sábado, 15 de março de 2025

A MULATA

Em 1975 foi publicado pela primeira vez em Portugal o romance A Mulata, de Carlos Malheiro Dias (1875-1941), assinalando o primeiro centenário do seu nascimento, e que havia sido editado originalmente no Brasil em 1896.

Acontece que A Mulata não é verdadeiramente um romance mas antes uma longa dissertação filosófico-literária onde se encontra incrustado (hoje dir-se-á plasmado) um romance. Trata-se de um livro de mais de 400 páginas, servido por uma linguagem rebuscada e ortodoxamente naturalista, mas demonstrando já as capacidades do autor, então com apenas 21 anos, que se tornaria mais tarde um consagrado romancista, jornalista e historiador, e também político, mas que se encontra hoje praticamente esquecido.

Monárquico convicto e católico assumido, Carlos Malheiro Dias foi iniciado na Maçonaria em 1897, donde seria posteriormente irradiado.

A obra, recheada de citações e referências eruditas, é também um ensaio de psicologia não só das personagens mas da humanidade em geral, e especialmente do protagonista, Edmundo, jornalista tuberculoso de 21 anos cuja paixão fatal por Honorina, a "mulata", o há-de conduzir à morte.

Embora gostando de Edmundo, Honorina é uma prostituta que não se exime a manter relações sexuais com outros homens, e mesmo com mulheres, já que, com a sua amiga Emília, cultiva o lesbianismo. 

Outras figuras perpassam pelo livro, como Julião, o pobre estudante de medicina que, mergulhando no álcool, acaba na prisão, ou Emílio de Alcântara, que acha as mulheres impuras, faz o elogio da Antiguidade, arranja um efebo e indigna-se por não encontrar nas livrarias do Rio de Janeiro (onde a acção decorre) o livro de Abel Botelho O Barão de Lavos (1891), comentando: «Não encontro; decididamente, não há livrarias nesta terra, ninguém lê... - E baixando a voz: - A pederastia morre à falta de incentivos! E é pena...» (p. 332)

Atendendo ao conteúdo, e também por alusões à situação política brasileira, A Mulata provocou um escândalo no Brasil e Carlos Malheiro Dias foi constrangido a regressar a Portugal, acabando mesmo por retirar o romance da lista das suas obras publicadas. Pelo seu teor, o livro foi considerado um insulto ao povo, à magistratura, ao exército, à imprensa, à literatura. Porém, sem razão. Os brasileiros já tinham lido O Mulato, de Aluísio Azevedo (1881) e O Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha (1895), embora este, por tratar não só de relações entre pessoas de etnia diferente mas também da homossexualidade na Marinha, tivesse igualmente originado escândalo público.

Com a proclamação da República em Portugal (1910), Carlos Malheiro Dias voltaria ao Brasil, onde residiu até 1935, data em que regressou a Lisboa.

O prefácio à presente edição de A Mulata é assinado por Alexandre Pinheiro Torres.

 

sexta-feira, 7 de março de 2025

D. JOÃO III E D. SEBASTIÃO

Releio, no centenário da sua publicação, O "Piedoso" e o "Desejado" (1925), de Carlos Malheiro Dias. 

Não se trata propriamente de uma biografia de D. João III e de D. Sebastião, mas antes de uma evocação histórico-romântica daqueles soberanos, pela pena do conhecido escritor.

O autor descreve o panorama dos dois reinados, salientando a pobreza e o endividamento do país, os gastos com a Índia e com a expedição de Alcácer-Quibir. Refere as preocupações financeiras de D. João III, as suas despesas avultadas com benesses que concedia, com a continuação da construção dos Jerónimos, com as possessões ultramarinas. 

Refere as ligações familiares de D. João III com Carlos Quinto, de quem era duplamente cunhado, por ser casado com uma irmã do imperador (D. Catarina) e por este ser casado com uma irmã de D. João III (D. Isabel). Evoca ainda o facto de, até por razões de dote, D. João III ser instado a casar com sua madrasta D. Leonor (também irmã do Imperador) que enviuvara de seu pai (D. Manuel I) e que voltou a casar com Francisco I de França. O rei recusou tal casamento, que considerou inapropriado. 

Nas considerações sobre D. João III, Carlos Malheiro Dias recorre frequentemente aos Anais de Frei Luís de Sousa, de que cita muitas passagens. O autor tem também palavras de alguma compreensão para a Inquisição, cuja instalação em Portugal, a pedido de D. João III, justifica pelo ódio que os portugueses nutriam por judeus e cristãos-novos: «Quanto à ordem interna, nenhuma nação a gosou mais completa, e se a Inquisição manchou de fumo e sangue o reinado joanino, as suas victimas foram incomparávelmente em menor número que as imoladas pelas lutas religiosas que convulsionaram a Europa. Em confronto com as carnificinas dos huguenotos franceses, levados à fogueira e ao cadafalso pela plebe ávida de vingança, que se substituia aos carrascos para fazer justiça pelas próprias mãos, o tribunal do Santo Ofício foi em Portugal uma instituição ao serviço da ordem e que, embora por processos crueis, que eram os do tempo, concorreu para consolidar a unidade nacional.» (pp. 98-99) Certamente, uma apreciação muito benévola.

Sobre D. Sebastião, o autor escreve: «D. Sebastião não era o produto do fanatismo, da Inquisição e dos jesuítas, mas um filho póstumo da Idade Média, com a consciência hierática da sua magistratura de monarca, vendo nos prodígios do seu povo os favores tutelares da Divindade. O rei não escrevera os Lusíadas, mas, como Camões, tinha a concepção épica da pátria. Tal o poeta, arquitectava grandes e regeneradoras emprêsas. "Fazia das virtudes degraus para se precipitar nos abismos dos temerários". Tinha como preceito que a falta de perigo nas pelejas diminui os quilates às vitórias. Poesia! quando governar bem seria vender pelo maior preço a pimenta da Índia, fundir para relhas de arado os arnezes da armaria, fazer um filho numa princesa de Castela ou de França, cuidar mais da lavoura que da guerra... Mas a criança real brincava com as tempestades, guardava castidade, escrevia de joelhos o regimento dos seus heróis.» (pp. 118-119)

Este livro, sobre o reinado dos dois monarcas, é especialmente uma obra de exaltação patriótica e os factos são apresentados na interpretação própria do autor e manifestando as suas preocupações com aspectos específicos. Assim, pode ler-se: «Com a narrativa que da jornada de Elvas a Lisboa nos deixou um letrado do séquito cardinalício [Viagem do Cardeal Alexandrino, Miguel Bonello, sobrinho de Pio V, legado aos reis de França, Hespanha e Portugal, no anno de 1571, por João Baptista Venturino] podemos ressuscitar, atónitos, o fausto inverosímil que atingira nas vésperas da catástrofe o Portugal bélico-comercial da Renascença, onde se haviam acumulado as ruínas e as riquezas da política expansionista de três reinados. Logo de entrada, na recepção do duque D. João de Bragança, as pompas portuguesas deixam estupefacto o séquito do prelado romano. O duque apresenta-se faúlhante de pedrarias, as bandas da capa apresilhadas com rubis, o barrete de veludo guarnecido de pérolas e diamantes. O seu palácio é mais sumptuoso que todos os que os italianos viram em Espanha, exceptuando o de Madrid. As paredes das suas salas e escadarias estão recobertas de tepeçarias de sêda, ouro e prata, representando umas a tomada afortunada de Azamor pelo duque D. Jaime, outras a batalha de Aljubarrota. O leito do legado é de brocado de ouro, e com a mesma áurea tela está recoberta a mesa de estado. As cadeiras são de veludo franjado de ouro, e Venturino avalia em cento e cincoenta mil escudos as baixelas de ouro e prata que refulgem nos aparadores, enormes como altares. No banquete teatral servem-se, enquanto tocam os atabales, as trombetas, as adufas e os pífaros, pavões armados e pasteis de onde voam, ao abrirem-se, perdizes, melros e pombas bravas. O duque, como um soberano, é servido de joelhos. Para lhe darem de beber cumpre-se um cerimonial ostentoso. Adiante do escanção, que lhe apresenta a copa e o jarro de água, posta-se o mordomo com o bastão, entre os maceiros e os reis de armas, vestidos com sobrevestes de brocado de ouro. E quando, ajoelhado, o escanção oferece ao duque a copa de ouro, os instrumentos tocam, as trombetas estrugem! Assim bebia um copo de água o duque de Bragança, em 1571. Sete anos depois, o filho primogénito do senhor de Vila Viçosa, cativo dos mouros, dormiria sôbre o chão duro, entre os miasmas cadavéricos de Alcácer...» (pp. 139-140-141)

E, no mesmo tom: «Era louco o plano de D. Sebastião? Eram levianos os seus desígnios? De modo nenhum. O empreendimento de política mercantil do Oriente falira. Para sustentar a Índia seriam necessários o dobro dos homens e dos sacrifícios que custaria a manter ao pé da porta o Algarve africano. D. Sebastião era inspirado no seu projecto por um seguro instinto de política nacionalista. Suprema injustiça é querer vêr apenas em D. Sebastião o vencido de Alcácer-Quibir, e não o herói que ia combater pelo proveito da pátria. o seu acto não é um suicídio, mas uma reacção. Pretendendo ressuscitar as virtudes antigas, a sua castidade, irmã da de Nun'Álvares, era um protesto contra os vícios que infeccionavam a nação. A sua curta e formosa vida é um exemplo de imaculada fé, de coragem enérgica, de dignidade nobre e de patriotismo ardente. Podendo dormir entre os braços brancos de Margarida de Valois e envelhecer entre festins e caçadas, vendendo a pimenta da Índia e divertindo-se com as facécias dos bobos, preferiu ao amor das mulheres o amor da pátria e quis ser antes um herói do que um mercador de especiarias. Foi vencido: eis a culpa que lhe assacam. Foi um temerário: eis o defeito com que o desprestigiam. No depoïmento de quantos procuraram alijar as suas responsabilidades inculpando o monarca pela decadência que quis regenerar, e na obra tendenciosa com que a política espanhola intentou abafar a patriótica saüdade portuguesa pelo seu rei, se tem pretendido confirmar a sentença iníqua.» (pp. 167-168)

O parágrafo anterior ilustra o espírito do livro. Todavia, Carlos Malheiro Dias foi autor de vários romances que obtiveram o maior sucesso na sua época. Foi então considerado literariamente como o herdeiro natural de Eça de Queiroz. Mas a sua obra está praticamente, e injustamente, esquecida. 

Registe-se ainda que, a propósito de D Sebastião, Carlos Malheiro Dias travou uma célebre polémica com António Sérgio, assunto a que nos referiremos nos próximos posts deste blogue.

 

domingo, 2 de março de 2025

SOBRE A ORDEM DE MALTA E NÃO SÓ

O embaixador Fernando Ramos Machado acabou de publicar Textos sobre a Ordem de Malta e Outros Temas, em que reúne textos que, na sua maioria, serviram de base a conferências apresentadas na Sociedade de Geografia de Lisboa, agora corrigidos, reformulados ou aumentados, e a que, oportunamente, fiz referência neste blogue.

Divide-se o livro em duas partes: 

A I Parte (Três Damas Ilustres), aborda os 200 anos da composição de Dona Branca, de Almeida Garrett, a conversão da rainha Cristina da Suécia e o estatuto de Macau, reformulado no tempo de D. Maria II. 

A II Parte (Trilogia Maltesa), trata do crepúsculo da Ordem de Malta, no tempo de D. João VI, de três  (+ 1) Grão-Mestres portugueses e de uma "Ordem Ecuménica de Malta" em São Tomé e Príncipe.

No Capítulo I, o texto sobre o poema de Garrett (1826) começa por nos informar acerca da infanta D. Branca, filha primogénita de D. Afonso III de Portugal e de D. Beatriz de Castela, que chegou a ser encarregada de missões diplomáticas no tempo de seu irmão D. Dinis. Não foi monja cisterecience no Mosteiro de Lorvão mas sua Senhora e Protectora. Viria, contudo, a professar no Mosteiro de Holgas (Las Huelgas), em Burgos, em 1295. Teve amores com o cavaleiro Pero Esteves Carpinteiro (ou Pero Nunes Carpinteiro), de que nasceu um filho ilegítimo, Juan Nunes de Prado, que foi Mestre da Ordem de Calatrava. Em consequência do relacionamento com os mouros do Algarve, D. Afonso III foi amante de Madragana ben Aloandro (depois de baptizada, Mór Afonso), que era filha de Aloandro ben Bakr, último alcaide de Faro. O autor refere em Post scriptum que, depois de realizada a conferência sobre este tema, teve conhecimento do "romance histórico" O segredo de Afonso III (2011), de Maria Antonieta Costa, em que esta refere que o "segredo" de Afonso III era a sua ligação homossexual com o seu jovem pajem mouro Abdul-Malik, para a qual Madragana serviria de fachada. [A minha edição de Dona Branca (Obras de Almeida Garrett Volume II, 1963), menciona o prólogo de Garrett à 2ª edição, em que o poema passa de 7 para 10 cantos, escrito na Cruz Quebrada em Agosto de 1848]. A figura de D. Branca serviu de tema à peça de teatro O Almançor Ben-Afan, último rei do Algarve (1840), de José Freire de Serpa Pimentel e à ópera Donna Bianca (1888), de Alfredo Keil.

O Capítulo II é dedicado à conversão da rainha Cristina da Suécia (1626-1689) ao catolicismo, atitude que assombrou o mundo da época. Filha de Gustavo II Adolfo, subiu ao trono com apenas seis anos, tendo ficado como regente o conde Axel Oxenstierna. Em 1647, o embaixador sueco em Lisboa, Lars Skytte, converteu-se ao catolicismo, e a rainha seguiria os seus passos em 1654, depois de ter abdicado em seu primo, que se tornou Carlos X Gustavo. Na decisão de Cristina pesou a influência do padre jesuíta António de Macedo, que fazia parte da missão de João Pinto Pereira, embaixador de Portugal em Estocolmo. Muito curioso o percurso de Cristina, que abandonando a Suécia, se estabeleceu em Antuérpia, depois Bruxelas e finalmente Roma, onde morreu. Nunca casou, mas teve várias amizades femininas, e até masculinas. Em Post scriptum, o autor formula a hipótese de que a figura representada no célebre quadro "Palas Atena", de Rembrandt (e de um seu discípulo?), e que se encontra no Museu Gulbenkian, em Lisboa, seja a rainha Cristina. Admite-se que a rainha tenha tido contactos com o famoso pintor, concorrendo para a suposição o facto de o quadro ser também designado por vezes como "Retrato de Alexandre" e Cristina professar uma ilimitada admiração por Alexandre Magno.

No Capítulo III o autor trata da clara afirmação da plena soberania portuguesa sobre Macau em 1849, no reinado de D. Maria II. É historiado o passado desse território, desde que os portugueses se estabeleceram contínua e pacificamente em Macau em 1557 até à transferência de Macau para a China em 1999. O estatuto da região como "província ultramarina", tal como estudámos, não era de facto transparente antes de 1849, quando foi assassinado o governador Ferreira do Amaral. Nessa data, o governo português reivindicou a integridade dos Direitos de Soberania da Coroa sobre aquele estabelecimento, cujo reconhecimento foi efectuado pelo Tratado de Comércio e Navegação Luso-Chinês de 1887. As relações diplomáticas de Portugal com a China foram rompidas em 1949 (com o advento de Mao Tsé -Tung) e restabelecidas em 1979. Em Post scriptum é mencionado o artigo 5º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau  (RAEM) estipulando que «Na RAEM não se aplicam o sistema e as políticas socialistas, mantendo-se inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes».

Os três Capítulos da II Parte (IV a VI), a Trilogia Maltesa, serão comentados em conjunto.

O embaixador Ramos Machado fornece-nos uma panorâmica da Ordem de Malta, especialmente depois de Bonaparte se ter apossado da ilha, e destaca a presença dos portugueses que exerceram o cargo de Grão-Mestre. 

A Ordem Hospitalária de São João (Baptista) de Jerusalém, depois chamada Ordem Soberana Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta, foi criada em Jerusalém no princípio do século XII por Frei Gerardo Tum, com a missão de assistir e proteger os peregrinos na Terra Santa, no tempo das Cruzadas. Devido às conquistas muçulmanas, a Ordem mudou-se depois para São João de Acre e mais tarde, sucessivamente, para Chipre, para Rodes e finalmente para Malta, por cedência do imperador Carlos Quinto. Após Bonaparte ter tomado a ilha de Malta, em 1798, praticamente sem resistência, o Grão Mestre Ferdinand von Hompesch partiu para Trieste com alguns cavaleiros, enquanto outros se acolheram à protecção do czar Paulo I da Rússia. A Ordem de Malta não foi, todavia, abolida.

«Quando chegou a São Petersburgo a notícia da queda de Malta, os membros do Grão-Priorado Russo exprimiram a sua indignação, decretando, a 26 de Agosto de 1798, a destituição de Hompesch, e convidando os outros Priorados a aderir a essa decisão. Finalmente, a 7 de Novembro do mesmo ano, o Czar viu satisfeito o sonho que há muito acalentava: todos os Cavaleiros presentes em são Petersburgo elegeram-no Grão-Mestre da Ordem de São João de Jerusalém. Pela primeira e única vez na História, um soberano tornava-se também Grão-Mestre da Ordem de Malta. Um mês depois, criou, ao lado do já existente Grão-Priorado Russo, católico, um novo, ortodoxo ou, mais propriamente, não católico. A eleição de Paulo I foi, manifestamente, ilegal, já que o Czar era leigo, casado e ortodoxo. Além disso, o Papa não fora consultado e Hompesch, em Trieste, não se demitira; acabou por fazê-lo só a 6 de Julho de 1799, forçado pelo Imperador Germânico, Francisco II, de quem, em última análise, era súbdito e para quem as relações com Paulo I se revestiam da maior importância.» (p. 55)

«Um acontecimento imprevisto veio alterar substancialmente a situação na Europa - a 23 de Março de 1801, Paulo I era assassinado. Alexandre I retomou o título de Protector da Ordem de São João de Jersalém, mas procurou pôr termo à situação irregular em que seu pai a colocara. Desistiu de pretensões sobre a ilha e, não podendo ser Grão-Mestre, devolveu a escolha do seguinte. Na impossibilidade, dadas as circunstâncias, de reunir um Capitulo Geral, foi decidido um procedimento excepcional, submetendo-se ao Papa uma lista de nomes apresentados pelos Priorados dela constando os portugueses Rodrigo Manuel Gorjão e Francisco Carvalho Pinto, já aqui mencionados). Pio VII acabou por escolher, em Fevereiro de 1803, Giovanni Battista Tommasi. (p. 60)

Pelo Tratado de Amiens de 1802, entre a França e a Inglaterra foi reconhecido o direito da Ordem à ilha de Malta mas os ingleses nunca cumpriram, como é hábito, essa disposição e assim o Grão-Mestre Tommasi não foi autorizado a entrar na ilha, ficando na Sicília. Quando morreu, em 1805, Pio VII considerou não estarem reunidas as condições para a eleição de um Grão-Mestre, pelo que, até 1879,  a Ordem foi dirigida por Lugar-Tenentes.

Em 1806, Gustavo VI da Suécia pôs à disposição da Ordem a ilha de Gotland, que fora ocupada na Idade Média pela Ordem Teutónica, mas os Cavaleiros não aceitaram na esperança de recuperar Malta. No Congresso de Viena (1814-1815), Metternich e Talleyrand tiveram projectos para a instalação da Ordem, sugerindo o primeiro a ilha de Elba e o segundo a ilha de Corfu, mas não foram concretizados, nem mesmo no posterior Congresso de Verona, em 1822. Em 1823, aquando da luta dos gregos pela independência, houve também a ideia de restabelecer a Ordem na sua antiga sede na ilha de Rodes, o que igualmente não aconteceu. Depois das tentativas fracassadas, e da sua peregrinação por Trieste, São Petersburgo, Catânia, Messina e Ferrara, a Ordem de Malta estabeleceu-se por fim em Roma, em 1834, onde ainda hoje se encontra, gozando de extraterritorialidade. 

Em 1879, a Ordem teve novamente um Grão-Mestre, Giovanni Battista Ceschi a Santa Croce. Um dos sucessores, Matthew Festing (2008-2017), tendo entrado em conflito com o Papa Francisco, foi obrigado por este a demitir-se, sucedendo-lhe Giacomo Dalla Torre del Tempio di Sanguinetto (2018-2020). Em 2023, foi eleito 81º Grão-Mestre John Timothy Dunlap, o primeiro não aristocrata e não europeu (é canadiano) a ocupar o cargo, em consequência das revisões da Constituição da Ordem ordenadas em 2022 pelo Papa Francisco, que dispensaram a prova de ascendência nobre.

O autor acrescenta um Post scriptum ao Capítulo IV: «A Ordem de Malta dedica-se, actualmente, à sua vocação inicial, a Hospitalária, e deixou, há muito, de ter carácter militar. Mantém-se Soberana? Inclino-me a pensar que, perdida Malta, em 1798, ultrapassado o bizarro Episódio Russo, desvanecida a esperança de recuperar ou de obter um território e acolhida a Ordem em Roma, em 1834, a sua Soberania é, simplesmente, uma ficção diplomática. A questão é complexa e bem merece ser analisada com alguma profundidade, sobretudo tendo em conta os abalos sofridos pela Ordem de Malta, sob o Pontificado do Papa Francisco.» (p. 64)

Houve quatro Grão-Mestres portugueses da Ordem de Malta:  D. Afonso de Portugal (1202-1206), filho natural de D. Afonso Henriques, Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623), António Manoel de Vilhena (1722-1736) e Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773). Os últimos três foram figuras distintíssimas da Ordem de Malta. Não cabe aqui traçar a sua biografia, que é apresentada nesta obra com o devido pormenor. Importa notar que este livro do embaixador Ramos Machado contém informações preciosas para o estudo da Ordem de Malta em Portugal, sendo certamente pioneiro na investigação das relações entre a Ordem e Portugal nos séculos XVII e XVIII.

Relembro que os textos originais que integram o livro (textos agora reformulados) foram por mim publicados integralmente neste blogue, com a permissão do autor, em 2014, 2017, 2018 e 2023. Podem pesquisar-se no índice do blogue.

São salientadas no livro duas curiosidades. 

A primeira é a existência de um Luís Mendes de Vasconcelos homónimo daquele que foi o 55º Grão-Mestre da Ordem de Malta, e a que se referem o padre José da Felicidade Alves e o prof. Moses Amzalak. Viveu na mesma época de que o Grão-Mestre, serviu nas tropas espanholas, foi governador de Angola, escritor e historiador. É possível que fossem parentes.

A segunda é mais complicada. Eleito em 1623, o francês Antoine de Paule foi o 56º Grão-Mestre da Orem de Malta até 1636, tendo sucedido a Luís Mendes de Vasconcelos. Teve uma juventude agitada, acabando por ingressar na Ordem em 1590. Quando morreu o Grão-Mestre Alof de Wignacourt (1622), candidataram-se à sucessão Luís Mendes de Vasconcelos e Antoine de Paule, tendo o primeiro sido preferido, ainda que não tenha ocupado o cargo por mais de seis meses. Por sua morte, em 1623, Antoine de Paule foi finalmente eleito. Mas logo surgiu um memorial de vários Cavaleiros dirigido ao Papa, em que se afirmava que era um "homem dissoluto nos seus costumes, grande simoníaco e que comprara a sua Dignidade com dinheiro".

«Acusação particularmente grave dizia respeito aos seus "costumes dissolutos". Que se quereria dizer com esta expressão? Não é claro, mas parece-me depreender se pretendia aludir a práticas homossexuais. E teriam algum fundamento? Numa publicação relativamente recente na Internet, destinada a visitantes franceses a Malta, lê-se: "Eis aquele a quem os malteses trocistas chamavam Paola". Talvez o Grão-Mestre tivesse um estilo de vida de um refinamento julgado impróprio de uma Ordem Religiosa e Militar. Quarenta anos antes, o comportamento requintado e extravagante dos "mignons" de Henrique III, incluindo o "archimignon" Anne, primeiro Duque de Joyeuse e parente chegado de Antoine de Paule, tinham estado na base de idênticas acusações.» (p. 108)

Mas o Papa Urbano VIII não aceitou s reclamações dos Cavaleiros.

Luís Mendes de Vascomcelos «foi o segundo Grão-Mestre a ser tratado por Alteza Sereníssima. O seu predecessor [Alof de Wignacourt] fora feito Príncipe do Império, em 1607, por Rodolfo II e, em 1620, Fernando II tornara esse estatuto permanente para os Grão-Mestres; mas, após os "primeiros anos de seu Sucessor Fr. António de Paula (...) resolveu a Santidade do Papa Urbano VIII, que aos Grão-Mestres de S. João se lhes falasse por Eminência, e aos Cardeais do Sacro Colégio de Roma, e aos Arcebispos Eleitores do Império, Mogúncia, Colónia e Tréveres, com que se acomodaram os Grão-Mestres, por serem pessoas Eclesiásticas, e filhos muito obedientes à Igreja Romana".» (p. 81)

Antoine de Paule foi o terceiro Grão-Mestre a receber o tratamento de Alteza Sereníssima. Em meados do século XVIII, com Pinto da Fonseca, o tratamento atribuído aos Grão-Mestres foi elevado a Alteza Eminentíssima, assim se mantendo até hoje. 

[A propósito das acusações de vida dissoluta formuladas contra Antoine de Paule, recordo que este tinha sido quase um braço direito de Alof de Wignacourt antes de lhe vir a suceder no Grão-Mestrado. E quanto a Alof de Wignacourt subsistem as suspeitas de que se entregava à pederastia. Quando o célebre pintor Caravaggio se refugiu em Malta, fugindo à justiça papal por ter cometido um homicídio, Wignacourt encomendou-lhe um retrato em que ele aparece na companhia de um jovem pajem, supostamente seu amante. Parece que Caravaggio também se terá interessado pelo rapaz, o que levou a que fosse preso, embora conseguisse posteriormente fugir da ilha. A história é relatada em duas biografias do pintor, La course à l'abîme, de Dominique Fernandez e M - The Man Who Became Caravaggio, de Peter Robb, que comentei aqui. O quadro encontra-se hoje em Paris, no Museu do Louvre. Haveria, pois, uma conjunção de sensibilidades entre Alof de Wignacourt e Antoine de Paule.]

«Com o nome de Luís Mendes de Vasconcelos, houve duas personagens históricas, contemporâneas, uma das quais 55º Grão-Mestre da Ordem de Malta, cujas biografias aparecem, com frequência, fundidas, como se se tratasse de uma só; já no que toca a Antoine de Paule/António de Paula, 56º Grão Mestre, houve uma só personagem mas, ao lado da versão propriamente histórica, a fantasia de Ferreira de Castro criou uma figura diferente; duma parte, temos a História, da outra, a Literatura.» (p. 92)

Na sua obra Pequenos Mundos, Ferreira de Castro apresenta um António de Paula sendo Grão-Mestre português como pessoa de costumes dissolutos. Mas porque razão se teria empenhado Ferreira de Castro em transformar em português um Grão-Mestre francês com uma imagem tão negativa, como que movido por uma antipatia pessoal. O embaixador Ramos Machado presume que ele pretendeu retratar alguma personalidade nacional e aventa algumas hipóteses: em primeiro lugar Manuel Teixeira Gomes, escritor, diplomata, presidente da Republica, figura brilhante, geralmente conotado com inclinações homossexuais ou, pelo menos, bissexuais. Mas esta ideia é rapidamente arredada pelo autor, não só pelo respeito que Ferreira de Castro nutria por Teixeira Gomes mas também porque não eram adversários no campo político no qual estavam irmanados. Outra hipótese é sugerida através de uma obra de Paul Morand, pelo que passo a transcrever o texto: «Em Maio de 1924, Paul Morand, diplomata e escritor francês, que alcançou grande sucesso, sobretudo no período de entre as Duas Guerras, esteve, pela primeira vez, em Lisboa. Dessa visita, resultou a curta novela "Lorenzaccio ou o Regresso do Proscrito", incluída na colectânea "Europa Galante", publicada no ano seguinte. É a estória de um ex-ditador português, Tarquínio Gonçalves, derrubado em tempos, preso em S. Tomé, exilado em Londres e que, graças a uma reviravolta política, retornou a Lisboa, após uma longuíssima ausência. Termina com uma cena de cariz sexual, em Sintra, entre Tarquínio e um jovem marinheiro, enviado pelos seus inimigos para o assassinar. Por curiosa coincidência, quando Morand visitou Lisboa, o Presidente era Teixeira Gomes, homem de hábitos e requintes mundanos, tal como Tarquínio Gonçalves, e regressado, há pouco, como ele, de uma longa ausência em Londres; as iniciais de ambos - T.G. - eram as mesmas. Mas não foi Teixeira Gomes que, numa entrevista concedida em 1956, Paul Morand referiu, ao revelar: "Construí a personagem de "Lorenzaccio" inspirando-me num amigo meu, um jovem português que era o chefe dos pederastas de Lisboa. Divertiu-me transformá-lo num ditador, isto dois anos antes de Salazar ter aparecido e quando Portugal estava muito longe da ditadura! Mas os portugueses julgaram que eu tinha feito um retrato de Salazar, e andámos de candeias às avessas durante vinte anos". É muito duvidoso que "os portugueses" tivessem visto em Tarquínio Gonçalves um retrato de Salazar; poucos, aliás, teriam lido a novela. Ferreira de Castro talvez tenha sido um deles, mas o próprio Salazar foi-o certamente, quando lha mostraram, em 1943, quase vinte anos depois de ter sido escrita. O texto irritou profundamente Salazar, a ponto de ter recusado o "agrément" à nomeação de Morand como Encarregado de Negócios do Regime de Vichy, em Lisboa. Assim, "António de Paula" não era Teixeira Gomes que, tão pouco, teria inspirado o retrato de Tarquínio Gonçalves. Este último, por seu lado, não era uma representação de Salazar. E Salazar, homem de costumes austeros, certamente não era "António de Paula".» (p. 99)

A terceira hipótese suscitada pelo autor é a de que a inspiração de Ferreira de Castro tenha sido o prof. doutor Gustavo Cordeiro Ramos, que foi ministro da Instrução Pública em governos da Ditadura Militar e do Estado Novo, procurador à Câmara Corporativa e presidente do Instituto de Alta Cultura e que era conhecido por ser um homossexual militante. Morreu em 1974, com 86 anos [Ainda me lembro de vê-lo, já velho, a procurar um marinheiro numa cervejaria da Rua das Portas de Santo Antão e a ser empurrado para a rua por um empregado]. Sendo um germanófilo convicto, e um apoiante de Hitler, compreende-se que possa ter sido uma pequena "vingança" de Ferreira de Castro.

No Capítulo V, o autor faz ainda referência a uma Ordem Ecuménica de Malta, uma criação recente que pretende ser a legítima herdeira da Ordem Hospitalária de São João de Jerusalém, a partir do Grão-Mestrado do Czar Paulo I e do Grão-Priorado Russo. Uma genealogia demasiado complicada para explicitar neste texto. Contudo, reclama-se de soberana e até tem uma representação diplomática em S. Tomé e Príncipe, que parece cessou agora as suas actividades.

Porque este post já vai longo, importa terminar. Leia-se, pois, o livro, para a conveniente compreensão de todas estas fascinantes matérias.

Acrescento apenas uma última nota:

«De natureza supranacional e multinacional, a ordem estruturava-se nas chamadas Nações ou Línguas:  França, Provença, Auvergne, Itália, Alemanha, Inglaterra e Aragão. Desta última separou-se, no Séc. XV, a de Castela (com Leão e Portugal); a de Inglaterra foi suprimida no Séc. XVI, sendo, já no final do século XVIII, criada a Anglo-Bávara. A cada Língua pertencia, de Direito, um cargo na estrutura governativa da Ordem, sendo que, à de Castela, cabia o de Grão-Chanceler, alternadamente exercido por um castelhano e por um português. Outros cargos eram os de Grão-Preceptor (Provença), Grão-Marechal (Auvergne), Grande Hospitalário (França), "Drapier" (Aragão), Almirante (Itália), "Turcopilier" (Inglaterra), Grão-Balio (Alemanha).» (p. 49)

 E DISSE.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

EÇA DE QUEIROZ "ÍNTIMO»

Só agora tive oportunidade de ler José Maria, A Vida Privada de um Grande Escritor, de José Calvet de Magalhães, que comprei em 1994, data em que foi publicado. Após este livro sobre Eça de Queiroz, Calvet de Magalhães escreveria também um livro sobre Almeida Garrett, em 1996, e outro sobre Antero de Quental, em 1998.

Pelo título, pode pressupor-se que se trata de um livro relatando os aspectos mais íntimos da vida do grande romancista, mas não é o caso. Esta obra é na verdade uma biografia do escritor, embora em moldes diferentes das anteriormente, ou posteriormente, publicadas. O embaixador Calvet de Magalhães não segue os critérios usuais no estabelecimento de uma biografia, antes procede à descrição dos factos que se lhe afiguraram de maior importância na vida de Eça de Queiroz, quer no plano pessoal, quer no diplomático, quer como romancista.

Para minha admiração, e considerando que o embaixador Calvet de Magalhães foi um distinto diplomata, com vasto curriculum e autor de numerosas obras, este livro não se encontra particularmente bem escrito. É por vezes complexo na ordenação dos assuntos, confuso na designação das personagens, e servido por uma prosa banal a que não faltam erros de ortografia como, por exemplo, a utilização repetida de "dignatários" em vez de "dignitários".

Também a versão dos acontecimentos é sujeita a uma interpretação pouco coincidente com a consagrada nas biografias "oficiais", como as de João Gaspar Simões ou de Maria Filomena Mónica. Segundo o autor, as circunstâncias do nascimento de Eça são consideradas de forma muito "positiva", não tendo a "ilegitimidade" tido quaisquer consequências na sua vida e salientando mesmo uma profunda ligação à Mãe, com quem conviveria muito frequentemente na infância. Ora esta proximidade à família enquanto jovem não é atestada pelos demais biógrafos. Ao contrário do que escreve Calvet, Eça também não terá sido acompanhado de um profundo sentimento religioso ao longo da vida; os seus biógrafos tendem em concordar que Eça era realmente ateu, ainda que não dispensasse certos formalismos, como o facto de trazer algumas medalhas consigo. No que respeita aos amigos, as opiniões não são igualmente coincidentes: Eça era amigo de Ramalho, com certeza, mas este servia-lhe principalmente para se ocupar dos seus assuntos em Lisboa quando ele se encontrava no estrangeiro; quanto a Antero, as suas relações foram pautadas por alguma distância. 

Numa coisa Calvet de Magalhães corrige os biógrafos anteriores e vindouros: na sua viagem ao Egipto, na companhia de Luís Resende, Eça de Queiroz utilizou um passaporte diplomático com a indicação de "encarregado de despachos", o que é totalmente diferente de "encarregado de negócios", designação utilizada por Maria Filomena Mónica e outros biógrafos. Relativamente às terras do Egipto, Calvet não escreve os nomes faraónicos e árabes correctamente, escreve mesmo pior do que o próprio Eça de Queiroz. Mas onde os nomes se transformam numa imensa confusão, devido a uma transliteração arbitrária, é no livro de ensaios de Maria Filomena Mónica sobre Eça de Queiroz, em que no capítulo I descreve a viagem que fez ao Egipto, "na peugada de Eça", em 2006. Não custa nada aprender as regras oficiais de transliteração, que os ingleses usam correctamente, os franceses nem tanto.

Não vamos descrever aqui o percurso de Eça, descrito nas várias biografias, mas importa salientar a ênfase prestada por Calvet às numerosas viagens do escritor, quer em Portugal, quer de Havana para os Estados Unidos, quer em Inglaterra (a partir de Newcastle e de Bristol, internamente, e para França), quer no interior de França (aquando de férias), quer de Inglaterra e de França para Portugal. Eça de Queiroz vivia confortavelmente mas não era rico. Todas estas viagens, só ou com a mulher e os filhos, seriam certamente dispendiosas. Talvez por isso Eça se queixasse constantemente de falta de dinheiro e por vezes o pedisse emprestado aos amigos ou adiantado aos editores.

Também é conferida particular importância aos problemas de saúde. Desde os seus 20 anos que Eça se queixava de problemas intestinais, a que raramente chamava pelo nome, e que amiúde o retinham em casa. O escritor possuía uma constituição frágil, e na juventude cometera alguns exageros de alimentação. E teria, desde a infância, alguns resquícios de tuberculose pulmonar, circunstâncias a que nunca aludia. A conjunção destas situações terá ditado a sua partida prematura aos 54 anos.

Ao longo do livro são mencionadas algumas das contradições que acompanharam Eça de Queiroz ao longo da vida, como a sua atracção pela família real (todavia, nunca quis parecer um áulico) e pela nobreza (tornara-se amigo de alguns dos fidalgos mais importantes do Reino, como a Duquesa de Palmela, Ficalho, Sabugosa, Arnoso, Soveral, Valbom, para não falar na família da mulher, os Condes de Resende), embora descartasse quaisquer pretensões nobiliárquicas. Disse mal dos portugueses, a quem (com D. Carlos) chamava a choldra. Mas também dos franceses, a partir de certa altura da vida. Note-se que durante a sua permanência em Neuilly nunca conviveu com franceses, nem mesmo com escritores, e só uma vez falou com Zola. E sobretudo disse mal dos ingleses, com algumas excepções. O infame ataque da esquadra britânica a Alexandria em 1882 é soberbamente retratado nas Cartas de Inglaterra.

Autor de vasta obra, Os Maias são o seu principal romance, embora o maior êxito, aquando da publicação, tenha sido O Primo Basílio. O primeiro romance, O Crime do Padre Amaro, pela delicadeza do tema para a época, foi recebido com reservas. A Cidade e as Serras foi já publicado postumamente.

Os seus papéis particulares e a biblioteca perderam-se quando naufragou o navio que transportava o seu espólio de França para Portugal. Felizmente que alguns dos textos não publicados se encontravam em posse de amigos.

Foi de certa maneira um pessimista, como o seu amigo Oliveira Martins, ainda que pretendesse resgatar o país da sua menoridade intelectual.

E não esteve isento de defeitos, mesmo de manias. Todavia, foi um grande cultor das letras pátrias.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

AFINAL, D. SEBASTIÃO NÃO MORREU EM ALCÁCER-QUIBIR ?

Imagem do editor: D. Sebastião adolescente, foto recriada em IA, a partir do retrato do Museu Nacional de Arte Antiga

Leio agora D. Sebastião, O Regresso do Enigma, de Gisela Ildefonso, livro publicado em Dezembro de 2023 e reeditado o ano passado. 

É crença pacificamente aceite que D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir. Todavia, não existe unanimidade, como o mito do Sebastianismo comprova. As obras históricas sobre o destino fatal do rei convergem naquele sentido, embora as obras literárias sejam menos assertivas. Dos livros que já comentámos, subsiste a dúvida no ensaio de António Belard da Fonseca e no romance de Aquilino Ribeiro.

O recente livro de Gisela Ildefonso, que passou praticamente despercebido, sustenta a tese de que D. Sebastião não morreu na batalha. Apresenta mais de cem documentos (especialmente cartas), encontrados no Arquivo da Casa dos Duques de Medina Sidónia, no Arquivo Geral de Simancas, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional de Portugal e em outros arquivos, relativos ao período de 1563 a 1603, abordando eventos desse tempo referentes a Portugal e a Espanha. A correspondência que especialmente nos interessa para o caso é a seguinte:

- A primeira carta (no Arquivo Ducal de Medina Sidónia) que dá conta da prisão de D. Sebastião é enviada em 8 de Agosto de 1578, de Sanlúcar de Barrameda, pelo feitor António Manso para Mateo Vasquez, secretário de Filipe II, dando conta que D. Sebastião se encontra cativo, segundo informação do alcaide de Tetuão. (p. 151)

-  A carta de 9 de Agosto de 1578, enviada de Cádiz, por Pedro Salinas, tesoureiro do duque de Medina Sidónia para o licenciado Tebar, de Madrid, confirma que António Manso lhe disse que o alcaide de Tetuão escrevera ao alcaide de Arzila, referindo que tinha D. Sebastião cativo. (p. 153)

Segundo D. Luisa Isabel Álvarez de Toledo, 21ª duquesa de Medina Sidónia (1936-2008), no seu livro Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible -Tomo I, e baseada no biógrafo de Filipe II, Cabrera de Córdoba, o monarca espanhol recebeu em Madrid duas cartas enviadas pelo duque de Medina Sidónia: o pedido de resgate de D. Sebastião, escrito pelo alcaide de Tetuão e enviado por António Manso (que Filipe guardou consigo) e um pedido de ajuda escrito por D. Sebastião. (p. 157)

Esta obra, editada pela Universidade de Cádiz em 1994, encontra-se hoje absolutamente esgotada

A seguir, a autora menciona cartas sem respeitar a ordem cronológica, que aqui vamos restabelecer.

- Em 12 de Agosto, Filipe II, a partir do Escorial, comunica ao seu secretário António Pérez que recebeu um aviso secreto sobre o que aconteceu ao rei de Portugal e do qual o informará mais tarde. [Nesta carta, a autora faz uma chamada, em nota de rodapé, ao Marquês de Santa Cruz, D. Álvaro de Bazán, grande almirante de Espanha, sem que se perceba porquê].

- Ainda em 12 de Agosto, António Pérez responde a Filipe II, acusando o despacho acima e informando que falou com D. Cristóvão de Moura, o qual, em sua opinião, deveria ser enviado a Portugal, para demonstrar os sentimentos sobre o funesto acontecimento.

- Também em 12 de Agosto, o licenciado Ochoa de Villanueva, a partir de Sanlúcar de Barrameda, escreve a Filipe II, aludindo a que este já saberá da derrota do exército português que lhe terá sido transmitida pelo duque de Medina Sidónia, e pedindo instruções sobre os homens que se encontravam no porto a aguardar passagem para servir o rei de Portugal. (p. 159)

 - Em 13 de Agosto, Filipe II escreve ao Duque de Medina Sidónia, agradecendo as informações já prestadas e pedindo-lhe que o avise se algo mais se passar. (p. 160)

- Em 13 de Agosto, Filipe II envia, do Escorial, uma carta ao seu secretário António Pérez, informando da carta do feitor sobre a prisão de D. Sebastião e dando instruções para que se adie a partida para Marrocos de D. Cristóvão de Moura. (p. 162)

- Em 14 de Agosto, Filipe II envia, de Madrid, uma carta ao Duque de Medina Sidónia, referindo que ordenou ao Marquês de Santa Cruz que fornecesse as praças do rei em Marrocos, para socorro e segurança delas. (p. 162)

«A 16 de Agosto Filipe encarrega o seus emissários de fazer chegar o pedido de ajuda ao Cardeal em Lisboa, estimando-se que tenha alcançado o seu destino quase ao mesmo tempo da armada que regressa de Alcácer-Quibir a 24 de Agosto, trazendo a correspondência de Belchior do Amaral. Neste interim, o número de pessoas a par da prisão de D. Sebastião continua a crescer, algo que escapa ao conhecimento de Filipe, aumentando o número a cada dia: 1) O mouro enviado pelo alcaide de Tetuão que transportava o bilhete de resgate e a nota de D. Sebastião; 2) O duque de Medina Sidónia, que manda prender este mouro para evitar a disseminação da notícia, enviando depois a carta através do mensageiro Ângelo Ruis. Este documento conserva-se nas contas da Tesouraria do Duque; 3) O feitor António Manso, que recebe a notícia do resgate; 4) O tesoureiro Pedro de Salinas em Cádiz, por onde passam os cavaleiros vindos da batalha; 5) O Licenciado Tebar, a quem Pedro de Salinas relata o sucedido; 6) O Cardeal, que recebe em Lisboa a carta de D. Sebastião a pedir ajuda; 7) Frei Roque do Espírito Santo, que se encontrava em Puerto de Santa Maria quando foi recebida a notícia.» (p. 157)

- Em 16 de Agosto, Filipe II escreve de Torrelodones (por mão de Mateo Vazquez) ao Duque de Medina Sidónia e informa que mandou se levasse a Portugal o mouro detido em Puerta de Santa Maria. (p. 163)

- Em 19 de Agosto, o Capitão Bastiano escreve, de Madrid, a Ptolomeu Galli [aliás Tolomeu Gallio, decano do Sacro Colégio, conhecido como Cardeal de Como] dizendo que D. Sebastião e o seu exército se perderam em África. (p. 164)

- Em 19 de Agosto, Filipe II envia de Madrid uma carta a seu meio-irmão D. João de Áustria, contando que o rei de Portugal está vivo e ferido, mas sem mais detalhes. (p. 166)

 - Em 22 de Agosto, Filipe II, através do secretário Mateo Vazquez, escreve ao embaixador Francisco de Zúñiga, dando indicações para este se encontrar em Fez ou Marraquexe com o novo rei (o sultão Al-Mansur) a fim de saber quem morreu e quem está cativo. (p. 166)

Em 26 de Agosto, Cristóvão de Moura escreve de Lisboa a Filipe II dizendo, entre outras coisas, que falou com o  Cardeal [D. Henrique] e também que "Um corregedor de Lisboa disse-lhe [ao Cardeal] que era melhor jurar-se por rei destes reinos, pois que assim lhe era de direito, e mostrando-se o Cardeal desapontado, lhe respondeu que a seu tempo trataria disso, se bem que todos concordam que não desgosta de tratar destas coisas, pela larga experiência que tem de governar. E a partir daqui começou a exercer o governo, dando sempre mostras que não tinha por certa a morte do rei. Sobre isto há opiniões tão diferentes que homens muito honrados afirmavam estar o rei vivo e neste reino, dado testemunho de quando o tinham visto. E por quanto é normal dar crédito a coisas semelhantes, nesta província predomina mais isto, que em todas no mundo. E neste encantamento se passaram alguns dias, até que ao amanhecer, que foi quando aqui entrei, se ouviu ter morrido o rei e se publicou em todo o reino. Antes disto, o Cardeal trazia luto e estava retirado, mas não deixava de negociar com todos, como faz agora." (p. 168)

Escreve a autora: «Neste ponto, citamos Álvaro Lobo, o cronista do Cardeal em Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e Vida de Miguel de Moura (1840):

O Cardeal, enquanto não tinha certeza da morte d'el-rei D. Sebastião, não tratou de fazer mudança alguma no Reino, até que veio D. Francisco de Souza, que trouxe a carta de Belchior do Amaral com a certeza da morte d'el-rei D. Sebastião, que afirmava, como testemunha de vista, que o sepultara.» (p. 170)

«Não obstante encontrar-se na posse do bilhete enviado por Filipe com o pedido de ajuda de D. Sebastião, o Cardeal é obrigado, face à carta de Belchior do Amaral, a assumir oficialmente a morte de D. Sebastião. É levantado rei a 28 de Agosto de 1578, não lhe restando por hora alternativa a não ser negociar o corpo, para legitimar a sua ascensão ao trono, evitando uma trama por parte de Filipe.» (p. 170)

«Em contraste com a versão oficial da morte que até hoje temos como a versão oficial dos eventos, deparamo-nos com os documentos anteriormente citados, descritos no livro publicado em 1992 por D. Isabel Álvarez de Toledo. Nascida em Portugal e descendente de D. Alonso de Guzmán, cujo casamento da filha Luísa de Gusmão com D. João IV possibilitou a Restauração de 1640, a sua contribuição foi recebida com indiferença. Não obstante ser proprietária do maior arquivo privado documental da Europa e descendente dos Medina Sidónia - além de possuir o título nobiliário hereditário mais antigo de Espanha -, a ausência de transcrição e tradução levou a que os documentos descobertos em 1955 passassem despercebidos.» (pp. 170-1)

 «O Estado teve até agora a última palavra no que concerne ao domínio da História, como bastião defensivo para evitar a queda da versão burguesa. Contudo, será difícil negar a veracidade destes documentos, acessíveis a qualquer cidadão, por se articularem rigorosamente com a documentação privada de Filipe detida pelo governo espanhol no Arquivo de Simancas. Neste, guardam-se, até hoje, as cartas que Filipe recebia do Duque, do mesmo modo que o arquivo privado de Medina Sidónia guarda as cartas que o Duque recebia de Filipe, completando-se mutuamente.» (p. 171)

Menciona a seguir, e pertinentemente, a autora, a recusa de Filipe II em garantir o adiamento do repatriamento do Duque de Barcelos. Passo a explicar. Aquando da expedição de D. Sebastião a África, o monarca fez-se acompanhar pelos mais altos fidalgos do Reino. Ora a primeira posição era ocupada pelo Duque de Bragança, na ocasião D. João I, que não pôde embarcar por se encontrar doente. Resolveu enviar como representante seu filho D. Teodósio (que viria a ser D. Teodósio II, como Duque de Bragança), então com dez anos, isto contra a vontade da mãe a Duquesa D. Catarina, infanta de Portugal e filha do rei D. Manuel I. O rapazinho fora agraciado com o título de Duque de Barcelos por D. Sebastião, que gostava muito dele e a quem tinha feito seu pajem. Sabendo Filipe II da sobrevivência de D. Sebastião, mas dado que a morte deste tinha sido oficialmente declarada por Belchior do Amaral, não convinha o regresso do jovem a Portugal pois constituiria uma ameaça para as ambições do rei de Espanha. O próprio Duque D. João I, por morte do Cardeal D. Henrique, haveria de diligenciar para que fossem reconhecidos os direitos de sua mulher à Coroa mas acabou por aceitar as mercês de Filipe II que o fez Condestável de Portugal e lhe entregou o colar do Tosão de Ouro. Compreende-se pois a insistência junto de Al-Mansur a fim de que este protelasse a entrega do pequeno Duque de Barcelos.

A autora transcreve uma passagem da página 123 do Tomo I de Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible, obra que citámos acima, donde se conclui que o Cardeal D. Henrique sabia que D. Sebastião estava vivo: «As pretensões de Filipe, favorecidas pela passividade do Cardeal, tinham deixado de ser secretas. Ambicioso e intriguista, o velho Cardeal afeiçoou-se ao trono, e disposto a conservá-lo até ao fim dos seus dias, não moveu um dedo para salvar D. Sebastião.»

Também é referido um salvo-conduto emitido por Filipe II, a pedido do Cardeal D. Henrique, a favor do judeu Abraham Samuel, vivendo em Alcácer, no reino de Fez, e da sua família para se deslocarem a Cádiz. Admite-se que D. Sebastião, incógnito, pudesse figurar entre os retornados de África. (pp. 197-8-9)

É também mencionada (página 246) uma passagem da obra do Padre José Pereira Baião, o livro Portugal Cuidadoso, e Lastimado Com A Vida e Perda do Senhor Rey Dom Sebastião, o Desejado de Saudosa Memoria (1737) em que é referida a passagem de D. Sebastião, incógnito, por um mosteiro do cabo de São Vicente, no seu regresso de África. As alusões do Padre Baião ao segredo de que o rei estava vivo são relatadas em algumas das obras sobre D. Sebastião que comentámos anteriormente neste blogue.

No seu livro, Gisela Afonso reproduz muitos mais documentos, alguns de grande interesse, relativos quer ao período anterior quer ao período posterior à batalha de Alcácer Quibir, mas apenas mencionei os que considerei relevantes para sustentar a tese de que o rei D. Sebastião realmente não morreu naquela trágica batalha.

Mas permanece a interrogação. Qual foi então o destino do rei de Portugal?

 * * * * *

NOTA: Considerando que o livro não apresenta o fac-simile das cartas, nem sequer a grafia original ou a língua original (quando não em português), e que, por vezes, o destinatário ou o remetente são imprecisamente designados e a uniformidade do tipo de letra induz também à confusão entre o que é o texto das cartas e o texto da autora, consultei por escrito o Archivo General Fundación Casa Medina Sidonia, para averiguar da autenticidade das mesmas. Obtive como resposta que os acontecimentos ocorridos em Alcácer Quibir são analisados no Tomo I do livro (esgotado) Alonso Pérez de Guzman, General de la Invencible, de D. Luisa Isabel Álvarez de Toledo, 21ª Duquesa de Medina Sidónia, publicado em 1994 pela Universidade de Cádiz. Quanto à minha questão relativa ao livro Alcazar Quivir, também da Duquesa de Medina Sidónia, publicado em 1992 pela Fundación Universidad Complutense, igualmente esgotado, foi-me respondido que se tratava da transcrição de uma carta de 1578, escrita por Pedro Salinas ao licenciado Tebar, agente da Casa de Medina Sidónia em Madrid, carta que mencionei acima. Desta troca de correspondência com a Casa de Medina Sidónia resulta que, não sendo negada a existência das cartas ou que as mesmas tenham sido forjadas, e encontrando-se as mesmas publicadas, é tacitamente admitido que elas são autênticas. Assim sendo, confirma-se que o rei D. Sebastião não morreu na batalha de Alcácer Quibir e que a História de Portugal persiste há cerca de 500 anos na consagração de uma impostura.                      

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

D. SEBASTIÃO, UMA CRÓNICA ANÓNIMA?

Em 1978, a Imprensa Nacional - Casa da Moeda publicou, com prefácio de Francisco de Sales Mascarenhas Loureiro, Jornada del-rei Dom Sebastião à África e Crónica de Dom Henrique.

O prefaciador descreve D. Sebastião com as características que lhe são habitualmente atribuídas, recorrendo amiúde à obra de referência de Queiroz Veloso. Salienta-se a educação ministrada pelos jesuítas, com um inusitado relevo dado à castidade, a aptidão para aprender, dotes de inteligência e de memória, e desde muito cedo a sua obsessão pela conquista de África. É aludida também a inegável misoginia do rei, que é parcialmente atribuída ao conhecido problema das suas perdas nocturnas.

Cita Loureiro o prof. Manuel Heleno, quando este, fazendo o elogio de Queiroz Veloso na Academia Portuguesa da História, em 28 de Fevereiro de 1958, se refere ao reinado de D. Sebastião: «A Nação concentrava no novo rei todas as suas esperanças e aguardava que ele, restaurando as antigas virtudes e reagindo contra os costumes de que Clenardo nos dá uma imagem, encarnasse os anseios da alma portuguesa e restituísse ao País as suas glórias passadas. Mas o temperamento do monarca, mais religioso que político, mais Quixote do que prático, excitado pelo ambiente e pela lisonja, não permitiu a realização desse ideal, mau grado as suas boas intenções.» (p. XXXI)

Também Joaquim Veríssimo Serrão (in D. Sebastião à Luz dos seus Itinerários) é citado: «Reconheçam-se em D. Sebastião as marcas de uma personalidade não equilibrada - falta de bom senso, tendências impulsivas, fraco poder de reflexão, um caprichoso desejo de se ver obedecido -, se bem que se não possam estranhar essas marcas num homem que se sentia quase divinizado como rei e que viveu numa época em que a máquina do governo se centrava em formas de autoridade.» (p. XXXII)

Escreve o prefaciador que «Em um manuscrito que Rui Barreto de Meneses endereça de Moura, a 12 de Outubro de 1618, ao cronista-mor do Reino, que tudo indica tratar-se de D. Manuel de Meneses, refere o mesmo que da Jornada de África havido três histórias "muy particulares" em mão de Fr. Bernardo de Brito, escritas por pessoas que se acharam presentes não só no Exército, mas igualmente nos conselhos. Acrescentava ainda que uma elas não tinha o nome do seu autor, estando riscada em muitas partes, e que, todavia, lhe parecera boa.» (pp. XXXIII-XXXIV) Mais acrescenta que a edição das crónicas agora publicadas, embora tendo por núcleo original a Jornada de África de autor anónimo, que Fr. Bernardo de Brito possuíra, foi acrescentada com inserções de outras proveniências. O nome completo desta crónica é Iornada de ElRey Dom Sebastião as partes de Africa aonde se perdeo Na Batalha q deu aos Mouros em o anno & Era de 1578, cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Municipal de Viseu.

«A obra, em si, consta de três livros, desdobrados numa série de capítulos, o primeiro abrangendo vinte e oito, o segundo vinte e sete, enquanto o terceiro, dedicado ao governo do cardeal-rei, se desenvolve por dez. Verifica-se, deste modo, que na sua quase totalidade ela é votada ao período sebástico e que neste a jornada de África tem uma relevância muito especial. Não é, pois, por acaso que o historiógrafo designa a sua obra por Jornada Del-Rei D. Sebastião de Portugal às Partes de África. »(p. XXXIX)

«Seja o exemplar da Jornada, que é razão das nossas considerações, apenas uma cópia de um original que se perdeu, o que justifica que o mesmo não venha assinado; seja, todavia, o próprio original que aguardava uma última redacção, que o autor por motivos circunstanciais não teve oportunidade de efectuar; seja ele ainda motivo de um anonimato, para escapar à sanha filipina, pelo seu portuguesismo, como mesmo à da Companhia, que tão copiosamente ataca - o que parece incontroverso é a nossa convicção de tratar-se de um trabalho lúcido, que abre perspectivas sobre um período histórico ainda bastante confuso.» (p. XL)

Entre as múltiplas hipóteses de autoria das crónicas de D. Sebastião e do cardeal D. Henrique há que considerar, devido a várias similitudes, a de Fernando de Góis Loureiro, que foi moço de câmara de D. Sebastião e, enquanto jovem fidalgo, acompanhou o rei na fatal expedição de 1578. De regresso ao país, foi ordenado presbítero e permaneceu depois largos anos em Roma. 

«Segundo o autor da Biblioteca Lusitana, "por ser muito versado na História política e militar deste Reino escreveo e dedicou a D. Vicente Gonzaga de Austria, Duque de Mantua e Monserrato, Breve Summa y Relacion de las vidas, y hechos de los Reys de Portugal y cosas sucedidas en aquel Reyno desde su principio hasta el ano de 1595. Mantua, 1596, e Tratado de la Jornada de Africa. M.S.". Na dedicatória com que abre a Breve Svmma, demonstra Góis Loureiro a sua formação humanística. Cita, entre outros, Plínio, Plutarco, Diodoro.» (p. XLI)

O prefaciador aduz depois vários argumentos tendentes a provar que o autor da Crónica é realmente Góis Loureiro, em especial pelo paralelismo que existe entre esta e a Breve Svmma, cujo capítulo XVII é dedicado a D. Sebastião. 

«O facto de a Jornada Del-Rei D. Sebastião abranger, em vários capítulos, o governo do cardeal-rei nada tem de extraordinário. Significa apenas que o autor o englobou na matéria da Jornada, não só por ele ser o coroamento natural desse episódio infeliz, que foi a expedição a África, como ainda pela necessidade de dar conta aos leitores, e sobretudo aos vindouros, de toda a problemática com que se encerra o percurso histórico da dinastia de Aviz.» (p. XLV)

Analisando o conteúdo da obra, Mascarenhas Loureiro escreve: 

«Traduz ainda manifestações do despotismo de D. Sebastião a asserção do autor, no mesmo capítulo, quando refere "e tudo corria por seu appetite e uontade".

Essa faceta despótica da personalidade do monarca fica expressivamente marcada no capítulo XVIII da Jornada quando el-rei reúne os grandes do Reino, que em Lisboa se encontravam, para lhes comunicar a sua disposição de passar a África, com vista à conquista de Larache, "sem se submeter ao parecer dos que estauam prezentes". E aí o autor mais uma vez se insurge contra a atitude adulatória dos que assistiam a essa reunião, nobres e prelados, que no final se chegaram a D. Sebastião "a lhe beiar a maõ como que recebiam merce de os leuar ao Martirio".» (p. XLIX)

«Toda a obra, que vem servindo de interesse ao nosso estudo, é entretanto dominada, de princípio a fim, pela ideia de que os infortúnios pátrios são a expiação dos erros cometidos. A concepção providencialista, que faz intervir no jogo dos acontecimentos históricos o factor divino, é concepção dominante no tempo, encontrando-se em numerosos cronistas e escritores dos séculos XVI e XVII.» (p. L)

Continuando com a análise da obra, o prefaciador escreve: «Desta forma e, em conclusão, segundo o autor da Jornada, ao rei faltaram-lhe os homens entendidos no sentido preciso do termo, concebidos na sua dimensão própria.» (p. LVIII)

«A Iornada, ou antes a Jornada, como decidimos chamá-la, é um documento da mais alta importância para a análise do período sebástico e pós-sebástico.  E deverá ser-lhe reservado especial lugar na historiografia dos fins do século XVI.» (p. LIX)

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

UMA FALSA CRÓNICA DE D. SEBASTIÃO

Convenhamos que a Crónica não é falsa, o autor sim.

A presente Chronica d'El-Rei D. Sebastião foi atribuída por Alexandre Herculano a Fr. Bernardo da Cruz, sendo muito citada nos livros que tratam da figura do "Desejado". O próprio Herculano, no Prólogo, se refere ao monge como tendo vivido na segunda metade do século dezasseis, acrescentando que «embarcou-se na frota que transportou a África El-Rei D. Sebastião e o seu exército».

Na prossecução do estudo que venho fazendo sobre D. Sebastião, interessou-me saber quem foi Fr. Bernardo da Cruz. E numa primeira pesquisa, com recurso á Wikipédia, constatei que o monge viveu de 1505 a 1565, o que torna impossível que tivesse escrito esta Chronica, que começa com os últimos tempos do reinado de D. João III e se prolonga até à batalha de Alcácer-Quibir e ao reinado do Cardeal D. Henrique. Tendo morrido em 1565, Fr. Bernardo não podia ter sido testemunha desses eventos. 

Tendo à mão a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, por onde todos estudámos, procurei a figura de Fr. Bernardo da Cruz, para saber algo sobre a sua obra. Nenhuma "entrada" particular mas uma nota de rodapé: «Queirós Veloso, em Estudos Históricos do Século XVI, Lisboa, 1950, demonstrou que a crónica atribuída por Alexandre Herculano e A. A. Costa Paiva a Bernardo da Cruz (edição 1837, reeditada em 1903), não pode ser deste autor, e atribui-a a António de Vaena. Francisco Rodrigues, in Brotéria, 1926, vol. III, fasc. IV, págs. 193-195, mostrou a inconsistência da atribuição desta obra a Amador Rebelo, feita por Ferreira Serpa na edição incorrecta de 1925, Porto. Queirós Veloso descobriu capítulos que continuam esta crónica, ficando a saber-se, deste modo, que ela abrangia provavelmente todo o reinado de D. Henrique. A Relação da vida de El-Rei D. Sebastião de Amador Rebelo acha-se inédita na Torre do Tombo, códice 1745 da Livraria» (p. 471)

As grandes figuras da nossa literatura, como Alexandre Herculano, também se enganam.

Mas quem foi António de Vaena? Continuando a minha pesquisa, apurei que Augusto Ferreira do Amaral, que foi presidente da Causa Monárquica, dirigente do Partido Popular Monárquico e ministro do VII Governo Constitucional,  publicou em 1982 um livro intitulado António de Vaena e a Crónica d'El-Rei D. Sebastião. Esta obra não se encontra disponível no mercado e não tive oportunidade de procurá-la na Biblioteca Nacional, onde certamente estará depositado um exemplar.

Curiosamente, no Prólogo o próprio Herculano alude a António de Vaena, mas recusando-lhe a autoria desta Crónica: «Escreveu também António de Vaena uma Chronica de D. Sebastião. Este, pelo tempo e circumstancias em que se achou, poder-se-hia crêr auctor do manuscripto: mas cumpre fazer algumas reflexões sobre o que Barbosa traz acerca d'elle na Bibliotheca Lusitana. Nesta obra affirma que Vaena escrevera uma Chronica de que elle possuia a copia, tirada do original que se conservava na livraria do Conde de Vimieiro: ora o Conde da Ericeira, que, em diversas sessões da Academia de Historia Portugueza, deu conta dos manuscriptos mais importantes d'aquella livraria, falla sómente de uma historia do cerco de Mazagão, a que vinham appensas algumas relações dos acontecimentos do reino por aquelle tempo, a qual obra era escripta por Antonio de Vaena, e nada mais diz d'este auctor: assim podemos ter por averiguado que esta era a obra que possuia o Abbade de Sever. E dado que assim seja, é certo que a obra de Vaena não se contem no manuscripto do Porto; porque n'este não se trata do cerco de Mazagão. 

Da Relação da vida d'El-Rei D. Sebastião pelo P. Amador Rebello vimos nós uma copia, que tambem existe na Bibliotheca do Porto. É obra mui succinta, como diz Barbosa; e por nossos proprios olhos nos certificamos de que nada tinha com o manuscripto de Fr. Bernardo da Cruz.

Fr. Manoel dos Santos cita muitas vezes na Historia Sebastica certa Memoria ou Relação coétanea, de que transcreve pedaços inteiros: estes pedaços são exactamente tirados da Chronica inedita que existe na Bibliotheca do Porto. Era esta uma das mais poderosas razões que tinhamos para crêr o mabuscripto de auctor diferente dos já apontados; porque, a ser de algum d'elles, te-lo-hia dito aquelle erudito cisterciense, ou pelo menos formado acerca d'isso algumas conjecturas: as reflexões que acima fazemos nos confirmaram inteiramente nesta opinião.

Parece que foi fado avesso de Fr. Bernardo da Cruz o servirem aos outros suas lucubrações, sem que d'elle ninguem faça menção, e conservando-se o seu nome até os fins do seculo passado em total esquecimento. Não foi somente Santos que se aproveitou do que elle escreveo; tambem Faria e Sousa o copiou, sem d'elle dizer uma unica palavra. Esta anecdota trouxe-a a lume o Bispo de Beja, e nós conferindo-a achámos que era verdadeira.

Notaremos em ultimo logar, que havendo apontado Faria, no principio da sua Asia, as fontes d'onde tirara o que escreveu, traz entre outros manuscriptos, notado um, que tratava d'El-Rei D. Sebastião, o qual diz lhe communicára o Abbade João Salgado de Araujo, e que se atribuia a Pedro de Mariz. Foi por este ut aiunt, que Barbosa ajuntou á lista dos escriptos de Mariz uma Chronica de D. Sebastião. Ora, não apparecendo no Apparato de Faria outro algum escriptor duvidoso, pertencente a essa epocha, pode-se colligir sem temeridade, que era a obra de Fr. Bernardo da Cruz, a que viu Faria e Sousa, e que por ventura não existe a que se attribue a Mariz.» (pp. 13-14-15)

A presente Crónica contém 113 capítulos, em dois volumes. O primeiro intitula-se "Da prosperidade dos reinos de Portugal em tempos d'El-Rei D. João terceiro"; o último "Como El-Rei mandou citar por carta de Editos ao senhor D. Antonio, e da falla que D. Francisco Pereira lhe fez". E abrange, como se disse,  o período final do reinado de D. João III, o reinado de D. Sebastião e o começo do reinado do Cardeal D. Henrique.

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Frei Bernardo da Cruz (1505-1565) foi um frade dominicano e prelado português, que chegou a ser nomeado bispo de São Tomé, embora nunca tenha ocupado a diocese. Nascido em Braga, foi enviado de D. João III a Roma e comissário do Santo Ofício por nomeação do Cardeal-Infante D. Henrique. Exerceu também as funções de reitor da Universidade de Coimbra.

 

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CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

CATÁLOGO TEMÁTICO
DE CRÓNICAS E RELATOS
SOBRE D. SEBASTIÃO

Séculos XVI e XVII

Tradições manuscritas

Bibliotecas portuguesas

Índice
 
Frei Bernardo da Cruz? - Crónica de D. Sebastião  p. 3
P. Amador Rebelo - Relação da vida d’elrey D. Sebastião  p. 9
Anónimo - Sumario de todas as cousas succedidas em Berberia/História da Jornada del Rey D. Sebastião a
Africa  p. 13
Fernando de Góis Loureiro - Jornada del Rey D. Sebastião à África  p. 15
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião  p. 17
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião escrita por um Homem Africano  p. 18
Miguel Pereira - Crónica de El Rey Dom Sebastiam  p. 19
Anónimo - Relação do princípio do governo de D. Sebastião  p. 20
Anónimo - [Relação da infeliz jornada d'El Rei D. Sebastião]  p. 21
Anónimo - Vida d’el-rei D. Sebastião  p. 22
Pedro Rodrigues Soares - Memorial  p. 23
Manuel Teixeira - Sumario breve das coisas que vio e alcansou saber manoel teix.ra da vida del Rey d.
Sebastião  p. 24
Anónimo - Relações ao Dr. Paulo Afonso  p. 25
Anónimo - Relação muito certa do apparato da armada para Africa o anno de 78   p. 27