A propósito dos posts que tenho publicado sobre o Egipto faraónico e o centenário da descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, recordei-me de um livro que possuo, e que nunca tinha lido, Akhénaton, le renégat (1985), em árabe العائش فى الحقيقة, Al'ayish fa alhaqiqa, "A vida de facto", traduzindo à letra, de Naguib Mahfuz. Li-o agora. Trata-se de um texto breve, mas interessante, sobre a figura do herético faraó Akhenaton, que é hoje praticamente aceite como sendo o pai de Tut-Ankh-Amun. Aliás, o próprio Mahfuz também não foi um escritor ortodoxo. Alguns dos seus escritos valeram-lhe dissabores, como, por exemplo, o livro : أولاد حارتنا, Awlad haratina, literalmente "As crianças da vizinhança", (em francês, Les fils de la médina, em inglês, Children of Gebelawi), onde estabelece ligações entre as três religiões monoteístas (o judaísmo, o cristianismo e o islão). Este livro, que foi proibido, valeu-lhe ameaças de morte e, apesar de protecção policial, o escritor foi apunhalado na cara em 1994, quando tinha 82 anos e se encontrava fora da sua residência no Cairo. Desde então, Mahfuz ficou fisicamente impossibilitado de escrever várias horas por dia e passou a dispor de guarda-costas em permanência. Essa obra pôde ser finalmente publicada no Egipto, já postumamente, em 2006. Mas a produção literária do escritor diminuiu consideravelmente depois do atentado.
Foi Naguib Mahfuz (1911-2002) um imenso romancista e também o primeiro (e até hoje o único) árabe a receber o Prémio Nobel da Literatura. Autor de vastíssima obra - mais de 50 títulos - o Nobel nada lhe acrescentou, foi o nome dele que honrou o tão desprestigiado Nobel. Diga-se que Mahfuz não se deslocou a Estocolmo para receber o galardão. As viagens desagradavam-lhe e a única capital estrangeira onde se deslocou foi Belgrado, devido ao grande amor que dedicava à Servia. Os seus romances sobre a vida no seu país pintam um quadro realista da miséria física e moral dos seus compatriotas, que ele tão bem conhecia, nomeadamente nos romances que constituem a Trilogia do Cairo, obra-prima da literatura e que foram passados ao cinema com um êxito incomensurável.
Em Akhénaton, le renégat, Mahfuz debruça-se sobre o episódio de Amarna, o tempo em que foi venerado no Egipto o deus Sol, Aton, um culto introduzido pelo faraó Akhenaton (Amenhotep ou Amenófis IV), que transferiu a capital do país de Tebas para Amarna, que passou a ser designada Akhetaton (Horizonte de Aton).
Considerado herético, Akhenaton foi renegado pelas elites e por uma parte do povo, mas especialmente pela classe dos sacerdotes de Amon, que, com a nova "religião", se viram desapossados das suas riquezas e de muito dos seus rendimentos.
No livro, Mahfuz põe em cena o jovem Méri Moun que, viajando com o pai de Saïs para Panopolis, avista as ruínas de Amarna, a cidade ímpia e maldita, onde ainda habitava a rainha Nefertiti. Inquirindo sobre um passado que desconhece, e que lhe suscita o interesse, Méri Moun obtém do pai cartas de apresentação para aqueles que foram testemunhas dos acontecimentos desse tempo "revolucionário" e que sobreviveram, ao contrário do próprio Akhenaton, à queda do culto solar. Isto, porque Méri Moun quer saber a exacta verdade e argumenta que nunca se pode julgar uma causa sem ouvir as duas partes.
No livro, Naguib Mahfuz considera Akhenaton como irmão de Semenkhkare e de Tut-Ankh-Amun, o que não é verdade. Está hoje (quase) confirmado que Semenkhkare e Tut eram filhos de Akhenaton. Desconheceria Mahfuz este grau de parentesco na altura em que escreveu (as investigações mais aprofundadas são recentes) ou estabeleceu intencionalmente tal afinidade? Não sabemos.
Começa Moun por visitar o Grande Sacerdote de Amon, no templo de Tebas, o principal inimigo de Akhenaton, por óbvias razões. O faraó retirara a maior parte dos proventos do culto de Amon, cujos sacerdotes ficaram privados das sua fontes de rendimento. O Grande Sacerdote insiste em descrever Akhenaton como feminino e lascivo, embora inteligente e instruído. Mas considera que o seu reinado foi uma tragédia para o Egipto.
Depois, Moun visita o velho Ay, o sábio conselheiro de Akhenaton, pai de Nefertiti e que viria a suceder no trono a Tut-Ankh-Amun. O velho mestre converteu-se à nova religião mais pelas circunstâncias do que pela convicção.
A seguir, o jovem visita Horemheb, que foi Chefe da Guarda Real e companheiro de juventude do faraó, ao qual estava ligado por sólidos laços de amizade, embora tivessem feitios muito diferentes. Horemheb viria a suceder a Ay no trono e conta ao rapaz a influência de Nefertiti sobre Akhenaton e também a da Grande Esposa Real, a rainha Tiÿ. Mas a inflexibilidade religiosa de Akhenaton leva Horemheb a abandoná-lo, apesar daquele ter nomeado Semenkhkare como co-regente. Akhenaton fica sozinho em Amarna, Nefertiti foge para um palácio fora do centro da cidade, e as altas figuras do reino proclamam Tut-Ankh-Amun como sucessor. Entretanto, Akhenaton adoece e acaba por morrer.
Interrompo a digressão de Méri Moun para dizer que, como é natural, este livro é também uma meditação, e uma mensagem, de Naguib Mahfuz sobre o poder, a religião, as (in)conveniências políticas, o amor, a lealdade, a coragem
Prosseguindo, Moun visita Bek, o escultor, que vive retirado no sul de Tebas e que era filho do grande escultor do tempo de Amenhotep III. Bek , que era da mesma idade de Akhenaton, conheceu este em jovem, e ambos se ligaram de profunda amizade, dir-se-ia mesmo amor. Adorou convictamente o novo deus Aton e foi o responsável pela construção de Akhetaton, no sítio de Amarna, à frente de numerosa equipa de arquitectos e operários. Teria sido mesmo Bek o autor do célebre busto de Nefertiti, hoje em Berlim. Ele acusa a rainha de ter abandonado Akhenaton e, por vingança, ter-lhe-á mutilado o olho esquerdo!
Continuando o périplo, Méri Moun avista-se com Tadoukhépa, filha de Dushratta, rei de Mitanni, que Amenhotep III desposou no fim da vida e que ficou a fazer parte do harém real; Tutu, sacerdote e antigo vizir; Tiï, a segunda esposa de Ay (não confundir com Tiÿ) e mãe de Mut Nédjémet; a própria Mut Nédjémet, que considerava Akhenaton e Nefertiti autênticos heréticos; Méri-Rá, ex-Grande Sacerdote de Aton, que fora um verdadeiro crente no novo deus, talvez um amante do faraó, e agora vivia modestamente sem companhia ou criados; May, comandante do exército; Mahu, chefe da polícia, que fora um simples soldado com quem Akhenaton se cruzou uma vez nos jardins do palácio, de quem gostou, e que mais tarde promoveu para chefiar a polícia, e que foi constrangido por Horemheb a abandonar o faraó no momento final; Nakht, que fora vizir de Akhenaton e se encontrava agora afastado do novo poder; Bantu, o médico pessoal, que continuou a exercer funções no reinado seguinte de Tut-Ankh-Amun, que não conseguiu salvar Tutmés, o irmão mais velho de Akhenaton, nem Mikétaton, a filha de Akhenaton e de Nefertiti.
Finalmente, e graças a uma autorização de Horemheb, Méri Moun consegue visitar Nefertiti, a filha de Ay, que sucedeu a Tut-Ankh-Amun, em cujo reinado é suposto decorrer a acção descrita no livro. A rainha, reclusa no seu palácio, descreve os últimos dias do império de Amarna. Confessa-lhe que a morte de sua filha Mikétaton se terá devido a um sortilégio dos sacerdotes de Amon. E evoca a visita da rainha Tiÿ, que a previne da rebelião iminente se o faraó não arrepiar caminho na sua obsessão por Aton e no seu desinteresse pelas coisas públicas. Mas diz a Tiÿ que o deus não os abandonará. Parece que a sua adoração terá sido sincera e não movida pelo interesse. Recorda também a sucessiva visita de Ay, Nacht e Horemheb, mas nada demoveria Akhenaton. Por isso, Nefertiti afirma que ao abandonar Akhenaton, mudando-se para outro palácio mais isolado em Akhetaton, o fez para tentar que, vendo-se sozinho, Akhenaton cedesse às pressões da corte. Mas nada convenceria o faraó que seria deposto e morreria pouco depois. Tut-Ankh-Amun seria proclamado como novo faraó.
Todas as entrevistas de Méri Moun têm por objectivo a procura da verdade, no meio das mais variadas considerações que as personagens visitadas tecem sobre Akhenaton, umas favoráveis, outras desfavoráveis, mas que apenas a leitura do livro permite elucidar. Foi o faraó um político poderoso ou um verdadeiro crente? Todos enfatizam, todavia, a "religião do amor", que ele não se cansava de proclamar.
Ao regressar a Saïs, Méri Moun conta longamente ao pai o seu périplo. Conta-lhe tudo excepto dois segredos, que o livro regista:
«Ma passion grandissante pour les chants sacrés; et mon admiration profonde pour la belle recluse.»
Como já escrevi, este livro é também um manifesto político e social (e religioso) de Naguib Mahfuz, e este texto sobre acontecimentos no século XIV A.C. do Egipto tem algo a ver com o Egipto do século XX, quando o escritor o concebeu. A XVIII Dinastia (e depois a XIX) foi um período dos mais interessantes da história do Egipto.
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