sexta-feira, 7 de março de 2025

D. JOÃO III E D. SEBASTIÃO

Releio, no centenário da sua publicação, O "Piedoso" e o "Desejado" (1925), de Carlos Malheiro Dias. 

Não se trata propriamente de uma biografia de D. João III e de D. Sebastião, mas antes de uma evocação histórico-romântica daqueles soberanos, pela pena do conhecido escritor.

O autor descreve o panorama dos dois reinados, salientando a pobreza e o endividamento do país, os gastos com a Índia e com a expedição de Alcácer-Quibir. Refere as preocupações financeiras de D. João III, as suas despesas avultadas com benesses que concedia, com a continuação da construção dos Jerónimos, com as possessões ultramarinas. 

Refere as ligações familiares de D. João III com Carlos Quinto, de quem era duplamente cunhado, por ser casado com uma irmã do imperador (D. Catarina) e por este ser casado com uma irmã de D. João III (D. Isabel). Evoca ainda o facto de, até por razões de dote, D. João III ser instado a casar com sua madrasta D. Leonor (também irmã do Imperador) que enviuvara de seu pai (D. Manuel I) e que voltou a casar com Francisco I de França. O rei recusou tal casamento, que considerou inapropriado. 

Nas considerações sobre D. João III, Carlos Malheiro Dias recorre frequentemente aos Anais de Frei Luís de Sousa, de que cita muitas passagens. O autor tem também palavras de alguma compreensão para a Inquisição, cuja instalação em Portugal, a pedido de D. João III, justifica pelo ódio que os portugueses nutriam por judeus e cristãos-novos: «Quanto à ordem interna, nenhuma nação a gosou mais completa, e se a Inquisição manchou de fumo e sangue o reinado joanino, as suas victimas foram incomparávelmente em menor número que as imoladas pelas lutas religiosas que convulsionaram a Europa. Em confronto com as carnificinas dos huguenotos franceses, levados à fogueira e ao cadafalso pela plebe ávida de vingança, que se substituia aos carrascos para fazer justiça pelas próprias mãos, o tribunal do Santo Ofício foi em Portugal uma instituição ao serviço da ordem e que, embora por processos crueis, que eram os do tempo, concorreu para consolidar a unidade nacional.» (pp. 98-99) Certamente, uma apreciação muito benévola.

Sobre D. Sebastião, o autor escreve: «D. Sebastião não era o produto do fanatismo, da Inquisição e dos jesuítas, mas um filho póstumo da Idade Média, com a consciência hierática da sua magistratura de monarca, vendo nos prodígios do seu povo os favores tutelares da Divindade. O rei não escrevera os Lusíadas, mas, como Camões, tinha a concepção épica da pátria. Tal o poeta, arquitectava grandes e regeneradoras emprêsas. "Fazia das virtudes degraus para se precipitar nos abismos dos temerários". Tinha como preceito que a falta de perigo nas pelejas diminui os quilates às vitórias. Poesia! quando governar bem seria vender pelo maior preço a pimenta da Índia, fundir para relhas de arado os arnezes da armaria, fazer um filho numa princesa de Castela ou de França, cuidar mais da lavoura que da guerra... Mas a criança real brincava com as tempestades, guardava castidade, escrevia de joelhos o regimento dos seus heróis.» (pp. 118-119)

Este livro, sobre o reinado dos dois monarcas, é especialmente uma obra de exaltação patriótica e os factos são apresentados na interpretação própria do autor e manifestando as suas preocupações com aspectos específicos. Assim, pode ler-se: «Com a narrativa que da jornada de Elvas a Lisboa nos deixou um letrado do séquito cardinalício [Viagem do Cardeal Alexandrino, Miguel Bonello, sobrinho de Pio V, legado aos reis de França, Hespanha e Portugal, no anno de 1571, por João Baptista Venturino] podemos ressuscitar, atónitos, o fausto inverosímil que atingira nas vésperas da catástrofe o Portugal bélico-comercial da Renascença, onde se haviam acumulado as ruínas e as riquezas da política expansionista de três reinados. Logo de entrada, na recepção do duque D. João de Bragança, as pompas portuguesas deixam estupefacto o séquito do prelado romano. O duque apresenta-se faúlhante de pedrarias, as bandas da capa apresilhadas com rubis, o barrete de veludo guarnecido de pérolas e diamantes. O seu palácio é mais sumptuoso que todos os que os italianos viram em Espanha, exceptuando o de Madrid. As paredes das suas salas e escadarias estão recobertas de tepeçarias de sêda, ouro e prata, representando umas a tomada afortunada de Azamor pelo duque D. Jaime, outras a batalha de Aljubarrota. O leito do legado é de brocado de ouro, e com a mesma áurea tela está recoberta a mesa de estado. As cadeiras são de veludo franjado de ouro, e Venturino avalia em cento e cincoenta mil escudos as baixelas de ouro e prata que refulgem nos aparadores, enormes como altares. No banquete teatral servem-se, enquanto tocam os atabales, as trombetas, as adufas e os pífaros, pavões armados e pasteis de onde voam, ao abrirem-se, perdizes, melros e pombas bravas. O duque, como um soberano, é servido de joelhos. Para lhe darem de beber cumpre-se um cerimonial ostentoso. Adiante do escanção, que lhe apresenta a copa e o jarro de água, posta-se o mordomo com o bastão, entre os maceiros e os reis de armas, vestidos com sobrevestes de brocado de ouro. E quando, ajoelhado, o escanção oferece ao duque a copa de ouro, os instrumentos tocam, as trombetas estrugem! Assim bebia um copo de água o duque de Bragança, em 1571. Sete anos depois, o filho primogénito do senhor de Vila Viçosa, cativo dos mouros, dormiria sôbre o chão duro, entre os miasmas cadavéricos de Alcácer...» (pp. 139-140-141)

E, no mesmo tom: «Era louco o plano de D. Sebastião? Eram levianos os seus desígnios? De modo nenhum. O empreendimento de política mercantil do Oriente falira. Para sustentar a Índia seriam necessários o dobro dos homens e dos sacrifícios que custaria a manter ao pé da porta o Algarve africano. D. Sebastião era inspirado no seu projecto por um seguro instinto de política nacionalista. Suprema injustiça é querer vêr apenas em D. Sebastião o vencido de Alcácer-Quibir, e não o herói que ia combater pelo proveito da pátria. o seu acto não é um suicídio, mas uma reacção. Pretendendo ressuscitar as virtudes antigas, a sua castidade, irmã da de Nun'Álvares, era um protesto contra os vícios que infeccionavam a nação. A sua curta e formosa vida é um exemplo de imaculada fé, de coragem enérgica, de dignidade nobre e de patriotismo ardente. Podendo dormir entre os braços brancos de Margarida de Valois e envelhecer entre festins e caçadas, vendendo a pimenta da Índia e divertindo-se com as facécias dos bobos, preferiu ao amor das mulheres o amor da pátria e quis ser antes um herói do que um mercador de especiarias. Foi vencido: eis a culpa que lhe assacam. Foi um temerário: eis o defeito com que o desprestigiam. No depoïmento de quantos procuraram alijar as suas responsabilidades inculpando o monarca pela decadência que quis regenerar, e na obra tendenciosa com que a política espanhola intentou abafar a patriótica saüdade portuguesa pelo seu rei, se tem pretendido confirmar a sentença iníqua.» (pp. 167-168)

O parágrafo anterior ilustra o espírito do livro. Todavia, Carlos Malheiro Dias foi autor de vários romances que obtiveram o maior sucesso na sua época. Foi então considerado literariamente como o herdeiro natural de Eça de Queiroz. Mas a sua obra está praticamente, e injustamente, esquecida. 

Registe-se ainda que, a propósito de D Sebastião, Carlos Malheiro Dias travou uma célebre polémica com António Sérgio, assunto a que nos referiremos nos próximos posts deste blogue.

 

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