Visitei, há dias, a exposição "Faraós Superstars", na Fundação Calouste Gulbenkian. O título da exposição mereceu-me, desde o início, as maiores reservas e por isso ainda hesitei em deslocar-me. Mas faraós são faraós e não resisti. É certo que a civilização do Antigo Egipto, depois da expedição napoleónica, e especialmente após a descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, tem servido para os fins mais diversos, nomeadamente de natureza comercial. E, no tempo presente, em que tudo se confunde, nada melhor do que evocá-la para atrair o interesse das massas.
Estava seguro de não encontrar significativas peças originais da época faraónica mas o que vi foi ainda inferior ao esperado. Pretendem os organizadores da mostra que a sua intenção foi revelar a projecção na vida quotidiana dos esplendores do Antigo Egipto e, nesse aspecto, a exposição preenche, ainda que modestamente, o objectivo. Mas creio que o grande público aguardava, ingenuamente, uma exposição mais em consonância com as que foram apresentados, há anos, em Paris, Londres ou outras capitais. Infelizmente, Lisboa não pode aspirar a tanto. Devo à Providência ter visitado os acervos egípcios do Cairo, Paris, Londres, Berlim, Viena, Roma, São Petersburgo, etc. Falhei Turim, mas não se pode ter tudo.
Ocorre que as peças da presente exposição se apresentam, em minha opinião, segundo um critério que, não sendo museologista, me parece desordenado. E pior: mal iluminadas, como vem sendo hábito nas últimas exposições, e com as legendas colocadas nos expositores a uma altura que obriga as pessoas a curvarem-se ou mesmo a ajoelharem-se para conseguirem ler o que está escrito.
A exposição foi concebida pelo egiptólogo Frédéric Mougenot e apresentada precedentemente no MUCEM - Musée des civilisations de l'Europe et de la Méditerranée, em Marselha, sendo igualmente curador, nesta mostra da Gulbenkian, o director-adjunto do Museu Gulbenkian, João Carvalho Dias. Emprestaram obras museus da Bélgica, França, Itália e Reino Unido, e também Portugal (Fundação Gulbenkian, Biblioteca Nacional, Cinemateca Portuguesa, Sociedade de Geografia, Museu Nacional de Arte Antiga, etc.). Além de coleccionadores particulares nacionais e estrangeiros.
A exposição evoca também a ligação que existiu entre Calouste Gulbenkian e Howard Carter, que descobriu o túmulo de Tut-Ankh-Amon. Sendo o senhor Gulbenkian um apaixonado coleccionador de Arte, de todas as épocas, algumas das peças egípcias da sua Colecção foram obtidas graças ao conselho avisado de Howard Carter.
Segundo a Introdução do Catálogo, de Frédéric Mougenot, a ideia da exposição (a projecção no mundo actual do Egipto faraónico), deveu-se à sua descoberta, em 2003, de um preservativo de látex com a marca Ramses, alusão ao célebre Ramsés II, que governou o Egipto de 1279 a 1213 A.C., e às repercussões no mundo de hoje dos nomes e imagens dos tempos faraónicos.
Importa dizer que o Catálogo desta exposição está esteticamente em harmonia com os de outras exposições realizadas naquela Galeria e inclui alguns textos interessantes, bem escritos e que se afiguram cientificamente correctos, considerando que a Egiptologia é ainda um livro aberto sempre pronto a receber aditamentos e rectificações. Desde 1822, data em que Jean-François Champollion conseguiu decifrar a escrita hieroglífica, e especialmente desde 1922, data em que Howard Carter descobriu o túmulo de Tut-Ankh-Amon, o Antigo Egipto não pára de revelar-nos surpresas e, por isso, não são ainda muitas as coisas que hoje se podem considerar como definitivamente aceites.
Em grande parte das imagens reproduzidas no Catálogo (que é magnificamente ilustrado) não é indicada na legendagem (na página respectiva) a proveniência das obras.
Os textos didácticos do Catálogo, para lá de nos informarem do que imediatamente sabemos, relembram-nos coisas porventura esquecidas e outras quiçá mesmo ignoradas. Por exemplo: os reis do Antigo Egipto só começaram a ser chamados faraós a partir da XVIII Dinastia; a mulher oficial do rei não tinha o título de rainha mas de Grande Esposa Real; os faraós foram sempre homens (com excepção da célebre Hatchepsut, que até é representada com barba para o cumprimento do ritual masculino), salvo na última Dinastia (Ptolemaica) em que existiram algumas Cleópatras; o faraó Pepi II manteve uma relação homossexual com o general Sasenet, comandante do Exército; o cumprimento do princípio da damnatio memoriae, que levava a mutilar estátuas e rasurar inscrições hieroglíficas de faraós que se tinham tornado malditos ou inconvenientes, e tinham sido proscritos, como a "mulher-faraó" Hatchepsut ou os renegados Akhenaton e sua mulher Nefertiti, que não tinham respeitado o maet, o princípio da ordem cósmica.
Paralelamente à Egiptologia, ciência que se dedica a estudar o Antigo Egipto, nasceu a Egiptomania, isto é, a paixão por tudo o que é proveniente do Antigo Egipto e a introdução na vida quotidiana ocidental de imagens, nomes, usos e costumes da antiquíssima civilização. Prática iniciada no começo do século XIX, após a expedição ao Egipto de Napoleão Bonaparte.
Os nomes de muitos reis, e especialmente rainhas, têm sido marcas de produtos, como o já citado preservativo "Ramsés". Mas também cremes de beleza, tintas, roupas, refrigerantes, etc. E o mundo egípcio passou a ser tema de filmes, óperas, bailados ou romances.
O Catálogo assinala de forma particular as diligências de Calouste Gulbenkian para constituir a sua colecção de antiguidades egípcias, iniciada em 1907 com a aquisição de uma tigela preta mesclada de branco proveniente da dinastia ptolemaica. Um ponto de viragem na carreira de coleccionador de Gulbenkian teve lugar com a venda em leilão da Colecção MacGregor, em 1922, onde ele adquiriu muitas obras, e em que Howard Carter foi seu consultor e intermediário.
A valorização do passado do Egipto, e em especial a descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amon, contribuiu poderosamente para expulsar os ingleses que governavam o Egipto (à moda do imperialismo britânico) quase directamente, por intermédio do khediva e do rei, para uma autonomia da República Egípcia, a partir de Gamal Abdel Nasser, ainda que não existam no mundo países absolutamente autónomos [alguns julgam-se independentes, como é o caso do Estados membros da União Europeia, mas é uma fantasia]. Nasser deu o nome de Ramsés ao primeiro automóvel e de Nefertiti à primeira máquina de costura produzidos pela indústria nacional.
A influência do Egipto Antigo reflectiu-se largamente na arte e na literatura, egípcia e europeia. O próprio Naguib Mahfuz, o grande escritor egípcio do século XX, até hoje o único árabe que recebeu o Prémio Nobel da Literatura, escreveu um romance com o título Akhénaton, le renégat. [Mas Mahfuz é um espantoso romancista e nada deve ao Prémio Nobel, que está hoje absolutamente prostituído, além de ter galardoado nas últimas décadas absolutas nulidades e ignorado famosos escritores.]
É também realçada no texto do Catálogo a dualidade da pessoa do faraó. Já num comentário que fiz anteriormente sobre esta Exposição lembrara a célebre obra Les Deux Corps du Roi, de Ernst Kantorowicz, a propósito da pessoa humana, mortal, e da pessoa sagrada, imortal, do rei. Este conceito foi, aliás, adoptado pelas monarquias absolutas da Europa.
O Catálogo também evoca o cisma de Akhenaton e a criação de uma nova capital em Amarna, e tece considerações sobre a família de Tut-Ankh-Amon, cuja genealogia não está, ainda hoje, absolutamente estabelecida. Outra curiosidade são os parágrafos que dedica aos Colossos de Mémnon, duas estátuas gigantes, hoje muito danificadas, em frente ao templo funerário de Amenhotep III, que já não existe.
Transcrevo das páginas 182-183: «A partir do momento em que, no século VII a.C., as populações helénicas estabelecem contactos duradouros com o Egito, e mais ainda quando o vale do Nilo é integrado no reino helenístico dos Ptolemeus e depois no Império Romano, os conhecimentos dos europeus sobre a civilização dos faraós multiplicam-se e aprofundam-se. Contudo, o encerramento dos templos politeístas do Egito no século IV da nossa era e a progressiva cristianização do país assinalam o fim da civilização faraónica, cuja história antiga cai a pouco e pouco no esquecimento. Entre a Idade Média e o século XIX, a Europa e o mundo arabizado conservam apenas a memória dos faraós citados pelos historiadores gregos ou latinos: Heródoto (século V a.C.), Maneton (século III a.C.), Diodoro da Sicília (século I a.C.), Estrabão (século I a.C.- século I), Plutarco (séculos I-II), Eliano (séculos II-III), entre outros. Estes autores, assim como as tradições bíblicas e corânicas, recolhem no Egito e na literatura mediterrânica uma memória deformada dos reis antigos, que se convertem assim em personagens meio históricas, meio lendárias.»
Recordemos que por deficiência de tradução Heródoto chamou Sesóstris a Ramsés II, nome pelo qual foi conhecido durante séculos.
Transcrevo da página 194: «"Pois a maioria engana-se quando afirma que ele [Alexandre] é filho do rei Filipe. Isto não é verdade. Com efeito, não é deste último que ele era filho, mas sim, no dizer dos mais sábios egípcios, filho de Nectanebo, depois de este ter abandonado a função real". Assim começa, com uma contraverdade histórica, o Romance de Alexandre, uma biografia romanceada que glorifica o herói macedónio. Originalmente composta em grego entre finais do século II e inícios do século III, no meio cosmopolita dos letrados de Alexandria, esta obra, cujas últimas versões datam do século XVI, foi objeto de múltiplas cópias e adaptações nas mais diversas línguas: latim, arménio, copta, árabe, hebraico, assim como, por via do persa, tailandês e mongol. Os dodecassílabos em que foi versificada na sua tradução francesa do século XII passaram desde então a ser designados entre nós como "alexandrinos".» O faraó em questão é Nectanebo II, último rei da XXX Dinastia.
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