sábado, 30 de setembro de 2023

A IGREJA DO NAUFRÁGIO DE SÃO PAULO, EM VALETTA

A Igreja Colegiada do Naufrágio de São Paulo, em Valetta, é uma das mais importantes da cidade, por ela em si mesma e pelo que representa. Muitos escritores consideram o naufrágio do Apóstolo São Paulo na costa da ilha (c. 60 AD) como o maior acontecimento na história de Malta, pois foi ele que trouxe aos seus habitantes a fé cristã. A ilha é referida nos Actos dos Apóstolos (28, 1), atribuídos a São Lucas: « Estando já a salvo, soubemos que a ilha se chamava Malta».

O culto de São Paulo espalhou-se por toda a ilha e muitas igrejas são-lhe dedicadas, entre elas a Catedral de São Paulo em Mdina. E em Rabat existe a Gruta onde o Apóstolo viveu durante os três meses que permaneceu na ilha e à volta da qual foram escavadas catacumbas para os cristãos dos primeiros séculos e que serviram depois como abrigos subterrâneos durante a Segunda Guerra Mundial. 

A construção da igreja na versão actual começou em 1639 e prolongou-se por 40 anos. Mede 35 m de comprimento e 22 m de largura e possui uma nave central e duas naves laterais. A Sacristia encontra-se do lado esquerdo e o Oratório do lado direito. Nas naves laterais existem dez Capelas, cada uma com a sua cúpula. São dedicadas, do lado esquerdo a S. Miguel, S. Crispim e S. Crispiniano, Santíssimo Sacramento, S. Caetano e Santo Crucifixo e do lado direito a S. Martinho, São Homobonus, Nossa Senhora da Caridade, S. José e Santa Teresa d'Ávila. 

Fachada (em 2007)

 

A fachada ostenta uma imagem da Imaculada Conceição, sobre a porta central, flanqueada por duas torres com sinos. Sob os campanários encontram-se as estátuas de pedra de S. Pedro e de S. Paulo. Sobre cada uma das portas laterais há inscrições em mármore em honra de S. Paulo, uma comemorando a dedicação do templo em 1569 e a outra comemorando o restauro da nova fachada, concluído em 1886. A igreja é coberta por uma magnífica abóbada elíptica, ricamente pintada. A Capela-Mor, onde se  encontra o riquíssimo Altar-mor, foi alargada em 1762, pelo Grão-Mestre Manuel Pinto da Fonseca, para que pudesse acolher no recinto o trono do Grão-Mestre. Este manteve-se, ao lado do trono do Bispo de Malta mesmo depois da ocupação de Bonaparte em 1798 e só foi retirado após as reformas do Concílio Vaticano II. No dia da festa de S. Paulo, o Altar-Mor é ornamentado com treze magníficos e grandes castiçais de prata ladeados por seis pequenas estátuas de ouro e prata dos Apóstolos, cópias exactas das que existem na Basílica de S. João de Latrão, em Roma. No centro do altar é colocada uma base de prata, sobre a qual é posto, durante os três dias precedendo a festa, o relicário do Santo, em ouro e pedras preciosas.

Altar-Mor

A igreja possui um valioso conjunto de peças, em ouro, prata e pedras preciosas, como custódias, relicários, salvas, cálices, lampadários, tabernáculos, turíbulos, tendo vários destes objectos sido oferecidos pelos Grão-Mestres Pinto da Fonseca e Manoel de Vilhena.

Muito antes da igreja conventual de São João ter sido designada Co-Catedral, em 1816, a Igreja paroquial do Naufrágio de São Paulo era a igreja do Bispo de Malta em Valetta. Este, aliás, continua a possuir o seu trono na Igreja de São Paulo. 

Atrás do Altar-Mor encontra-se o Coro, construído um ao antes da erecção da cúpula, e realizado com os fundos concedidos por Don Cesare Passalacqua, procurador e grande benfeitor da igreja e cujo retrato se encontra na Sacristia. O Coro possui 22 cadeiras de madeira, 11 de cada lado, uma das quais ostentando as armas do  Capítulo.

Sobre o Coro, num nicho aberto na parede, encontra-se, segundo a tradição, parte da coluna original em que S. Paulo foi martirizado em Roma, no local onde hoje se ergue a igreja San Paolo alle Tre Fontane. Esta parte da referida coluna onde o santo foi decapitado foi doada à igreja, em 1818, pelo Papa Pio VII. 

Por Breve de 1733, o Papa Clemente XII elevou à categoria de Colegiada a igreja paroquial do Naufrágio de São Paulo. A cerimónia da investidura dos primeiros cónegos do novo Reverendo Capítulo da nova Colegiada teve lugar em 1733 no Palácio do Inquisidor, na Vittoriosa, e foi conduzida pelo Inquisidor, como representante da Santa Sé em Malta, Mgr. Giovanni Francesco Stoppani. Por Bula Apostólica de 1815, o Papa Pio VII concedeu aos cónegos do Capítulo o direito a usarem roquete, mozzetta de púrpura e cappa magna de arminho, bem como cordão de ouro e cruz peitoral. 

São Paulo

A estátua de madeira do titular da Igreja, São Paulo, foi esculpida por Melchiorre Gafà (1635-1667) em Roma, em 1659, tendo sido encomendada por Paolo Testaferrata, Barão de Gomerino. Durante anos foi conservada na casa particular da família e oferecida mais tarde à igreja pelos seus herdeiros. Esta estátua é passeada processionalmente em Valetta em dias solenes, como na festa de São Paulo, em 10 de Fevereiro.

Revestiam especial interesse nesta igreja paroquial as Confrarias ou Guildas Comerciais que lhe estavam afectas. Cada Confraria apoiava a Capela em que se realizavam os serviços religiosos em honra do seu santo padroeiro. Durante muitos anos houve sete Confrarias cada uma com a sua Capela, a saber: a Guilda dos Retalhistas e Vendedores de Carne, Peixe e Verduras tinha a Capela de S. Miguel; a Guilda dos Sapateiros e Fabricantes de Arreios a Capela de S. Crispim e São Crispiniano; a Guilda dos Ferreiros a Capela de S. Eligius (hoje Capela do Santíssimo Sacramento); a Guilda dos Ourives a Capela de Santa Helena (hoje Capela de Nossa Senhora da Caridade); a Guilda dos Tapeceiros, Alfaiates e Tecelões a Capela de S. Homobonus; a Guilda dos Mercadores de Vinho a Capela de S. Martinho. Também, durante anos, mesmo os Remadores e Trabalhadores Portuários tiveram uma Capela própria, a de Santa Ágata, hoje Capela de S. Caetano. 

Não cabe neste post a descrição das riquíssimas Capelas, tal como também não mencionámos  a decoração e as preciosas pinturas que ornamentam toda a igreja.

Na Capela de São José existe sobre o altar uma urna de mármore que contém um relicário de bronze dourado e pedras preciosas encerrando um fragmento do pulso direito de S. Paulo. A sua autenticidade foi garantia por diversos bispos e oferecida à igreja por Vincenzo Aloisio Bonavia, em 1823. Esta relíquia tem peregrinado não só em Malta mas também em Espanha e na Itália. 

Muito haveria a escrever a propósito do opúsculo em apreço, mas a presente apreciação já vai longa.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

AMORES PROIBIDOS NO IRÃO ISLÂMICO

Li agora a edição francesa de Les Garçons de l'amour (2022), tradução do persa (Pesaran-e Eshq), cuja data de publicação suponho ser 2011.

O autor, Ghazi Rabihavi, nasceu em Abadan (Irão) em 1956 e instalou-se em Teherão aos 22 anos, na altura em que começou a revolução. O Xá abandonou o país em 1979 e o ayatollah Ruhollah Khomeini regressou ao Irão, que se tornou uma república islâmica, após consulta da população em referendo nacional. Rabihavi editou várias novelas, sempre sob o cutelo da censura, e foi proibido de publicar em 1994. Em 1995 exilou-se em Londres, onde exerce a sua actividade entre o romance, o teatro e o cinema.

A presente obra é de carácter autobiográfico e o narrador, Djamil, assume a personagem do autor. Djamil, que vive com o pai numa aldeia próximo da cidade de Abadan, reconhece a sua paixão por um belo rapaz da sua idade, Nadji (ambos têm então 18 anos), que recolhe feno num ribeiro próximo. Estabelece-se uma relação entre os dois, que é mal vista pela família. A acção começa no início da Revolução no Irão e a acção dos fundamentalistas islâmicos já se faz sentir. Um momento de viragem é o incêndio do cinema Rex, em Abadan (1978), cuja autoria ainda hoje é discutida e onde morreu mais de um milhar de pessoas. Foi atribuído à SAVAK, a polícia do Xá, para culpar os islamistas ou aos fundamentalistas para responsabilizar o regime. Meses depois o Xá foi constrangido ao exílio.

Os dois rapazes resolvem partir para Abadan com o sonho de, mais tarde, alcançarem a Europa. Acabam por conseguir passagem clandestina para um país vizinho (não mencionado) que só pode ser o Iraque. Daí sonham emigrar para um país europeu mas virão a ser obrigados a regressar ao ponto de partida.

Entretanto fazem sentir-se as consequências da guerra Irão-Iraque, começada em 1980 mas que já estava latente.

Ao longo de quase 500 páginas, a vida de Djamil (e de Nadji) durante o tempo desta aventura é descrita minuciosamente como de um diário se tratasse, o que torna o livro monótono, até pela repetição exaustiva de situações semelhantes. A homossexualidade está sempre em pano de fundo, pois os moços são frequentemente objecto de propostas sexuais e até de assédios e violações. Quer de não muçulmanos (havia no Irão larga percentagem de cristãos católicos e ortodoxos e de arménios) ou mesmo laicos, quer até de fundamentalistas, já que as relações masculinas do mesmo sexo eram (e ainda são?) uma prática corrente no país. Mas a República Islâmica viria a condenar severamente tais práticas, inclusive com a pena de morte, para tudo o que pusesse em causa os preceitos da sharia. Os "guardas da Revolução" encarregar-se-iam de escrutinar as vidas alheias. Ainda assim, os relacionamentos perduraram, mas agora sempre entre quatro paredes e no maior sigilo, pois que o espírito está pronto mas a carne é fraca.

O périplo dos dois rapazes, primeiro juntos, depois separados e finalmente de novo reunidos, até uma separação final, constitui uma verdadeira saga de incompreensões, humilhações, maus tratos e o próprio Djamil é vítima de uma agressão com ácido que o deixa parcialmente desfigurado.

A extensão do livro não permite recorrer a pormenores, mas a história seria bastante cativante se o autor não tivesse optado por uma narração quase diária em vez de assinalar os factos significativos deste "amor impossível", numa sociedade relativamente permissiva no tempo do Xá, do ponto de vista estritamente legal, mas que nunca o foi do ponto de vista social. E depois do regime islâmico a condenação deixou de ser apenas social mas também legal, com frequentes enforcamentos, pelo menos nos primeiros anos revolucionários, ainda que o fervor religioso tenha ligeiramente abrandado nos últimos tempos. 

O autor, para além de narrar, através de um alter ego, uma história pessoal ainda que matizada, enfatiza o facto destes "amores proibidos" pela lei corânica (e por todas as leis das religiões monoteístas, infelizmente) serem correntes no Irão, integrarem mesmo a componente civilizacional, e nunca terem cessado de existir, no tempo do Xá e depois dele. Só por isso, o livro de Ghazi Rabihavi merece o elogio de todos os homens livres.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

O EGIPTO É A MÃE DO MUNDO

Foi publicado no mês passado Ce que je sais de toi, primeiro romance de Éric Chacour, natural de Montreal e filho de pais egípcios. O autor é diplomado em economia aplicada e relações internacionais, trabalha hoje no sector financeiro e partilha a sua vida entre o Québec e a França.

Este livro dá-nos o ambiente da sociedade egípcia dos anos 60 do século passado até ao princípio deste século. É um magnífico fresco de um Egipto que eu ainda conheci e que se encontra em vias de extinção. E o autor, ainda que nascido no Canadá, sabe bem do que fala, no caso concreto, do que escreve.

Neste texto, utilizarei os nomes egípcios na transliteração que Chacour usa no livro, que é a usual em francês, mas que não corresponde à transliteração oficial da língua árabe para caracteres latinos, normalmente respeitada pelas versões em inglês.

A estória é simples e comum, os pormenores deliciosos, o desfecho talvez surpreendente. Mas o todo é magnífico.

Resumamos:

Tarek [um nome de que conservo as mais gratas recordações], filho de uma abastada família do Levante, há muito tempo imigrada no Egipto, torna-se médico, a exemplo do seu pai. Como todo o bom egípcio, mesmo que não muçulmano (Tarek é cristão) casa-se com uma mulher, Mira Nakeilian (da comunidade arménia), por quem se julga suficientemente atraído. A família habita na zona elegante de Dokki, numa villa em cujo rés-do-chão o pai possui o consultório, que Tarek herdará por morte deste. A mãe é a grande matriarca, como acontece nas sociedades árabes (cristãs ou muçulmanas), quem verdadeiramente tem a última palavra, ainda que no Ocidente se propague a ideia de que as mulheres são consideradas inferiores nos países orientais. Tarek tem uma irmã, Nesrine, uma espécie de confidente, que só casará muito mais tarde, depois dos "acontecimentos". E há, inevitavelmente, uma criada, Fatheya.

[Deve dizer-se que desde o século XVIII habitavam o Egipto muitas comunidades "estrangeiras": judeus, gregos, italianos, sírios, libaneses, palestinianos, franceses, ingleses, etc., algumas das quais possuíam até jurisdição própria. O Egipto, teoricamente fazendo parte do Império Otomano, era na realidade uma colónia britânica, desde a derrota das tropas francesas aquando da invasão de Napoleão Bonaparte em 1798. Em 1919, Londres concedeu uma independência nominal ao Egipto mas só com a Revolução de 1952 (promovida pelo Movimento dos Oficiais Livres), que depôs o rei Faruq, que abdicou em seu filho Ahmed Fuad II (uma criança) se começou a caminhar para uma verdadeira independência. Em 1953, foi proclamada a República, com o general Naguib como presidente, e em 1954 um golpe de Estado depôs Naguib e instituiu um Conselho da Revolução (presidido por Nasser) que liderou o país entre 1954 e 1956. Em 1956, o coronel Gamal Abdel Nasser foi eleito presidente da República.]

Ainda em vida do pai, a quem já ajudava no consultório, Tarek resolve abrir um dispensário na paupérrima zona de Moqattam [ao lado da Cidade dos Mortos, essa extensão de vários quilómetros quadrados, no leste do Cairo, que abriga uma infinidade de sepulturas, onde vivem mais de seis milhões de pessoas e que tive a oportunidade de visitar, discretamente, uma vez]. Tarek desloca-se semanalmente ao dispensário e é sempre aguardado por uma interminável fila de pacientes a quem atende gratuitamente, ou mediante parco pagamento, nada que se compare com os honorários da sua rica clientela de Dokki.

Um dia, no fim da consulta, um rapaz aguarda-o à saída. Pede-lhe que vá a sua casa ver a mãe que já não se pode deslocar. Tarek acede e constata que a mãe, mulher simples, muito pobre mas inteligente, que o acolhe com entusiasmo (e insiste em estar de boa saúde), é vítima de uma progressiva doença do sistema nervoso. A pedido do filho, Tarek acede continuar a visitá-la e acaba por receber o filho, Ali, um belo rapaz de 19 anos, como auxiliar no dispensário. Esperto e empenhado, o rapaz torna-se imprescindível e os próprios pacientes começam a pedir a Ali, que verifica os casos mais urgentes, precedência no seu atendimento pelo doutor.

A mãe está encantada com a nova ocupação do filho (não sabemos se ela conhece as outras ocupações dele, pois o filho todos os dias se desloca ao centro da cidade, porventura para vender alguns bens recuperados da sucata de que é armazém a zona de Moqattam, o bairro dos zabbaline (em árabe, do lixo) e pede a Tarek que, por sua morte, tome o rapaz sob a sua protecção. 

E, finalmente, a mãe morre. Tarek decide contratar Ali para seu auxiliar na própria clínica de Dokki, sem prejuízo do dispensário que continua a ser objecto da sua actividade benévola. É claro que Tarek, talvez imperceptivelmente (tais ideias nunca lhe tinham ocorrido), começa a ficar seduzido por Ali.

Nestes anos, Nasser é a grande figura do Egipto, as mulheres consideram-no o homem mais belo do país. Pelo meio da estória há a Guerra dos Seis Dias, o assassínio de Sadate, e mil e uma coisas que os conhecedores do Cairo conhecem e adoram. Ruas, lojas, comidas, monumentos, artistas, músicas, locais diversos,etc.

Um dia, Tarek é visitado inesperadamente por Omar, homem já idoso, corpulento e muito rico, um dos grandes comerciantes de algodão do Egipto, uma figura poderosa na vida política e social do país. Chega no fim da consulta e insiste em estar a sós com o médico. Tarek que o conhece, Omar é visita de casa, recebe-o, tendo aquele insistido em saber se estão sós, já que se trata de assunto muito importante. O homem começa por invocar o amor por sua mulher Dahlya, com quem está casado há 32 anos, e tenta explicar-se por meias palavras o seu problema. Como Tarek não o entende bem, Omar acaba por ser mais explícito e o médico fica a saber que o homem se queixa de que desde há algum tempo não consegue excitar-se e ter ejaculação. Tarek vai tentar explicar-lhe mas eis que Ali surge da dependência ao lado. Omar tem um ataque de fúria e sai intempestivamente. Tarek repreende Ali pela sua aparição súbita mas este diz-lhe que não tem importância, que ele conhece o homem e que é um seu cliente. Tarek fica siderado. "Cliente?". Então o rapaz confessa-lhe que Omar é um dos clientes com quem ele habitualmente se prostitui e que o homem não precisa realmente de medicamentos, conforme se recorda da última vez que esteve na cama com ele. E diz a Tarek: «Tu crois que tu fais le seul métier où les gens acceptent qu'on les palpes?». E Tarek interroga-se: » Imaginer Omar avec Ali. Le corps usé du premier se payant la vigueur du second. Quel tarif pouvait justifier d'imposer sa déchéance à un jeune homme tel qu'Ali?».

E a uma pergunta de Tarek sobre a sua prostituição «Ce n'est pas difficile pour toi?», Ali responde: «Qu'est-ce que tu veux dire? Difficile de devoir vendre mon corps? De coucher avec des hommes que je n'ai pas choisis? Avec des vieux, des malpropres? D'obéir à leurs fantasmes? Non, ça va, ce n'est pas difficile. Et toi, ce n'est pas difficile d'examiner les incontinents et de manipuler des plaies gorgées de pus? Tu veux que je te dise? Ce qui est difficile, c'est d'attendre toute une nuit et de rentrer sans avoir trouvé de client...»

O livro está recheado de sábias e oportunas reflexões do autor sobre a vida, a natureza humana, o mundo.

[A homossexualidade, é condenada penal, social e moralmente no Egipto pela religião muçulmana, como, aliás, em toda a parte, pelo judaísmo e pelo cristianismo, uma herança trágica das religiões monoteístas, mas sempre foi largamente praticada nos países árabes (e em todo o mundo) apesar dos mais variados interditos. Supõe-se que as novas organizações designadas LGBTQI+,etc., com os seus programas radicais, contribuirão poderosamente para acentuar a rejeição das ligações do mesmo sexo. Em grande parte do mundo árabe, até há bem pouco tempo, a actividade homófila foi significativamente tolerada, ainda que «sobre a nudez forte da verdade estivesse o pouco diáfano manto da hipocrisia».]

Retomemos o fio condutor.

A mulher de Tarek, que já notou as cada vez mais demoradas permanências do marido no consultório e no dispensário, começa a fazer viagens pelo pais, com o pretexto de passar uns dias nesta ou naquela cidade e, depois, já sem qualquer pretexto. E Tarek resolve instalar Ali em casa durante as ausências da mulher, e tornam-se amantes.

Mas começa a difundir-se na cidade o boato de que Tarek é ajudado na sua prática médica por um rapaz de má vida. Boato sem dúvida propagado por Omar: a melhor defesa é o ataque. Entretanto as marcações de consultas começam a ser anuladas e a clientela elegante da clínica começa a rarear. E há mesmo uma proposta de egípcios regressados da Arábia Saudita e convertidos ao salafismo que pretendem adquirir o dispensário (a caridade sempre foi uma das armas dos Irmãos Muçulmanos) e até de admitir Ali desde que este "renuncie ao pecado".

De repente, aconteceu o impensável. O consultório de Tarek foi vandalizado, mas sem que algum objecto tenha sido roubado. E o médico descobre o seu gato de estimação, Tarbouche, pregado numa parede, ainda com o sangue a escorrer. E esta inscrição na parede: «Il t'attend en enfer.» Quem? O gato, ou Ali?

O rapaz tinha sido dispensado dias antes, para serenar os ânimos, mas não voltará a reaparecer. A mãe anuncia-lhe que Ali morreu, provavelmente afogado. Tarek não acredita. Quer ver os despojos. Esta diz-lhe que ela mesma, quando soube, ordenou que deitassem o cadáver na vala comum, já que era empregado da casa (do consultório) e não tinha família. Tarek, desesperado, tenta encontrar indícios da morte, mas debalde. Vai mesmo ao Mogamma [célebre e gigantesco edifício administrativo que existe na Praça Tahrir e ao pé do qual passei muitas vezes] para descobrir o que sucedeu, que registos existem, mas não obtém qualquer informação. 

Neste momento, Tarek toma a decisão mais importante da sua vida. Abandona o Egipto e emigra para o Canadá, onde reiniciará a vida a partir do zero.

Termino aqui a descrição da narrativa, quando o livro se encontra sensivelmente a meio. Mas não seria correcto da minha parte desvendar os inesperados episódios seguintes e a surpreendente conclusão.

Ce que je sais de toi é um livro notável, pelo que diz e pelo que deixa entrever. Como primeiro romance, constitui uma agradável surpresa. E recorda-nos a coexistência (nem sempre pacífica) entre as diversas comunidades egípcias: muçulmana, copta, ortodoxa grega, melkita, maronita, etc., pelos seus usos e costumes. A comunidade judaica quase desapareceu depois da revolução de Nasser.

Procurei sintetizar da melhor forma a primeira metade do livro. Obviamente com muitas falhas, já que não é condensável a riqueza do texto. Os interessados poderão adquirir a obra e apreciar a sua qualidade.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

AS ESTRANHAS ESCOLHAS DO PAPA FRANCISCO

Pela Bula Áurea "In supremo apostolatus solio", de Clemente XI (7 de Novembro de 1716), foi criado o Patriarcado de Lisboa, em paralelo com o Arcebispado existente, e que foi depois, naturalmente, absorvido pelo recém-criado Patriarcado.

Pela Bula "Inter praecipuas apostolici ministerii", de Clemente XII (17 de Dezembro de 1737), ficou estabelecido que o Patriarca de Lisboa seria elevado à dignidade cardinalícia no primeiro Consistório a seguir à sua nomeação.

Tudo favores da Santa Sé ao Fidelíssimo Rei o Senhor Dom João V. Estes privilégios, e muitos outros!

O princípio da elevação a Cardeal do Patriarca de Lisboa no primeiro Consistório seguinte manteve-se até data recente. Foi quebrado pelo Papa Francisco, quando o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, nomeado em 18 de Maio de 2013, foi designado Cardeal apenas no segundo Consistório após a sua nomeação, isto é, em 14 de Fevereiro de 2015. Argumentou-se então que a excepção se devia ao facto de se encontrar ainda vivo o anterior Patriarca de Lisboa (já emérito), o Cardeal D. José Policarpo (ainda possuidor das suas prerrogativas cardinalícias).

Verifica-se, agora, uma segunda excepção, também da responsabilidade do Papa Francisco: a nomeação de D. Rui Valério para Patriarca de Lisboa, em 10 de Agosto de 2023, que não será seguida da sua elevação ao cardinalato no próximo Consistório, que terá lugar no dia 30 de Setembro corrente. Poderá voltar a argumentar-se que tal procedimento se deve ao facto de ainda se encontrar vivo (e no uso das suas prerrogativas cardinalícias) o Patriarca emérito de Lisboa, D. Manuel Clemente, que havia resignado por limite de idade.

Mas surge aqui uma imensa interrogação. Ao anunciar há várias semanas os novos cardeais a empossar no próximo dia 30, o Papa já tinha aceite a resignação de D. Manuel Clemente e certamente já teria decidido quem seria o seu sucessor, que poderia ser criado cardeal no próximo Consistório. Mas isto pode, todavia,  dever-se às razões anteriores mencionadas. O que é mais extraordinário é que o Sumo Pontífice tenha criado cardeal D. Américo Aguiar, Bispo titular de Dagnum e Auxiliar de Lisboa, sem o designar então para outras funções, e o tenha nomeado hoje para Bispo de Setúbal, Diocese que se encontrava vacante há quase dois anos. 

Não constitui escândalo público que o Papa nomeie cardeal um bispo residencial em Portugal, mas não é da história que isso tenha acontecido sem que o Patriarca de Lisboa fosse cardeal. O Bispo emérito de Leiria-Fátima, D. António Marto, foi cardeal, mas havia um cardeal em Lisboa. Mas que o novo Bispo de Setúbal seja elevado a cardeal sem que seja cardeal o Patriarca de Lisboa já parece uma atitude estranha. Tanto mais que a Diocese de Setúbal é sufragânea do Patriarcado de Lisboa e teoricamente na dependência deste.

Já estamos habituados a decisões controversas do Papa Francisco. Contudo, esta atitude significa uma afronta gratuita ao Patriarcado de Lisboa e, lato sensu, a todo o Episcopado Português. É que, com a sua elevação à púrpura cardinalícia, o novo Bispo de Setúbal terá precedência sobre todos os prelados portugueses: sobre o Patriarca de Lisboa, sobre o Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas, sobre o Arcebispo de Évora e sobre todos os Bispos Residenciais.

Não havia necessidade.

Que mais surpresas nos esperam?

É claro que não está em causa a figura de D. Américo Aguiar mas tão só o desrespeito de normas pontifícias com quase trezentos anos ou a sua involuntária ignorância, o que não parece ser o caso.


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

O MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA, EM VALETTA

O Museu Nacional de Arqueologia, em Valetta, está instalado num prédio barroco que foi, em tempos, o Albergue da Língua de Provença. Construído para os Cavaleiros provençais, é anterior a 1571 e a sua fachada exibe características maneiristas habitualmente associadas ao ao famoso arquitecto local Gerolamo Cassar, pelo que se presume tenha sido ele o autor, já que subscreveu os mais importantes edifícios de Valetta naquela época.

A divisão mais importante é o Grande Salão, situado no primeiro piso. Era usado para as reuniões dos cavaleiros e também como refeitório e sala de banquetes. As paredes da sala estão admiravelmente pintadas e o tecto possui excelentes painéis.

O edifício teve diversos ocupantes, desde 1798, quando a Ordem foi expulsa de Malta. Em 1826 passou a acolher a Malta Union Club, cujo arrendamento expirou em 2002, mas só foi executado em 12 de Agosto de 1955. Nesta data foi destinado a Museu Nacional de Malta, que foi inaugurado em Janeiro de 1958 por Agatha Barbara, ministra da Educação. Assumiu as funções de director o Capitão Charles G. Zammit (filho de Sir Themistocles Zammit, um médico que foi o promotor da arqueologia maltesa). 

A exposição permanente do período neolítico encontra-se no piso térreo, e as peças provêm das escavações efectuadas em vários templos e locais de Malta e de Gozo. Ocorrem por vezes exposições temporárias, que são apresentadas no Grande Salão, que também é utilizado para conferências e outros eventos. Ainda no piso superior pode ver-se um conjunto de peças da Idade do Bronze e da Arte Fenícia.

A tábua cronológica do Neolítico de Malta é a seguinte:

1) Fase Ghar Dalam - 5 200 - 4500 AC

2) Fase Skorba Cinzento - 4 500 - 4 400 AC

3) Fase Skorba Vermelho - 4 400 - 4 100 AC

4) Fase Zebbug - 4 100 - 3 800 AC 

5) Fase Mgarr - 3 800 - 3 600 AC

6) Fase Ggantija - 3 600 - 3 000 AC (Inclui uma sub-fase Saflieni - 3 300 - 3000 AC)

7) Fase Tarxien - 3 000 - 2 500 AC

As fases Ghar, Skorba e princípio de Zebbug correspondem ao Período Neolítico Inferior.

As fases Zebbug (final), Mgarr, Ggantija e Tarxien correspondem ao Período Templo.

A exposição de peças do neolítico compreende seis salas. 

A sala 1 é dedicada ao neolítico inferior e apresenta várias peças de cerâmica tais como cabeças de animais e figuras humanas, utensílios do quotidiano, lâminas de pedra e de sílex, núcleos de obsidiana, ou objectos encontrados em túmulos, como ossos ou o célebre Círculo de Pedra Xaghra.

Na sala 2 há ruínas do período Templo, que nos ajudam a compreender a arquitectura das estruturas megalíticas, com reconstituições dos monumentos. E indicações de como se procedia à construção dos templos.

A sala 3 é dedicada às representações humanas, com estátuas de diversas divindades. Existe uma estátua colossal de mulher do período Tarxiano e muitas figuras de cerâmica e de alabastro. E ainda um relicário de pedra encerrando dois volumosos pénis. Há aliás muitas representações de símbolos fálicos que se supõe terem sido venerados na época, bem como fragmentos de corpos abraçados , não se distinguindo se pertencem ao mesmo sexo ou a sexos diferentes. 

A sala 4 contém numeroso objectos de cerâmica incomuns, como uma "roda solar" de argila, seixos com incisões, cilindros de pedra com incrustações em ouro, colares, pingentes de pedra verde, etc.

Na sala 5 pode ver-se uma das peças mais famosas do Museu: a "Senhora Adormecida", escultura em barro proveniente do hipogeu de Hal Safieni. E outras peças do mesmo hipogeu.

A sala 6 está adornada com numerosos blocos de pedra e altares provenientes dos templos tarxianos. E também objectos diversos, como chávenas, tigelas, etc.

O Catálogo refere-se apenas ao Período Neolítico, embora o Museu abrigue agora peças da Idade do Bronze e da Arte Fenícia, das quais, passados vários anos sobre a minha visita, já não me recordo.


domingo, 17 de setembro de 2023

O ENGATE DOS VAGABUNDOS

Foi publicado há algumas semanas Prélude à son absence, primeiro romance de Robin Josserand, francês, de 31 anos, bibliotecário em Lyon.

Trata-se de um livro presumivelmente autobiográfico, em que o narrador, suposto alter ego do autor, é um jovem de 30 anos, que trabalha na Bibliothèque de la Part-Dieu, em Lyon. Nos dezassete andares do edifício, o narrador, de que não sabemos o nome, aborrece-se entre as estantes de livros, os ficheiros, as obras de arte e os objectos anacrónicos que ali permanecem desde 1972, data de inauguração da biblioteca. E possui um fascínio especial por Jean Genet, que se revela ao longo da obra e do qual cita, em epígrafe, a citação da tarja da 13ª edição do Journal du voleur: «Il faut d'abord être coupable.»

Aliás, o autor diz ao que vem logo no primeiro parágrafo do livro: «Si je devais réfléchir à ce pour quoi j'ai commencé à écrire, je dirais que la littérature, pour moi, consiste à décrire de beaux jeunes hommes. Des garçons partout, des garçons tout le temps: le project vain d'un voyeur innocent. Mais à force de buter, le désir s'est usé. À ceux croisés régulièrement dans ma rue, je refuse désormais mon regard, regard qui n'est plus ce qu'il était, qui ne s'attarde plus partout, que je peux dès lors laisser aller sans crainte. La jouissance me fait l'effet d'un coup reçu au sommet du crâne et le plaisir vient cogner dans ma tête comme un troupeau de bêtes fuyantes. Dorénavant, ma vie est en surdine et d'aucuns diront que j'ai un peu abandonné la partie. Cette existence est devenue laide, décevante. Je n'écris plus. Je viens d'avoir trente ans.»

Talvez por isso, o narrador manifesta agora uma predilecção especial pelos sem-abrigo e nos intervalos em que abandona o serviço para se passear pelas ruas adjacentes não deixa de perscrutá-los com um atento olhar. Assim, surpreende um dia, sentado em frente de uma farmácia, um jovem vagabundo que, pela sua beleza, lhe desperta particular atenção. E há uma troca de sorrisos. 

Durante alguns dias, o rapaz não se mostra nas redondezas, que o narrador percorre com redobrada atenção. Julga vê-lo ali ou acolá, mas é sempre um outro clochard. Até que finalmente o descobre e se vai estabelecendo um parco relacionamento, através de oferta de cigarros, de uma pequena moeda, da oferta da valiosa 13ª edição do Journal du voleur, que o narrador subtrai da biblioteca e que presume possa interessar ao sem-abrigo.

Os encontros furtivos de rua sucedem-se, até que o narrador o convida para se instalar no seu apartamento. Convite aceite após alguma hesitação do rapaz, que desde o início percebeu o jogo e deixa claro estar fora de questão qualquer relação sexual.

Mas o narrador não perde a esperança de ver aquele corpo sujo, que não despe uma peça de roupa, cujo vestuário miserável instintivamente o excita. E tentará a sua sorte, citando Koltès: «Ce n'est pas toujours celui qui aborde qui est le plus faible.»

Com persistência, consegue saber o nome e a idade do rapaz: Sven, 22 anos. 

A instalação de Sven no apartamento não implica deste a aceitação de quaisquer regras ou a prestação de quaisquer favores sexuais. Entra e sai às horas que lhe apetece, levando uma vida obscura, entre desaparecimentos bruscos, desejos insólitos e telefonemas insistentes que escapam à compreensão do narrador. E há, também, pelo meio álcool e drogas. Nem remexendo nos dois sacos com os seus pertences, que o vagabundo depositou na sua casa, o narrador consegue saber algo da sua vida, salvo que nasceu em Paris, talvez no seio de uma família burguesa e que, por opção, se tornou clochard. E encontra uma pequena fotografia de Sven, que subtrai, já que este recusa terminantemente deixar-se fotografar.

A vida sobressaltada do narrador prossegue, com ausências forçadas ao trabalho, devido ao ritmo alucinante em que se tornou o seu quotidiano. O apartamento é agora um local de imundície e de desassossego. As impertinências, as más vontades, os desejos insólitos e provocadores de Sven sucedem-se. E a paciência do narrador parece ilimitada. Mas para evitar que o rapaz, por quem está apaixonado, desapareça definitivamente (o que já quase aconteceu), resolve convidá-lo para uns dias de repouso na Bretanha, na ilha de Groix, donde lhe será difícil evadir-se. A viagem será um  pesadelo. E as férias também. A recusa a contactos permanece inalterável e a mão na perna ou no pescoço de Sven vale 50 ou 100 euros, mesmo assim regateados, porque este não está normalmente disposto. Por isso, o narrador, continua a saga de se masturbar sozinho no quarto várias vezes ao dia. 

Mas as férias têm um desfecho imprevisível, que não deve ser aqui revelado.

A obra é salpicada amiúde por citações musicais e literárias, como convém no domínio culto dos livros que tratam de homossexualidade. Nunca é demais invocar os grandes espíritos que também apreciaram as carnes dos seus semelhantes sexuais, já que sabemos, desde sempre, que o espírito está pronto mas a carne é fraca.

Até cerca de metade do livro a narrativa de Robin Josserand é muitíssimo interessante, revelando um promissor escritor. Com a continuação, a estória perde ritmo, talvez pela repetição de situações e pela circunstância, que se me afigura inverossímil, do narrador aceitar durante tanto tempo todas as impertinências do rapaz, mesmo tratando-se de uma verdadeira paixão, o que não parece ser o caso. A atracção física por Sven afigura-se relevar mais de um interesse sexual e de uma obsessão fetichista. Sempre houve, no milieu homossexual, um desejo por mendigos, vagabundos, drogados, quiçá criminosos, como existe um interesse, nunca desmentido, por fardas. E o coração tem razões que a razão desconhece.

Com a reserva apontada, Prélude à son absence prenuncia uma estimulante rentrée literária.



quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A CASA ROCCA PICCOLA, EM VALETTA

A Casa Rocca Piccola, em Valetta, é a casa da família Piro, de uma antiga linhagem maltesa. A história da Casa Rocca Piccola recua ao século XVI, quando os Cavaleiros de São João, após a luta contra os turcos, em 1565, decidiram construir uma cidade de prestígio que pudesse rivalizar com as outras capitais europeias. Foram então edificados belos palácios nas ruas cuidadosamente planificadas da nova capital. 

O nome da Casa refere-se a Don Pietro La Rocca, almirante da Ordem de São João (da Língua Italiana). Os sucessivos proprietários foram aristocratas italianos, mas na segunda metade do século XVIII foi vendida a nobres malteses, que a detêm há mais duzentos anos. É hoje a casa da família do 9º Marquês de Piro, Nicholas, também 9º Barão de Budach. Abriga notáveis peças de mobiliário, pratas e pinturas, uma grande colecção de vestes antigas e um precioso arquivo de documentos privados. No subsolo foram cavados na rocha abrigos para protecção pessoal durante os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial.

Uma escadaria principal dá acesso ao piano nobile, constituído pelas seguintes divisões: Sala de Jantar de Verão, Sala Azul, Sala de Pórfiro, Biblioteca, Sala Verde, Quarto de Dormir, Arquivo, Sala de Jantar de Inverno, Sala Grande e Capela.

O Cardeal Fabrizio Sceberras Testaferrata (1757-1843), o único cardeal maltês, ofereceu ao proprietário da época, seu irmão Paolo Sceberras Testaferrata, um precioso cálice de ouro que se encontra na Capela.

As decorações pompeianas da Sala de Jantar de Inverno devem-se a Arthur Rose.

O Arquivo compreende uma extensa colecção privada de documentos da família Piro, que terá acompanhado os Cavaleiros de São João de Rhodes para Malta. O Grão Mestre Ramon Perellos enobreceu a família com um baronato em 1716 e Filipe V de Espanha concedeu-lhes um marquesado em 1742. Sobrevivem documentos relatando a venda de muçulmanos que Giovanni Pio de Piro fez ao mercador muçulmano Raïs. E também da administração dos bens da família e dos seus investimentos. 

A Sala de Pórfiro está ornamentada com retratos de Giovanni Pio Piro, 1º Barão de Budach e 1º Marquês de Piro e do Grão-Mestre Perellos. 

A Sala de Jantar de Verão é dominada por uma estátua de Diana em mármore de Carrara. 

Na Sala Azul existe um conjunto de instrumentos cirúrgicos de prata que pertenceram à Ordem Hospitalária de São João. 

Na Biblioteca pode ver-se sobre as portas uma sequência de pinturas de navios realizadas durante o grão-mestrado de Juan de Láscaris bem como dois imponentes retratos dos Grão-Mestres Emmanuel de Rohan e Ferdinand von Hompesch.

No Chamado Gabinete está uma das maiores preciosidades da Casa: a liteira dourada feita para Frà Victor Nicolas de Vachon Belmont, cavaleiro francês de Malta, capitão-general em 1764, e ornamentada com o seu brasão. Foi uma oferta do Grão-Mestre Pinto da Fonseca. O proprietário não abandonou Malta aquando da invasão de Napoleão, apesar das ordens deste. Estando sem dinheiro, para prosseguir as obras de caridade a que se tinha dedicado vendeu o mobiliário da sua casa. Os ingleses, que depois ocuparam a ilha, concederam-lhe uma pequena pensão. Morreu em 1807 e está sepultado na Capela de França da Co-Catedral de São João. 

É esta, em traços largos, a descrição da Casa Rocca Piccola.


quinta-feira, 7 de setembro de 2023

A HOMOSSEXUALIDADE E A CIVILIZAÇÃO

Regresso, para consulta, a essa extraordinária obra, a melhor que conheço no género, sobre a Civilização e a Homossexualidade, ou os homossexuais - ou melhor, os actos homossexuais, porque homossexualidade é coisa que só existe desde o século XIX:  Homosexuality and Civilization, de Louis Crampton, professor emérito da Universidade de Nebraska, editado pela Universidade de Harvard em 2003. Uma obra com mais de 600 páginas e convenientemente ilustrada. Li alguns capítulos, quando a comprei na data da publicação, e a ela regresso para esclarecimento de quaisquer dúvidas.

Informa o autor que decidiu escrever esta obra de referência depois da edição, em 1978, de Greek Homosexuality, de Sir Kenneth Dover, presidente da Academia Britânica, Chanceler da Universidade St. Andrews e presidente do Corpus Christi College, de Oxford. Apesar de publicado há cerca de meio século, o livro de Sir Kenneth Dover é ainda a grande autoridade em matéria de homossexualidade na Grécia Antiga.

Não permite a extensão do livro, nem a sua profundidade e erudição, tecer aqui quaisquer comentários. Limitar-me-ei a indicar os capítulos, cujos títulos despertarão certamente nos interessados o desejo da leitura.

1 - Early Greece (776-480 BCE)

2 - Judea (900 BCE-600 CE)

3 - Classical Greece (480-323 BCE)

4 - Rome and Greece (323 BCE-138 CE)

5 - Christians and Pagans (1- 565 CE)

6 - Darkness Descends (476-1049)

7 - The Medieval World (1050-1321)

8 - Imperial China (500 BCE-1849)

9 - Italy in the Renaissance (1321-1609)

10 - Spain and the Inquisition (1497-1700)

11 - France from Calvin to Louis XIV (1517-1715)

12 - England from the Reformation to William III (1533-1702)

13 - Pre-Meiji Japan (800-1868)

14 - Patterns of Persecution (1700-1730)

15 - Sapphic Lovers (1700-1793)

16 - The Enlightenment (1730-1810)

No Prefácio e nas Conclusões, o autor responsabiliza as religiões abraâmicas pela abominável interdição dos actos homossexuais, herança funesta  da religião Judaica em nome da qual o Catolicismo e o Protestantismo haveriam de cometer os mais monstruosos crimes. Também o Islão, como religião do Livro, condenou tais práticas, mas elas foram sempre toleradas, salvo períodos excepcionais, pelo poder secular e pelo poder religioso. E o radicalismo islâmico actual é um epifenómeno contemporâneo.

Pena que o prof. Louis Crampton não tenho dedicado um capítulo ao Mundo Árabe-Islâmico, bem como à Índia e à África Sub-Sahariana. E também à esfera Cristã da Ortodoxia.

Menciono, a título de curiosidade, que há no Capítulo 10 um sub-capítulo: The Inquisition in Portugal.

O livro está exaustivamente documentado e as transcrições dos nomes é correctíssima.


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

O PALÁCIO DO INQUISIDOR, EM MALTA

O Palácio do Inquisidor, situado na Vittoriosa, nome actual de Birgu, que foi capital de Malta depois de Mdina e antes de Valetta, foi construído, na versão actual, em 1660.

O edifício original, o Palazzo del Sant'Officio, foi erigido cerca de 1530, após a chegada dos Hospitalários a Malta, e foi inicialmente destinado a receber a Magna Curia Castellania e os tribunais civis. Estes transitaram para Valetta em 1571, quando o Grão-Mestre Pietro Del Monte mudou o centro administrativo da Ordem para a nova capital e o edifício ficou vazio durante anos. Em 1574, chegou a Malta, como representante do Papa, Monsenhor Pietro Dusina, com a missão de resolver a disputa entre o Bispo Martino Royas e o Grão-Mestre La Cassière. Foi Dusina o primeiro inquisidor-geral e delegado apostólico na ilha e o Grão-Mestre ofereceu-lhe o palácio como residência oficial do inquisidor pro tempore.

Palácio do Inquisidor

Antes da chegada de Dusina, o Bispo de Malta estava investido nos poderes de inquisidor e a audição dos casos realizava-se no palácio. Como este não estava preparado para as novas funções inquisitoriais, Dusina procurou acomodação alternativa no Forte de Sant'Elmo e depois no convento dominicano da Vittoriosa. Só mais tarde o edifício passou a Palácio do Inquisidor, tendo sido a residência oficial dos 61 sucessores de Dusina até 1798.

Ao longo dos anos os diversos inquisidores introduziram sucessivas modificações no edifício, construindo ou demolindo várias parcelas, razão pela qual o Palácio apresenta hoje uma configuração muito complexa. O mais antigo plano do edifício que é conhecido data de cerca de 1600.

Quando, em 1798, a Inquisição foi abolida em Malta por Napoleão, o palácio já era radicalmente diferente do edifício existente no fim do século XVI.

A Inquisição em Malta debateu-se sempre com problemas financeiros, especialmente no que se refere a obras e modificações no Palazzo Apostolico, tendo de recorrer várias vezes à Santa Sé. Os pontífices mais compreensivos foram Alexande VII (1655-1667) e Inocêncio XII (1691-1700) que tinham sido inquisidores em Malta. O primeiro, enquanto Fabio Chigi (1634-1639) e o segundo, como Antonio Pignatelli (1646-1649). As maiores transformações ocorreram nos anos 30 do século XVII com o Grande Inquisidor Fabio Chigi e, depois, com o seu sucessor Giovanni Battista Gori Pannellini. 

Não cabe aqui a descrição do sucessivo alargamento das instalações e dos melhoramentos introduzidos, mas uma das grandes preocupações foi a construção das celas dos presos, situadas no plano térreo e também no piano nobile, ao lado do tribunal e da sala de audiências. As últimas grandes transformações foram realizadas pelo inquisidor Giovanni Francesco Stoppani na década de 1730. Dotou o Palácio da entrada majestosa e da biblioteca e procurou transmitir, pelo simbolismo do edifício, uma imagem poderosa de si mesmo e da Inquisição em geral. Era uma forma de se distinguir dos outros, fossem iguais (e portanto rivais) ou inferiores. A mensagem destinava-se em primeiro lugar ao bispo de Malta e ao grão-mestre, mais ao último do que ao primeiro. 

Aspecto das celas

O último inquisidor, Giulio Carpegna, abandonou a ilha um mês antes da Inquisição ter sido extinta em Malta, por Napoleão Bonaparte, em Junho de 1798.

Durante a ocupação francesa as propriedades da Inquisição passaram para a governação civil e o Palácio foi utilizado como quartel-general do Comandante Noblet.

Durante a colonização britânica o Palácio foi utilizado inicialmente como hospital militar. Na década de 1830 foi transformado em messe dos oficiais que prestavam serviço na guarnição britânica do Forte de São Miguel, em Senglea. O exército ocupou o palácio a título perpétuo e sem pagamento, enquanto fosse necessário para uso militar. Durante a ocupação as forças britânicas procederam a grandes modificações, donde resultaram numerosos danos no edifício, que foi descaracterizado. O Palácio foi finalmente trocado pelos militares por três outros locais em Valetta. A transferência para o poder civil originou larga controvérsia porque o exército não pretendia abandonar o edifício devoluto pretextando outras utilizações. Houve mesmo planos para demolir o edifício e construir no lugar um bloco de apartamentos governamentais. 

Em 1924, a Comissão de Antiguidades considerou o imóvel de interesse histórico e que devia ser reparado e preservado e que não poderiam ser feitas alterações estruturais sem o seu prévio consentimento. Em 1926, o Palácio passou para o Departamento de Museus, integrado na secção de Belas Artes, sendo o curador Vincenzo Bonello. Este e o seu sucessor Antonio Sciortino procederam a consideráveis obras, que foram interrompidas pela Segunda Guerra Mundial. Sendo a Igreja da Anunciação e o Convento dos Dominicanos destruídos por um bombardeamento em 1941, os frades, para poderem continuar a sua actividade apostólica, foram transferidos para o Palácio em 18 de Dezembro de 1942. Os Dominicanos transformaram os dois grandes espaços do piano nobile em capela e a sala do tribunal em sacristia. Quando o seu Convento foi reconstruído, a ele regressaram em 1954, mas a capela permaneceu em actividade até 1960, altura em que se completou o restauro da Igreja da Anunciação. 

O Palácio reabriu finalmente ao público, em 21 de Fevereiro de 1966 e foi novamente reaberto oficialmente em 5 de Dezembro de 1981 como Museu de Folclore. Em 1992 foi instalado o Museu de Etnografia, procedendo-se à reconstrução do Palácio de acordo com a documentação pertencente aos Arquivos da Ordem de Malta existentes no Vaticano.

domingo, 3 de setembro de 2023

"WANDERWEG" OU NO RASTO DE RICHARD STRAUSS

Li por estes dias Wanderweg (1986), de Jack-Alain Léger (1947-2013), na edição portuguesa de 1991, que então comprara e que permanecera a aguardar oportunidade de leitura, até hoje!

O autor, de seu nome Daniel Théron, usou o pseudónimo de Jack-Alain Léger e também os de Melmoth, Dashiell Hedayat, Eve Saint-Roch e Paul Smaïl. Teve uma infância complicada que haveria de reflectir-se na sua carreira e que o levaria a trocar frequentemente de nome literário. O seu percurso de escritor foi caótico, julgando sempre ser perseguido pelos editores, mas deve-se-lhe um romance que foi um best-seller na época, Monsignore. Lera dele, em tempos, sob o pseudónimo de Paul Smaïl, La Passion selon moi e Ali, le Magnifique, este sobre o famoso caso Rezala, do nome de Sid Ahmed Rezala, o "assassino dos comboios", um rapaz argelino que fora colectivamente violado aos nove anos por jovens na casa dos 20 anos e que assassinaria posteriormente algumas raparigas em comboios, já depois da família ter emigrado para França. A sua primeira condenação deveu-se a ter violado, com 15 anos, um rapaz de 13 anos, num parque subterrâneo, em Marselha.

Entre os 15 e os 20 anos, a sua vida decorreu entre alguns assaltos, violações de rapazes e de raparigas, prostituição e diversas detenções, além das três raparigas mortas, duas em comboios, conforme referido acima. As testemunhas do caso são unânimes em afirmar que Rezala era um rapaz lindo e de cativante simpatia.

Procurado por toda a França, refugiou-se em Portugal, tinha então 20 anos, mas acabou por ser detido em Lisboa pela polícia portuguesa (14 de Janeiro de 2000), quando se preparava para fugir para as Canárias. Vivera alguns dias na margem sul com um homem de 40 anos, que conhecera num bar gay da capital portuguesa.

Tendo a França pedido a sua extradição, a Justiça portuguesa hesitou, pois a nossa Constituição proíbe a extradição quando o réu arrisca prisão perpétua. Em conformidade, Rezala apelou para as instâncias superiores, mas tendo a França garantido oficialmente que a pena máxima possível de ser-lhe aplicada seria de 30 anos, o Supremo Tribunal de Justiça anuiu à extradição (24 de Maio de 2000).  Sid Ahmed Rezala apelou para o Tribunal Constitucional (que dispunha de 80 dias para se pronunciar), mas em 28 de Junho de 2000 suicidou-se por asfixia na prisão portuguesa, sem sequer ter sido julgado ou condenado.

Mas deixemos o Caso Rezala e voltemos a Wanderweg.

Este livro é construído em torno de uma personagem, o famoso compositor e maestro alemão Bruno Arnhein (nome fictício), inspirado na figura de Richard Strauss. Mas a personagem não é, nem pretende ser, um alter ego do autor de O Cavaleiro da Rosa, apesar das piscadelas de olho à sua vida e obra. A acção decorre essencialmente na Alemanha Nazi, embora aluda recorrentemente ao período anterior, com muitas citações dos tempos de Guilherme II, de Francisco José e da República de Weimar. Ao longo do livro (que é extenso, mais de 400 páginas) permanece a sombra de Adolf Hitler, desde antes do seu acesso ao poder até à sua morte. 

O autor faz surgir muitas figuras históricas e outras inventadas ou maquilhadas. Por exemplo, o famoso libretista de Arnhein, o poeta Egon von Rosenberg, homem cultíssimo mas de aspecto repugnante, obeso e ridículo, pederasta de urinol, sempre envolvido com jovens prostitutos, rico e judeu, não é, nunca poderia ser, Hugo von Hofmannsthal. Judeu e rico, e grande escritor, sim, mas nada mais. E sucede-se o cruzamento entre figuras reais e figuras imaginárias, para satisfazer o objectivo do romance, que se estende desnecessariamente, prejudicando por vezes a economia da obra. É verdade que a análise psicológica das pessoas e das situações é muitas vezes brilhante, porém o excesso de pormenores quebra o ritmo da narração, especialmente quando a cronologia dos acontecimentos navega num vai-vem sucessivo.

Deve reconhecer-se que Jack-Alain Léger conhece muito bem o período que retrata, que conhece a história da Europa, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, que está ao par dos lugares emblemáticos da alta sociedade da época, dos seus costumes, das suas grandezas e das suas misérias, que está perfeitamente familiarizado com o mundo da música e sobretudo com o da ópera. 

Assistimos à ascensão do Nazismo, à indiferença dos alemães, indignados com as consequências do Tratado de Versalhes, ao insuportável aumento do custo de vida, à aliança de comunistas e nazis contra o governo de Weimar, à República Soviética da Baviera, à vitória democrática de Hitler, a última vitória democrática, ainda que o Führer dispusesse, até perto do fim, mesmo sem eleições, de um amplo apoio das massas. Mas a perseguição dos judeus e dos homossexuais, mais dos primeiros do que dos últimos, e a arbitrariedade do Poder, tornou-se insustentável nos derradeiros anos do regime. 

A perseguição dos judeus já fora anunciada no Mein Kampf, e os alemães, francamente anti-semitas, não se mostraram preocupados. Os judeus dominavam então a economia alemã. A perseguição dos homossexuais foi mais complexa. À partida, estes não adivinharam os perigos, pois se até Ernst Röhm, chefe das SA e companheiro de luta de Hitler desde a primeira hora, era abertamente homossexual. E o Nazismo exaltava a beleza masculina, era uma estética mais do que uma ideologia, e contou nas suas fileiras, até ao fim, com numerosos homossexuais que não chegaram a ser perseguidos. Sabemos que os últimos tempos do Império (o II Reich) e o período de Weimar foram extraordinariamente abertos à homossexualidade. Sendo o comunismo soviético de Estaline profundamente anti-homossexual, fazendo a União Soviética violentas críticas sobre as complacências sexuais do regime nazi e havendo também no espírito de Hitler uma aversão aos valores burgueses de Weimar, tudo isso terá pesado na perseguição que viria posteriormente a verificar-se. Mas para o Führer o cúmulo da "desgraça" era ser simultaneamente homossexual e judeu. Curiosamente, há muitos testemunhos de que o próprio Hitler era homossexual. Entre os livros mais documentados sobre a matéria conta-se A face oculta de Hitler, de Lothar Machtan, editado pela Bertrand em 2002.

Mas concentremo-nos no livro, cuja riqueza só a sua leitura permitirá revelar. Arnhein tem dois filho, um, Siegfried, que se tornará braço direito do Doutor Goebbels, outro, Friedrich, que será um militante anti-fascista. O compositor Arnhein, que comporá (como Strauss) obras para o regime e foi Director de Música do Reich, sem nunca se filiar no partido, manterá inicialmente uma atitude um pouco ambígua, pelo que será incomodado pelos "Aliados" no fim da Guerra. Todavia, terá sempre considerado ridícula a grandiloquência nacional-socialista. Também nos aparecem muitas vezes no livro Richard Wagner, Cosima, Luís II, Freud, Nietzsche, Mahler, Furtwängler, Bruno Walter, Schönberg, Elisabeth de Áustria ou Francisco José, dizendo (cito de cor) que "nada lhe seria poupado", depois de tumultos, greves, incêndios (o Ringtheater), guerras, o assassinato de seu irmão Maximiliano, o suicídio (?) de seu filho Rodolfo (no livro está irmão: erro do autor ou do tradutor ?), o assassinato de sua mulher Elisabeth e o ataque terrorista contra seu sobrinho Francisco Fernando, acontecimentos verificados nos seus quase 68 anos de reinado.

O livro está construído como uma partitura musical e sendo de qualidade irregular possui trechos absolutamente excepcionais, quer pela concepção, quer pela descrição. Não será exagero dizer que a personalidade do autor está perfeitamente espelhada nesta obra e que ele mesmo se encontra encarnado em muitas das suas personagens. A tradução portuguesa não é exemplar e mostra-se especialmente deficiente no que respeita a nomes próprios e a termos musicais. Algumas imprecisões flagrantes podem dever-se ao próprio autor mas não conheço o original.

As semelhanças de Bruno Arnhein com Richard Strauss são por demasiado evidentes. Uma das óperas mais célebres de Arnhein é La Contessina, escrita em homenagem a sua mulher, a Princesa de Werdenberg, que inclui uma Valsa que se tornou célebre em toda a Alemanha. Ora a Princesa de Werdenberg, a "Marschallin", é a protagonista de O Cavaleiro da Rosa. Também Arnheim foi Reichsmusikkammer, como Strauss, ainda que honorário, e escreveu o Hino para os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, tal como Strauss. E, como este, escreveu as Três Últimas Canções, que são Quatro, no caso de Strauss. Pela "conivência" com o regime nazi foi Richard Strauss também abrangido pelo "Processo de Desnazificação", uma monstruosidade psicológica, que só poderia ter sido inventada pelos "Aliados", suponho que sugerida pelos norte-americanos. Uma coisa é julgar crimes de guerra ou crimes ordinários, outra é julgar ideologias, assunto sempre complexo e perigoso. Segundo esse princípio, os americanos e ingleses poderiam ter sido julgados pela invasão do Iraque, mas não houve para eles um Tribunal de Nuremberga.

Um fio condutor da narrativa do livro é o escritor suíço Jean Schreiber que se avista uma vez com Arnhein e depois, no estrangeiro, algumas vezes, com sua filha Pamina, e que pretende escrever uma biografia, ou romance, sobre Arnhein. E que é por esta considerado um mau escritor. Lembrei-me, mas posso estar errado, de Jean-Jacques Servan-Schreiber (J-J S-S), escritor e jornalista, que foi o fundador e director da revista francesa "L'Express".  O verdadeiro J-J S-S era francês, mas viveu com a jornalista, escritora e mulher política Françoise Giroud, que era suíça.

Autor de algumas dezenas de romances, alguns de enorme sucesso e até adaptados ao cinema, mas de personalidade depressiva desde a infância, Jack-Alain Léger, que era homossexual, suicidou-se em 17 de Julho de 2013 (com 66 anos), defenestrando-se do 8º andar do seu apartamento em Paris.