Sete décadas depois da morte de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), apareceram finalmente os manuscritos de duas obras que o escritor sempre reivindicou, afirmando que lhe haviam sido roubadas quando teve de abandonar a França (1944). A reaparição em circunstâncias extraordinárias das obras fez correr muita tinta e comentei o caso na altura (2021). Trata-se de Guerre, romance situado na Flandres durante a Grande Guerra, com uma parte autobiográfica encastrada na ficção e de Londres, continuação do anterior, quando o herói, Ferdinand, alter ego de Céline, deixa França e vai para Inglaterra. O texto de Guerre, duzentas e cinquenta folhas manuscritas, foi escrito de um jacto, possivelmente dois anos depois da publicação de Voyage au bout de la nuit (1932).
Em Guerre (2022), Céline conta-nos como foi gravemente ferido no braço direito, na Bélgica, evoca-nos o traumatismo da frente de batalha, a sua convalescença, a sua partida para Londres. Pelos seus actos de bravura, Céline foi condecorado com a medalha militar e depois com a cruz de guerra.
A guerra, da qual ficou a sofrer de sequelas durante toda a vida, está omnipresente na vida, e na obra, de Céline. Nunca esquecerá o grave ferimento ocorrido em 27 de Outubro de 1914. Como escreveu, em 1934, na última frase da primeira folha do manuscrito de Guerre: «J'ai attrapé la guerre dans ma tête».
A partida para Inglaterra, em Guerre, é pura invenção. Céline partiu posteriormente para Londres, onde trabalhou no Consulado-Geral de França de Maio a Dezembro de 1915. Saiu de Inglaterra em Maio de 1916, com destino aos Camarões.
Não é possível estabelecer uma concordância exacta entre os acontecimentos vividos por Céline e as evocações dos romances. Voluntariamente, ou por acaso, o escritor baralha as pistas. Tal como as personagens, que ora nos surgem com um nome ou com outro, e transitam de uns romances para outros. Por exemplo, neste romance Bébert aparece também como Cascade, e também se chama Julien Boisson. Ocorre que Bébert era também o nome do gato predilecto de Céline, que o acompanhou no exílio e ao qual Frédéric Vitoux dedicou um livro.
Sendo verdade que Céline é um dos maiores escritores franceses do século XX, quer pelo conteúdo, quer pela forma, também é verdade que esta lhe vai retirando progressivamente leitores. Céline utiliza nas suas obras uma linguagem vigorosa, mesmo violenta, empregando um vocabulário popular e do mais vernáculo calão. Acontece que, com o passar dos anos, muitos dos termos empregados pelo escritor não só caíram em desuso como se tornaram ininteligíveis. Não falando já dos estrangeiros, mesmo os franceses, especialmente os jovens, são incapazes de compreender hoje a prosa céliniana sem auxílio de um apropriado dicionário. Esta a razão por que os editores incluíram em apêndice ao livro não só um "Repertório das Personagens Recorrentes" como um "Léxico da Língua Popular, de Calão, Médica e Militar". E também um motivo por que é muito difícil traduzir Céline e a tradução dos seus livros resulta sempre imperfeita, carecendo sistematicamente de notas. São poucos os seus livros traduzidos em português. De repente, recordo-me de Viagem ao fim da noite e de Morte a crédito.
Oportunamente, e depois de ler Londres, deixarei algumas notas neste blogue.
2 comentários:
É uma excelente notícia a publicação destes dois textos. Seria importante editá-los em Portugal.
Para além dos livros que refere, foram editados em Portugal os livros "Castelos Perigosos" e "Norte" (Ulisseia), faltando o "Rigodon", para completar a trilogia. Outros pequenos textos foram editados pela Hiena e pela Antígona.
Aproveito para agradecer os magníficos textos que regularmente publica no seu blogue.
Cumprimentos cordiais,
PARA O ANÓNIMO DAS 10:23:
Não me recordava das outras traduções.
Agradeço as suas amáveis palavras.
Retribuo cumprimentos.
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