600 - é conhecida, por tê-la transcrito o Padre José Teixeira, numa obra publicada em Paris no ano de 1601. E serviu, para os portugueses, especialmente Pantaleão Pessoa - como consta duma carta do mesmo, para D. Manuel de Portugal, filho mais velho do Prior do Crato -, procederem a demorado exame do "Prisioneiro de Veneza", na própria noite, de 15 de Dezembro de 1600, em que este foi posto em liberdade pela Senhoria. Verificaram, nessa altura, que tal indivíduo apresentava quase todos - e não viram os mais íntimos, porque, querendo ele despir-se para o efeito, não lho consentiram por respeito pela pessoa, na qual viam o seu soberano - esses caracteres morfológicos.» (pp. 105-6-7)

Esta argumentação de Belard em defesa da autenticidade do "prisioneiro", enferma de três vícios: 1) se era uma prova tão decisiva, todos os sinais sem excepção deveriam ter sido examinados; 2) se o "prisioneiro" pretendeu despir-se, isso contraria a habitual disposição de D. Sebastião de não se despir diante de qualquer pessoa, mesmo dos seus criados, e muito menos de exibir as suas partes íntimas; 3) não faz sentido a atitude deferente dos "examinadores" no "respeito pela pessoa", pois até à verificação integral do corpo não estavam certos de se tratar ou não do soberano, pelo que qualquer respeito em tão delicada matéria seria despiciendo.

Dispensamo-nos de transcrever a longa lista dos sinais e anomalias conhecidas do rei (constantes das diversas biografias), segundo Pantaleão da Cruz. Como não lhe tiraram o vestuário, nem todos os sinais puderam ser confirmados. O que não incomoda Belard da Fonseca, pois acha suficientes os que foram confirmados. E acrescenta que o juiz espanhol Luciano Négron, servindo-se da mesma "relação" não encontrou qualquer desses sinais em Marco Túlio Catizone. Daqui conclui o autor, sem sombra de dúvida, que o "Prisioneiro de Veneza" e "Marco Túlio Catizone" seriam duas pessoas difeentes. «E como não existiu um quinto "falso D. Sebastião", teríamos de admitir uma troca de presos, em qualquer ocasião do percurso de Veneza a Florença e a Nápoles (as cidades onde, sucessivamente, a misteriosa personagem esteve encarcerada), ou, até, na povoação espanhola de San Lucar» (p. 111)

O autor elabora depois largamente, com base numa narrativa de uma revista francesa de 1844, a favor da sua tese da troca de prisioneiros, acabando por admitir que o verdadeiro D. Sebastião, que Catizone substituiu, foi encarcerado num castelo de Espanha por Filipe III.

O Capítulo IV, e último, trata de "A Investigação do Caso nas Bibliotecas e Arquivos Nacionais e Estrangeiros". 

No Arquivo Secreto do Vaticano procurou verificar a autenticidade dos breves pontifícios anteriormente citados mas as suas pesquisas foram infrutíferas. Tal como na Biblioteca Apostólica. Investiga também no Arquivo Geral de Simancas e noutros arquivos com resultados irrelevantes. Encontra finalmente um manuscrito encriptado que se propõe decifrar e onde encontra matéria que lhe permite sustentar a sua tese da troca de prisioneiros. 

O livro é acompanhado pela reprodução de dezenas de manuscritos que o autor cita ao longo do texto.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

LIBERDADE

Li, integralmente, Liberdade, no original Freiheit. Erinnerungen 1954-2021 (Liberdade. Memórias 1954-2021), autobiografia de Angela Merkel, que foi chanceler da Alemanha de 2005 a 2021 e a quem o saudoso Eduardo Pitta costumava chamar “camponesa luterana obstinada”.

Trata-se de um imenso livro, recentemente publicado, de 714 páginas em letra miúda, o que em caracteres normais significaria cerca de 1 000 páginas.

Deve dizer-se que o livro se encontra formalmente bem escrito, combinando aspectos da sua vida pessoal, da sua vida política, da sua actividade académica, da situação na República Democrática Alemã e depois na Alemanha reunificada, da sua fulgurante ascensão a deputada, ministra e finalmente chanceler do país. Com muitas descrições minuciosas, outras nem tanto, a que se juntam episódios de carácter doméstico e alguns mesmo anedóticos, tudo isto descrito, obviamente, na perspectiva da autora. Existem algumas imprecisões, notam-se várias lacunas mas há que reconhecer tratar-se de um trabalho colossal, só possível pelo facto de a autora ter reunido ao longo da sua carreira o material indispensável à realização desta obra, na qual teve como preciosa auxiliar Beate Baumann, sua colaboradora desde que ingressou na vida política. Importa também salientar que a tradução é geralmente fluente, apesar de ter sido executada por quatro pessoas, dada a compreensível urgência editorial da publicação do livro.

É possível que Angela Merkel tenha pensado, desde muito cedo, em publicar as suas memórias. Mas creio, até pelo teor da obra, que a sua decisão tenha correspondido principalmente à necessidade de se justificar, perante os alemães e o mundo, de muitas das suas decisões e indecisões, numa altura em que a Alemanha desempenhava um papel fulcral na política europeia, e até internacional, o que já não se verifica no tempo que vivemos. E também lhe dá espaço para proceder ao seu auto-elogio, de que não prescinde sempre que a ocasião se proporciona. 

 
Não permite este espaço um comentário detalhado sobre o enorme livro, pelo que se fará referência apenas a alguns aspectos que solicitaram particular atenção.

Devo acrescentar que não comungo dos pressupostos ideológicos de Angela Merkel e que, neste livro, me interessei especialmente sobre a sua intervenção na política internacional, até pelo facto de não ter acompanhado com a devida atenção o seu desempenho na vida interna da Alemanha.

É um pouco estranha a vida familiar de Angela Merkel. Casou em 1977 com o seu colega Ulrich Merkel, tinha então 23 anos e ele 25, de quem viria a divorciar-se posteriormente (1982), embora continuasse a manter o respectivo apelido. Casou pela segunda vez em 1998 com Joachim Sauer, cinco anos mais velho e pai de dois filhos de um casamento anterior. Angela Merkel nunca teve filhos, presumo que para não perturbar a sua carreira política (é uma opção), embora se possa também dever a causas biológicas que desconheço. Angela, tal como os dois maridos, é cientista na área da físico-química. O segundo marido, que raramente é mencionado na biografia (apenas a acompanhá-la em algumas visitas oficiais) deve ter-se resignado a um papel académico e de consorte.

 
Ao longo destas memórias, Angela Merkel tenta demonstrar-nos a forma como tomou as suas decisões, embora admita ter cometido alguns erros. E as suas “confissões” permitem entrever alguns actos certamente menos felizes, como a forma como puxou o tapete ao ex-chanceler Helmut Köhl, envolvido num aparente caso de corrupção, a quem ela devia a sua ascensão política, e que foi obrigado a demitir-se de presidente honorário da CDU.

Também não deixa de ser curiosa esta afirmação de Merkel no discurso de apresentação da candidatura a presidente da CDU, em 2000:

 
«… Mas quero também uma CDU que, após os debates e as discussões, tome decisões claras, aceite as decisões por maioria e siga em frente perfilhando um caminho comum…» (p. 259)
Este discurso de Angela Merkel assemelha-se muito ao de Salazar, em 27 de Abril de 1928, quando tomou posse como ministro das Finanças:

 
«Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.» (Oliveira Salazar, Discursos, Volume I, p.6)

No que respeita à guerra do Iraque, Angela Merkel foi muito favorável à sinistra invasão protagonizada por George W. Bush e Tony Blair, em oposição ao então chanceler Gerhard Schröder. Reconhece agora o embuste das armas de destruição maciça mas não se coíbe de dizer que foi muito bom que Saddam Hussein tenha sido derrubado.

Conta também algumas conversas com Vladimir Putin, entre as quais a seguinte:
«Nove meses depois, a 21 de Janeiro de 2007, visitei Vladimir Putin na sua residência de Sochi, junto ao mar Negro. Durante a conversa, ele atirou-me à cara que, na sua opinião, o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. Esta atitude não era nova, já a havia manifestado publicamente em 2005 no discurso sobre o estado da Nação. […] Em Sochi, deixei-o falar e tentei manter-me calma. Respondi que ele deveria conversar com George W. Bush acerca do sistema antimísseis e sublinhei ainda que a maior catástrofe do século XX foi o nacional-socialismo na Alemanha e que, de um modo totalmente inesperado, o fim da Guerra Fria mudou a minha vida para infinitamente melhor.» (pp. 362-3)

Perfilho a opinião de Vladimir Putin que o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. O nacional-socialismo, na sua hubris alucinada, foi também uma catástrofe, todavia de características diferentes. No primeiro caso, houve o desmoronamento súbito de um sistema responsável pela vida de 300 milhões de pessoas. No segundo, uma guerra devastadora que causou cerca de 80 milhões de mortos entre militares e civis. Ambos os casos foram uma tragédia, embora a queda da URSS configure a implosão de um só território.

 
Entre várias imprecisões, registo esta - confusão de Angela Merkel ou problema de tradução - a propósito de uma conversa com o secretário do Tesouro norte-americano, Henry M. Paulson:

 
«Mostrou-se particularmente interessado em saber porque diabo os países da Zona Euro estabeleceram um pacto de estabilidade no qual se comprometiam a limitar o défice orçamental a 3% do produto interno bruto (PIB) e a dívida pública a 60% do PIB. A minha resposta de que, tendo em conta a responsabilidade para com as gerações futuras, era importante fazer uma gestão sustentada, em particular num continente com uma população envelhecida, suscitou-lhe apenas um sorriso rasgado.» (p. 372)
Que Paulson se tenha rido desta afirmação de Merkel não surpreende. Um secretário do Tesouro norte-americano é por natureza um ser desumano cuja vida consiste em amontoar ouro à sua volta. A própria nota de dólar [In Go(l)d we trust] é disso prova. O que é realmente surpreendente é a afirmação do défice orçamental ser 3% do PIB; ora o que está indexado ao PIB é naturalmente a dívida e não o défice, que é meramente orçamental.

 
Há no livro uma larga descrição da crise financeira (decorrente da falência do Lehman Brothers) e da crise do Euro. Merkel descreve, à sua maneira, as diligências que fez para salvar o Euro, embora isso tenha levado a dolorosos sacrifícios das populações de Portugal, Espanha, Itália e especialmente Grécia. E enaltece a sua acção, respaldada pelo Tribunal Constitucional da Alemanha e apoiada ou forçada pelo inenarrável ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, no sentido de encontrar uma solução “compatível com as exigências dos mercados”, frase de que posteriormente se viria a arrepender, como ela mesmo diz, pois foi geralmente interpretada como se ela quisesse uma democracia compatível com as exigências dos mercados. No fundo, interrogo-me se não seria isso mesmo que ela queria. E escreve:
«É evidente que, neste contexto, fui a todo o tempo confrontada com a pergunta sobre se não podia ter simplesmente cedido e prescindido de todas as exigências de duras medidas de austeridade e reformas económicas face á situação da Grécia, Portugal, Espanha e Itália. A minha reputação nestes países estava na lama, em particular na Grécia.» (p. 412)

Naturalmente que haveria outras soluções, não fora a sua obstinação e a inconcebível ortodoxia financeira do Bundesbank. As medidas posteriores de Mario Draghi, no Banco Central Europeu, contribuíram para ajudar a resolver a crise do Euro.

 
Mas não foi só a reputação de Merkel que andou pela lama. Nos países vítimas da sua política, muitas vozes se ouviram gritando contra ela a última fala (dita por Herodes) da peça Salome, de Oscar Wilde, escrita originalmente em francês e logo a seguir traduzida para inglês por Lord Alfred Douglas:

“KILL THAT WOMAN!”

A questão da Ucrânia é amplamente tratada no livro. Na Cimeira da NATO em Bucareste, em 2008, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, em nome da Alemanha e da França, opuseram-se à concessão do estatuto Membership Action Plan (MAP) à Ucrânia, para grande frustração do então presidente Viktor Yushchenko. Pelas razões largamente explanadas, Merkel continua a entender que, na altura, foi a opção correcta. E menciona o facto de apenas uma minoria da população ucraniana apoiar então a pertença do país à NATO (p. 426) e da frota da Marinha russa no Mar Negro estar estacionada na península da Crimeia, de acordo com um tratado celebrado entre a Ucrânia e a Rússia, com validade até 2017. Note-se que este tratado foi prorrogado, em Abril de 2010, por um período de mais 25 anos, até 2042, por acordo entre os então presidentes Ianukovitch e Medvedev. A oposição à concessão do estatuto MAP à Ucrânia, naquela reunião, abrangeu também a Geórgia.

«Paralelamente ao alargamento da União Europeia em 2004, com a entrada de dez novos estados membros – Polónia, Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Eslovénia, Chéquia, Hungria, Malta e Chipre – a Comissão Europeia elevou a um novo patamar a cooperação com os vizinhos a leste a e a sul da EU, apresentando uma estratégia para a chamada Política Europeia de Vizinhança. Foi com esta base que, a 13 de Julho de 2008, em Paris, se fundou com os países do Sul a chamada União para o Mediterrâneo, à qual pertenciam então vinte e sete Estados-membros da União Europeia e dezasseis países mediterrânicos. Entre os países vizinhos a leste, a Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia, Moldávia e Ucrânia desejavam a integração na Política Europeia de Vizinhança, mas não a Rússia, apesar de muitos países da EU, entre os quais a Alemanha, serem a favor.» (pp. 441-2)

«Depois da guerra empreendida pela Rússia contra a Geórgia, em Agosto de 2008, gerou-se no seio dos membros da União Europeia, entre os quais a Alemanha, uma maior disponibilidade para agir, mesmo sem ou contra a Rússia. Por conseguinte, a 7 de Maio de 2009, em Praga, durante a presidência checa do Conselho Europeu, teve lugar a cimeira fundadora da chamada Parceria Oriental, na qual participaram o Azerbaijão, Arménia, Geórgia, Moldávia, Bielorrússia e Ucrânia, tornando-se assim, após a União para o Mediterrâneo, dez meses antes, a segunda etapa da Política Europeia de Vizinhança. (p. 442)

«O primeiro país da Parceria Oriental a concluir em 2011, as negociações de um acordo de associação com a EU foi a Ucrânia. Antes disso, operou-se uma mudança de Governo no país. Nas eleições presidenciais de 2010, o titular do cargo, Viktor Yushchenko, ficou fora da corrida na primeira volta, com apenas 5,5 % dos votos. Na segunda volta, em Fevereiro de 2010, Viktor Ianukovitch ficou à frente de Iulia Timoshenko, que em 2005 Yushchenko tinha exonerado do cargo de primeira-ministra.» (p. 443)

Na Cimeira da Parceria Oriental, em Vilnius, em 28 e 29 de Novembro de 2013, Ianukovitch disse a Merkel que ainda não era oportuno assinar o acordo com a União Europeia, devido ao diálogo que mantinha com a Rússia e os países da CEI.

 
Segue-se a descrição dos protestos na praça Maidan, em que a multidão [comandada especialmente pelos Estados Unidos, penso eu] agrediu os próprios delegados da oposição que tinham chegado a um acordo com Ianukovitch. Verifica-se depois a fuga deste e a eleição de Oleksandr Turtchynov para presidente do Parlamento e logo a seguir para presidente da República interino. Em 23 de Fevereiro de 2014, o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev ordenou a retirada do embaixador russo em Kiev. Em 28 de Fevereiro, homens armados de fardas verdes sem qualquer identificação oficial começaram a ocupar a Crimeia. No dia 1 de Março, Merkel telefona a Putin, que nega a intervenção. «E assim, como muito em breve vim a perceber sem margem para dúvidas, ele mentiu-me descaradamente. Jamais tal havia acontecido nas nossas conversas até àquele dia, pelo menos daquela forma. Não cortei o contacto com ele, não era uma opção que estivesse realmente em cima da mesa, mas daí em diante a nossa relação mudou.» (p. 449)

Em 16 de Março de 2014 uma esmagadora maioria da população da Crimeia votou a favor da unificação com a Rússia, embora Angela Merkel duvide da fidedignidade do referendo. A ex-chanceler [num exercício de alguma hipocrisia] recorda o Memorando de Budapeste de 1994, no qual, em troca da entrega de armas nucleares soviéticas existentes no território, se garantia à Ucrânia a protecção da integridade do país. [Em primeiro lugar, as armas nucleares estacionadas na Ucrânia eram russas, em segundo lugar, o contexto geopolítico tinha-se modificado radicalmente]. Em 21 de Março, em Viena, na reunião do Conselho Europeu, os chefes de estado e de Governo da EU e o primeiro-ministro ucraniano Arseniy Yatsenyuk assinaram a componente política do acordo de associação entre a EU e a Ucrânia que não fora assinado em Vilnius. Nesse mesmo dia, o Conselho Permanente dos 57 países-membros da OSCE, a que pertencem a Rússia e a Ucrânia, aprovou o envio de uma missão especial de observação para a Ucrânia (SMM, Special Monitoring Mission. Em 24 e 25 de Março, em Haia, o Grupo dos agora Sete excluiu a participação da Rússia, anulou o encontro previsto para Sochi e veio a reunir-se, já como G7, em Bruxelas, em 4 e 5 de Junho de 2014.

Verificam-se, depois, os confrontos no Donbass, e em 11 de Maio de 2014 uma maioria de votantes das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk proclama a independência.

 
Para o 70º aniversário do desembarque dos Aliados na Normandia, em 6 de Junho de 2014, François Hollande convidou mais de 20 chefes de Estado e de Governo. Petro Poroshenko, novo presidente da Ucrânia, manifestara a Merkel a vontade de estar presente, até porque as tropas ucranianas tinham combatido na Segunda Guerra Mundial e seria uma oportunidade de se avistar com Putin, que estaria também presente. Assim, encontram-se todos no castelo de Benouville. Hollande conseguiu arranjar dez minutos antes do almoço, em sala à parte, para juntar com ele Angela Merkel, Vladimir Putin e Petro Poroshenko. A conversa resultou bem, embora sem acordos concretos. Nascia assim o “Formato Normandia”.

Em 20 de Junho de 2014, Poroshenko apresentou um plano de paz, em quinze pontos, em que previa a retirada dos mercenários russos e ucranianos, o desarmamento dos separatistas e critérios para a sua possível impunidade, a criação de uma zona-tampão na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, a descentralização do poder mediante a alteração da Constituição e a antecipação das eleições autárquicas e legislativas. Mas o líder da República de Donetsk rejeitou o cessar-fogo. Em 23 de Agosto, véspera do Dia da Independência da Ucrânia, Angela Merkel, depois de conversações com Poroshenko e Yatsenyuk, declara que “sem conversações e diplomacia não se chegaria a uma solução”, acrescentando que “não haverá uma solução militar” (p. 457). Mas Oleksandr Turtchynov, novamente presidente do Parlamento [certamente um partidário da guerra] comentou que “a diplomacia era muito boa e muito bonita mas só o exército ucraniano tem condições para pôr fim a esta guerra”. O plano de paz de Poroshenko estava sob grande pressão política mas, mesmo assim, foi assinado o “Protocolo de Minsk”, em 5 de Setembro de 2014,com as duas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, e no dia 19 de Setembro o “Memorando de Minsk”, que visava a implementação do protocolo. Contudo, o cessar-fogo nunca chegou a ser cumprido.

A 11 de Fevereiro de 2015, encontraram-se em Minsk, no Palácio da Independência, Angela Merkel e François Hollande com Vladimir Putin e Petro Poroshenko, uma nova reunião no “Formato Normandia”, tendo declinado, para poupar tempo, o jantar comemorativo que o presidente bielorrusso Alexander Lukashenko pretendia oferecer. A reunião durou 17 horas, tendo terminado por volta das 12 horas do dia 12. Era necessário chegar a acordo quanto à entrada em vigor do armistício. Putin declarou-se disponível para apresentar o pacote de medidas, que de futuro se viria a chamar Minsk II, juntamente com o Acordo de Minsk e o Memorando de Minsk de Setembro de 2014, de futuro Minsk I, como proposta de resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A 13 de Fevereiro, tal como estipulado, a Rússia apresentou a proposta de resolução com os vários Acordos de Minsk ao Conselho de Segurança, que foi aprovada por unanimidade a 17 de Fevereiro de 2015 como “Resolution 2202 (2015)”.

«A anexação da Ucrânia alterou dramaticamente o nível de ameaça não apenas na Ucrânia, como em toda a Europa. Ocorreu o que se tentou evitar no início da década de 1990: uma nova linha divisória atravessava o continente. Já não era possível excluir uma ameaça por parte da Rússia aos países-membros da NATO. A par de todas as tentativas de solucionar o conflito entre a Ucrânia e a Rússia pela via diplomática, a Aliança era obrigada a reagir à nova situação também pela via militar. Isto sucedeu na Cimeira da NATO a 4 e 5 de Setembro de 2014, em Newport, no País de Gales. Depois de a NATO se ter concentrado anos a fio em missões no exterior, como na ex-Jugoslávia, no Afeganistão e na Líbia, a obrigação de defesa mútua de acordo com o artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte dentro dos territórios da Aliança voltou, face à ameaça representada pela Rússia, a estar na ordem do dia. Finda a Guerra Fria, os planos de defesa tinham passado, em larga medida, para segundo plano. E eis que a situação se alterava. A cimeira acordou medidas com vista à agilização da reacção militar na Europa (Readiness Action Plan – Plano de Acção de Prontidão), em particular para os países situados no flanco oriental da NATO, como a Polónia, Estónia, Letónia e Lituânia. Além disso, foi montada uma task force de alto nível da NATO, a VJTF (Very High Readiness Joint Task Force), uma unidade militar de intervenção rápida. Os Estados-membros comprometeram-se a, no prazo de dez anos, aproximar-se do valor de referência de 2% do PIB aplicados em despesas relacionadas com a defesa.» (p. 468-9)

O tema dos gastos com a defesa foi, e continua a ser, um pomo de discórdia.
«Na Cimeira da NATO em Varsóvia, a 8 e 9 de Julho de 2016, deliberou-se o destacamento de agrupamentos tácticos (battlegroups) multinacionais na Polónia e nos Estados Bálticos. A Alemanha assumiu a liderança em 2017, na Lituânia. As tropas revezavam-se de seis em seis meses, dado que o Acordo NATO-Rússia proibia os destacamentos permanentes nos novos Estados-membros, e eu fazia questão de continuar a respeitar os acordos, apesar da tensão com a Rússia.» (p. 469)

Não sendo possível, devido à extensão do presente texto, continuar a desenvolver as mais importantes participações de Angela Merkel em política externa, passarei a indicar apenas os tópicos das acções mais relevantes.

São dedicadas largas páginas ao capítulo Imigração e, em especial, ao acordo efectuado com a Turquia para a retenção de imigrantes, nomeadamente sírios, nesse país. (pp. 489 e seguintes)

Também merecem relevo a Cimeira de Copenhaga sobre o Clima, em 2009, a Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, em 2015 (p. 545), a Cimeira do G20, em Hamburgo (p. 561), a questão do Nord Stream 1 e 2 (p. 576) e as missões da Bundeswehr no Afeganistão, na Líbia, nos Balcãs Ocidentais (pp. 587 e seguintes). Angela Merkel admite, implicitamente, o erro das intervenções armadas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia.

Angela Merkel refere com ênfase a questão do serviço militar obrigatório (pp. 602 e seguintes). Era de opinião que se mantivesse, ainda que restringido no tempo, sendo já menos de 20% das pessoas nascidas num dado ano que prestavam serviço militar básico. Nas discussões para redução do orçamento da Defesa proposta por Schäuble, em 2010, o assunto foi vivamente debatido. Em 15 de Dezembro de 2010, o Conselho de Ministros decidiu suspender o serviço militar obrigatório, mas não aboli-lo. Foi introduzido o “serviço militar voluntário”, bem como o “serviço civil voluntário”, em substituição do “serviço civil”.

É vasto o espaço dedicado às relações da Alemanha, e da própria Merkel, com Israel. A ex-chanceler, na esteira de Adenauer, considera-as uma “razão de Estado”, tendo em conta o passado nazi do país e faz o elogio do Estado judaico. A propósito de uma viagem, escreve: «A 9 de Outubro de 2021, um sábado, aterrei ao início da noite em Telavive, no Aeroporto Ben-Gurion. Daí segui directamente para Jerusalém, onde passei a noite no lendário King David Hotel. Uma parte desse hotel, inaugurado em 1931, servira até à independência do Estado de Israel, em Maio de 1948, de sede administrativa do Mandato Britânico da Palestina.» (p. 611) Não lhe ocorreu referir que para a lenda desse hotel muito contribuiu o ataque à bomba, em 22 de Julho de 1946, efectuado pela organização armada sionista Irgun, chefiada por Menachem Begin, que foi mais tarde primeiro-ministro de Israel, e de que resultaram 91 mortos (28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e 5 não referenciados), além de 45 feridos graves.

Também Angela Merkel se refere aos episódios de tremuras em cerimónias oficiais, ocorridos pela primeira vez aquando da primeira vista de Estado à Alemanha de Volodimir Zelensky, em 2019.(p. 631) Estes incidentes, que todos observámos pelas televisões, foram posteriormente considerados como consequência de tensões acumuladas durante muito tempo.

O último capítulo do livro é dedicado à pandemia covid-19. A autora descreve a evolução da doença, as medidas adoptadas, as restrições às liberdades e mesmo as dificuldades de harmonizar os pontos de vista do governo federal e dos governos dos Estados-federados.

Na página 668, Angela Merkel interroga-se sobre se teria sido possível evitar a invasão da Ucrânia, caso não houvesse a pandemia. «Ninguém sabe se o ataque de Vladimir Putin á Ucrânia, iniciado a 24 de Fevereiro de 2022, podia ter sido evitado se a pandemia não se tivesse instalado e se, ao invés de encontros virtuais, tivessem sido possíveis encontros pessoais, tanto bilaterais como no chamado Formato Normandia – entre Alemanha, a França, a Ucrânia e a Rússia. Certo é, porém, que a covid foi um prego no caixão dos Acordos de Minsk, celebrados em Fevereiro de 2015. Desde 2016 e até terminar as minhas funções como chanceler federal, já só houve mais um encontro no Formato Normandia, a 9 de Dezembro de 2019, em Paris, poucas semanas antes do início da pandemia. Esse encontro em Paris foi também o único em que participou o recém-eleito presidente ucraniano Volodimir Zelensky, que assumiu o cargo seis meses antes. Ganhou as eleições, tendo-se imposto na campanha ao seu antecessor, Petro Poroshenko, em boa medida graças à sua popularidade como actor e comediante e à extraordinária capacidade de comunicação. Zelensky censurou fortemente Poroshenko, que negociou os Acordos de Minsk, não só por o conflito se manter activo no Donbass como a Crimeia permanecer ocupada pela Rússia desde 2014, e prometeu que se esforçaria por devolver a paz ao seu país.»
«No Governo ucraniano e no Parlamento havia uma forte resistência contra a parte dos Acordos de Minsk que previa um elevado grau de autonomia para os territórios separatistas após a realização de eleições locais. Ainda assim, os acordos resultaram numa certa pacificação da situação, sobretudo em comparação com a altura anterior à sua entrada em vigor. […] Foi por essa razão que Petro Poroshenko, o antecessor de Zelensky, manteve as conversações com a Rússia – no Formato Normandia, juntamente com a Alemanha e a França -, além de participar no Grupo de Contacto Trilateral da OSCE.» (p. 669)

«Aquando do nosso encontro em Paris no Formato Normandia, que ocorreu a 9 de Dezembro de 2019, era grande a pressão sobre Zelensky. No início de Outubro, mostrou-se disponível para uma maior autonomia nas regiões em conflito no Donbass, defendendo a chamada “Fórmula de Steinmeier”. Esta última foi o resultado de um encontro no Formato Normandia realizado em Outubro de 2015, em Paris, no qual Frank-Walter Steinmeier e os outros ministros dos Negócios Estrangeiros participaram. A fórmula descrevia de que modo e em que condições entraria em vigor uma lei que concedesse um estatuto especial de autonomia para as regiões de Donetsk e Lugansk, após a realização de eleições locais que obtivessem reconhecimento por parte da OSCE. Servia, desse modo, como um complemento do pacote de medidas previstas pelos Acordos de Minsk. Poroshenko, o antecessor de Zelensky na presidência ucraniana, concordou expressamente com a fórmula, mas, entretanto, juntou-se a uma multidão de quase cem mil manifestantes que, em Kiev, se opunham a Zelensky e gritavam “Não à capitulação! Não à amnistia!”, protestando, no fundo, contra os Acordos de Minsk. Ao contrário do que ficou estipulado nos acordos, os manifestantes, bem como alguns representantes do Governo e do Parlamento, não aceitavam qualquer autonomia para as regiões ocupadas pelos separatistas nem qualquer amnistia para os que aí eram responsáveis.» (pp. 670-1)

«Zelensky pretendia um controlo ucraniano antes das eleições locais, mas no pacote de medidas acordado em Minsk tal só estava previsto para o período posterior às eleições. Até lá, só mesmo os observadores da OSCE deviam ter acesso à fronteira. Putin insistia na formulação que constava nos Acordos de Minsk. Eu aconselhei Zelensky a não pôr em causa o estipulado, pois foi após cuidada reflexão que em 2015 incluímos o reconhecimento das eleições por parte da OSCE, em particular através do seu Gabinete para as Instituições Democráticas e os Direitos Humanos (ODIHR), no pacote de medidas incluído nos Acordos de Minsk. Estava convencida de que, se conseguíssemos falar o quanto antes com o ODIHR acerca das condições prévias para eleições locais livres e democráticas, haveria a possibilidade de esclarecer a questão do acesso à fronteira sem pôr em causa o que estava acordado. Pacta sunt servanda, “os acordos devem ser respeitados”, um princípio da política que tem dado provas do seu valor, mesmo quando cumpri-lo em nada nos facilita a vida. […] Zelensky manteve-se fiel ao seu ponto de vista. Para ele, havia porventura razões de política interna para não aceitar por completo o que tinha sido estipulado em Minsk, tanto mais que também o seu antecessor entretanto se demarcou desses acordos.» (p. 671)

Angela Merkel prossegue com a sua descrição de todas as diligências que efectuou, inclusive com Putin, apesar do tempo de pandemia, para alcançar uma solução satisfatória, mas teve a oposição do primeiro-ministro polaco Mateusz Morowiecki, da primeira-ministra estónia Kaja Kallas, e do presidente lituano Gitanas Nauséda. (p. 673)

«Também durante a minha última visita a Putin, em Moscovo, a 20 de Agosto de 2021, fui incapaz de alterar a situação. […] Despedimo-nos. Ao longo de duas décadas de encontros conjuntos, Putin havia-se transformado e, juntamente com ele, também a Rússia: de uma abertura inicial em relação ao Ocidente a situação evoluiu para um alheamento e depois para um completo endurecimento das relações. Em retrospectiva e apesar de toda as adversidades, considero ainda assim acertado que até ao fim do período em que ocupei o cargo de chanceler tenham sido valorizados os contactos com a Rússia, por exemplo através do Diálogo de São Petersburgo. Acho importante que a minha própria capacidade de diálogo com Putin não tenha sido abalada e que, através das relações comerciais – para lá dos benefícios económicos mútuos -, se tenham mantido activos os pontos de contacto. Na verdade, a Rússia é, a par dos EUA, uma das duas principais potências nucleares do mundo e, em termos geográficos, vizinha da União Europeia.» (pp. 673-4)

Pelo que se transcreveu, e pelo mais que Angela Merkel escreveu – e ela é uma pessoa insuspeita – pode concluir-se que a Alemanha pensava ser possível concluir-se um acordo com Vladimir Putin, satisfatório para a Rússia e também para a Ucrânia, atendendo às circunstâncias no terreno, mas que foi a obstinação de Volodymyr Zelensky que impossibilitou a sua realização. É que um acordo, ainda que com cedência de território (e essa solução nem sequer estava em cima da mesa antes da invasão) seria sempre preferível a uma guerra. Talvez o regime instalado em Kiev não previsse a duração e os danos humanos e materiais provocados pela guerra que entretanto sucedeu, mas compete ao poder político avaliar todas as consequências de decisões temerárias.

Atendendo a que este comentário ao livro Liberdade, de Angela Merkel, ocupou já um espaço demasiado extenso para a dimensão de um post, não me alongarei em outras considerações. Direi apenas que a Cultura está praticamente ausente dos 16 anos de Angela Merkel na Chancelaria Federal, uma omissão significativa.

É TUDO!