Há muitos anos que o mundo literário se
debate com uma questão: William Shakespeare terá realmente existido? E se sim,
foi ele que escreveu as peças que lhe são atribuídas? Um debate que ainda não
está encerrado.
Sobre o assunto, Graham Phillips e Martin Keatman
escreveram The Shakespeare Conspiracy (1994), onde avançam algumas
hipóteses de trabalho.
Não sendo possível desenvolver aqui toda a
argumentação dos autores, registaremos alguns factos e a pertinência de certas
conclusões, a partir dos resumos que os próprios autores inserem no final de
cada capítulo. A responsabilidade das afirmações e das conclusões é pois dos
autores da obra.
Segundo a lenda, nasceu William Shakespeare a
23 de Abril de 1564, em Stratford-upon-Avon, filho de um negociante de luvas,
tendo-se casado com Anne Hathaway, aos 18 anos, em Novembro de 1582. Deste
casamento houve três filhos: Susanna, que nasceu em 1583 e casou com o médico
John Hall, e os gémeos Hamnet e Judith, nascidos em 1585. Hamnet morreu em 1596
e Judith casou com o comerciante Thomas Quiney. Shakespeare terá aprendido a
ler e a escrever, frequentou uma escola média, aprendeu latim e numa escola
superior estudou lógica, poesia e história. Começou a sua carreira teatral no
James Burbage's Theatre, em Londres e devido à influência do Conde de
Southampton tornou-se actor a tempo inteiro e finalmente dramaturgo. Em 1592, o
famoso Robert Greene, afirmou que Shakespeare era potencialmente o seu maior
rival. Em 1593, apareceu o seu primeiro poema Venus and Adonis,
patrocinado por Lord Southampton e nos anos seguintes escreveu mais 150 poemas.
Em 1595, era um dos maiores dramaturgos do seu tempo. Nos vinte anos seguintes
foi autor de pelo menos 37 peças. Nos anos 1590 adquiriu uma importante posição
financeira na companhia Burbage e em 1599 comprou parte do recentemente
construído Globe Theatre, em Southwark. Já em 1597 comprara New Place, a
segunda maior residência de Stratford. Em Maio de 1599, a companhia de
Shakespeare transferiu-se para o Globe e em 1603 a mesma foi distinguida por
Jaime I com o título The King's Men. Em 29 de Junho de 1613 o Globe ardeu, mas
apesar de reconstruído Shakespeare retirou-se para Stratford. Do seu retiro
tranquilo voltava a Londres muitas vezes para beber um copo e conversar sobre
literatura com os poetas seus amigos Ben Johnson, John Donne e Francis
Beaumont, na Mermaid Tavern, por trás da Catedral de São Paulo. Morreu em 1616,
com 52 anos, sendo enterrado na Stratford's Holy Trinity Church. Foi não só um
génio literário como um próspero comerciante. Homem de fino trato, sem
inimigos, revelou-se um esposo dedicado e um pai extremoso.
Isto é o que reza a lenda, e que satisfaz a
indústria turística de Stratford-upon-Avon, em Warwickshire, com milhões de
visitantes anuais. Confrontemos com a realidade.
Em primeiro lugar, não é certo que tenha
nascido a 23 de Abril, mas tão só que foi baptizado a 26, segundo os registos
da paróquia, com o nome de Gulielmus Shaksper. Aparece ao longo do tempo com
outras grafias, como Shakspere, Shaksp, Shakspe e também William, Willm,
Wiliam, em combinações alternativas. Também não existe dele um único registo
histórico depois do baptismo até ao seu casamento com Anne Hathway, em 1582.
Aliás, a sua paixão por Anne é mítica. Shakespeare terá sido obrigado a casar
com ela, pois foi emitida uma licença de casamento em Worcester, em 27 de
Novembro de 1582, em nome de uma misteriosa Anne Whately, de Temple Grafton, e
no dia seguinte o nome passou para Anne Hathway, de Stratford. Esta já estava
grávida de Shakespeare e a filha foi baptizada seis meses depois do casamento.
Não há evidência de que Shakespeare estivesse envolvido no teatro em Londres e
os únicos registos conhecidos desde o seu casamento aos 18 anos até por volta
dos 30 anos são os nascimentos dos filhos e um documento relativo à mãe. Também
não há relatos da sua carreira de actor, embora apareça à frente dos principais
actores no First Folio das suas peças, de 1623. Igualmente não existe
referência a ter sido considerado um génio pelos seus contemporâneos. Os últimos
anos da sua vida são um mistério completo. O que é tido por certo é que foi
sepultado na Holy Trinity Church, em Stratford, em 25 de Abril de 1616.
Antes da publicação de Venus and Adonis,
quando ele tinha 29 anos, nada se sabe da sua carreira, excepto uma certa
familiaridade com o Conde de Southampton. Por volta dos 30 anos, parece ter
estado ligado como escritor/actor aos Lord Chamberlain's Men e que as suas
peças foram representadas perante a rainha. Aos 34 anos anos possuía 10% do
Globe Theatre e tinha escrito pelo menos 14 peças. O escritor Francis Meres
considerou-o um dos melhores dramaturgos ingleses e suficientemente rico para
comprar uma segunda grande casa em Stratford. Aos 39 anos a sua companhia
tornou-se The King's Men e as suas peças foram representadas perante Jaime I.
Aos 44 anos, tornou-se sócio do Blackfriars Theatre e foram publicados os seus Sonnets.
Até cerca dos 44 anos, Shakespeare parece ter habitado a maior parte do seu
tempo em Londres, mudando várias vezes de residência. Mas além de ter adquirido
uma casa em Blackfriars (na qual nunca terá habitado), não existe virtualmente
registo dele na capital. A documentação que lhe sobreviveu regista meramente a
sua actividade comercial de rico proprietário. A sua fortuna proviria dos seus
negócios em Stratford e da sua actividade teatral. Não se sabe se continuou a
escrever quando se retirou para Stratford, mas por volta dos 52 anos tinha
escrito 37 peças, 154 sonetos e dois poemas.
Um exame mais atento da vida de Shakespeare
leva-nos a concluir que ele viveu duas vidas separadas e diferentes: uma em
Londres como dramaturgo e outra em Stratford como comerciante de cereais. E que
os seus próximos em cada localidade ignoravam a outra vida. Em 1600, as
autoridades tiveram dificuldade em o localizar em Londres ignorando que ele
tinha residência permanente em Stratford (?). Não há registo de que fosse
conhecido em Stratford como escritor ou homem de teatro ou que fosse alguma
pessoa notável, excepto pela sua fortuna. Não existe qualquer manuscrito
original e da sua mão conhecem-se apenas seis assinaturas, três no seu
testamento e três em outros documentos legais. Também não possuímos referência
quanto à sua educação nem qualquer carta sua foi encontrada. Mesmo o memorial
do seu túmulo, mostrando um homem com uma pena e um pergaminho, é uma
substituição do século XVIII. Há dois desenhos anteriores que são muito
diferentes, figurando-o especialmente como um comerciante. Ainda que os
registos existentes apontem no sentido de que o Shakespeare de Stratford e o de
Londres eram dois homens diferentes, o facto de Shakespeare chamar companheiros
a homens como John Heminge, Richard Burbage e Henry Condell, que foram seus
sócios no teatro, prova não só que os conhecia mas que eram seus colegas.
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First Folio
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Porque parece ter faltado a Shakespeare a
necessária experiência para ter escrito as peças que lhe são atribuídas, outros
têm sido propostos como verdadeiros autores. A primeira alternativa como autor
respeita ao advogado e político isabelino Francis Bacon, ainda que desde o
século XIX esta teoria esteja desacreditada. Sustenta a Teoria Baconiana que
Bacon nunca pretendeu ser político mas poeta dramático, só tendo seguido aquela
carreira por vontade dos pais. Mas sendo a carreira de dramaturgo nociva à sua
posição na Corte, ter-se-ia servido do nome do actor William Shakespeare para
publicar as obras no seu nome. Sendo
suposto que Shakespeare não tinha a educação ou a experiência política para ser
autor das obras, sustentam os Baconianos que Bacon, com a sua carreira de
político, historiador e filósofo, possuía obviamente o adequado background. Acrescentam que o
conhecimento do direito e da poesia de Bacon eram notáveis e que o mesmo terá sido
o autor de Venus and Adonis e The Rape of Lucrece. No fim do século
XIX, o advogado americano Ignatius Donnelly afirmou que Bacon deixara menagens
secretas nas peças de Shakespeare, sendo a mais importante uma mensagem
decifrada usando letras ao lado das palavras começadas com as letras do nome de
Bacon. Assim,
em Henry IV: Part I lê-se: “Shakst
spur never writ a word of them”. Em 1888,
depois de ler a reivindicação de Donnelly o reverendo J. Nicholson empregou o
mesmo sistema no texto usado por Donnell e chegou à mensagem “Master William
Shhakespeare writ the plays”. Não há hoje evidência de que a autoria das peças
deva ser atribuída a Bacon que teve uma vida pública activa longe do teatro e
chegou a atacar o teatro dramático seu contemporâneo. Além disso, quando em
1614 The King’s Men apelaram a Jaime I para lhes permitir estabelecer um teatro
num novo local e Jaime I referiu o assunto aos Commissioners for Suits, de que
Bacon era um deles, este opôs-se firmemente. Sendo The King’s Men a companhia
de Shakespeare, tal não seria provável se fosse Bacon o verdadeiro autor das
peças.
Desde a Primeira Guerra Mundial que surgiram
dois novos autores alternativos: os condes de Derby e de Oxford. Contudo, tal
como no caso dos Baconianos, ambas as hipóteses falharam por falta de provas
evidentes. Em 1919, o professor francês Abel Lefranc sugeriu que o verdadeiro
autor era William Stanley, sexto conde de Derby, um nobre que também pretenderia
separar o seu nome da autoria das peças. Há apenas uma referência em duas
cartas de 30 de Junho de 1599, escritas pelo espião jesuíta George Fenner,
quanto a Derby gostar de escrever comédias para actores. Outra controvérsia
surgiu em 1920, quando John Looney iniciou o caso Oxoniano. Assim, teria sido
Edward de Vere, sétimo conde de Oxford, o autor, tese depois modificada para o
apresentar como chefe de um grupo que produziria as peças em joint venture. O conde presidiria a um
grupo secreto de poetas que escreveria para a rainha Isabel I. Este argumento é
inconsistente pois se escreviam para a rainha não precisavam de um nome falso.
Francis Mere, no seu Palladis Tamia,
de 1598, afirma que Oxford escreveu comédias e que estas figuravam entre as
melhores. Meres é realmente aceite como um notável crítico da época, mas ele
também menciona na sua obra uma lista das peças de Shakespeare. Logo, Meres não
acreditaria que Oxford e Shakespeare fossem o mesmo autor. Um poderoso
argumento elimina Oxford como autor das peças de Shakespeare. Na dedicatória a
Lord Southampton da primeira obra publicada de Shakespeare, Venus and Adonis, o autor refere-se ao
seu patrono como “so noble a god-father”. É difícil imaginar Oxford
referindo-se a Southampton em tais termos. Não só porque Lord Oxford tinha uma
posição mais elevada do que Southampton, mas porque quando foi publicado Venus and Adonis Southampton era
adolescente e Oxford tinha 44 anos.
Em 1955, o jornalista canadiano Calvin
Hoffman afirmou que as obras atribuídas a Shakespeare tinham sido escritas pelo
dramaturgo isabelino Christopher Marlowe, o que se afigurava improvável, pois
tal implicaria que Marlowe estivesse vivo quando a maior parte das peças foi
escrita, a menos que a sua morte, como ele supõe, tivesse sido encenada. Em
Abril de 1593, o Conselho Privado prendeu o dramaturgo Thomas Kyd, por
suspeição de literatura sediciosa. O Conselho considerou que os seus textos questionavam
a autoridade da Igreja Protestante. Kyd negou as acusações, declarando que os
papéis tinham sido escritos por Marlowe, quando tinham trabalhado em conjunto
dois anos antes. Em 18 de Maio, Marlowe foi convocado mas o testemunho de Kyd
foi julgado insuficiente, até porque Marlowe tinha amigos poderosos, entre os
quais Thomas Walsingham (com quem manteria uma relação homossexual), que era
primo de Francis Walsingham que fora secretário de Estado responsável pela
criação dos Serviços Secretos isabelinos. Francis morrera em 1590 mas Thomas
conservara uma posição influente nos Serviços Secretos. No fim de Maio, o
Conselho ouviu outras pessoas que depuseram contra Marlowe. Perante a sua
prisão iminente, às 10 horas da manhã do dia 30 de Maio, Marlowe encontrou-se
com três indivíduos seus conhecidos numa taberna de Deptford: Nicholas Skeres,
Robert Poley e Ingram Frizer. Segundo as testemunhas da cena, houve uma
discussão sobre o pagamento da conta, o ambiente aqueceu e Marlowe puxou de um
punhal para atacar Frizer mas na confusão a arma foi desviada contra a cabeça
de Marlowe, matando-o instantaneamente. Frizer foi detido mas ilibado depois,
argumentando tratar-se de legítima defesa. Segundo Hoffman, Thomas Walsingham
decidira salvar o seu amigo Marlowe da forca, encenando a sua morte. Walsingham
contratara os parceiros da bebida para simularem a morte de Marlowe em legítima
defesa e arranjara um outro corpo em substituição, subornando o médico legista
para esconder a verdade. Marlowe viveria depois em segredo, usando o nome do
actor William Shakespeare (com quem trabalhara no Shoreditch Theatre) para figurar
como autor das suas peças. É muito possível que os três parceiros de bebida,
únicas testemunhas do crime, trabalhassem para Thomas Walsingham. Poley e
Skeres tinham pertencido aos Serviços Secretos e Frizer fora empregado de
Walsingham. Mas ainda que Walsingham pudesse ter perpetrado a morte de Marlowe
para evitar qualquer incriminação por parte do dramaturgo, é muito improvável
que o assassinato fosse uma fraude. Não há registo de como o Conselho Privado
encarou a morte de Marlowe, mas sendo a rainha informada, certamente desejariam
verificar a identidade do corpo, que foi imediatamente sepultado na St.
Nicholas Church, em Deptford. Para o caso de um corpo de substituição, com
certeza Walsingham planearia uma forma mais segura de “morte”. Durante um ano,
Hoffman viveu na esperança de que a prova da sua teoria se encontraria no
túmulo de Thomas Walsingham na St. Nicholas Church, em Chislehurst (Kent). Não
é claro o que ele esperava encontrar, mas quando finalmente recebeu autorização
para abrir a sepultura em 1956 ficou desapontado. Não continha o corpo de
Marlowe nem nada relacionado com as peças de Shakespeare.
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Shakespeare: Retrato de Chandos
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Parece que Shakespeare começou a sua carreira
a escrever para os Lord Strange’s Men no fim dos anos 1580, ligando-se ao
Burbage Theatre em Shoreditch, quando as duas companhias se juntaram à volta de
1590. Depois do seu casamento em 1582, só há três registos pertencentes a
Shakespeare, antes da publicação de Venus
and Adonis, em 1593. Destas breves alusões pode deduzir-se que ele estava
presente em Stratford pelo menos até ao Verão de 1584. A sua vida na década
seguinte é um mistério. Ainda que publicado anonimamente, Titus Andronicus em 1594 é incontestavelmente a primeira edição
sobrevivente de qualquer peça de Shakespeare. A sua folha de rosto mostra que
fora originalmente escrita para o patrono do teatro Lord Strange no final dos
anos 1580, que poderá ter sido o seu primeiro patrono. Ora se Shakespeare fazia
parte dos Lord Strange’s Men por volta de 1590, certamente conheceria Marlowe
que trabalhava na mesma companhia. Esta estreita associação entre os dois
dramaturgos beneficiaria certamente Shakespeare pelo facto de estar a trabalhar
com o mais famoso dramaturgo do tempo. Isso explica porque é evidente a mão de
Marlowe nas primeiras obras de Shakespeare, Henry
VI e Titus Andronicus. Uma
explicação possível para a associação de Shakespeare com Lord Strange pode
encontrar-se na obra de Ernst Honigmann, Shakespeare:
The Lost Years, publicada em 1985. Em Preston (Lancashire), Honigmann
descobriu a existência de um jovem preceptor chamado William Shakeshafte, que
terá sido empregado do proprietário rural católico Sir Thomas Hesketh. Ainda
que não conseguisse prová-lo, Honigmann acredita que se tratasse de
Shakespeare. O nome é extraordinariamente parecido e o homem aparece e
desaparece durante os anos ausentes de Shakespeare. A ser verdade, isso explica
a proximidade de Shakespeare a Lord Strange; Sir Thomas Hesketh era um amigo próximo
do 4º conde de Derby, o pai de Lord Strange. Por volta de 1593, parece que os
Lord Strange’s Men se fundiram com o Burbage Theatre, em Shoreditch. Em
primeiro lugar, a companhia de Strange estava representando quase
exclusivamente no Theatre, nesse tempo. Em segundo lugar, quando Strange morreu
em 16 de Abril de 1594, Lord Hundson, primo da rainha, apadrinhou imediatamente
os actores do Burbage, que passaram a ser The Lord Chamberlain’s Men. Assim,
Strange foi certamente o anterior patrono e Shakespeare juntou-se aos actores
do Burbage no tempo da sua associação com Strange. Na Primavera de 1594, Lord Strange foi
suspeito de ateísmo e o caso chegou ao Conselho Privado. Alguns dias mais
tarde, talvez com a esperança de salvar o pescoço, Strange escreveu ao secretário
de Estado William Cecil, dizendo que sabia de uma conspiração contra o Governo.
Contudo, Strange, antes que pudesse encontrar Cecil, sofreu uma morte
horrorosa. A sua morte, em 16 de Abril, sugere que foi envenenado com arsénio.
A estranha morte de Strange está rodeada de circunstâncias que lembram o
assassinato de Marlowe, podendo as duas mortes estar relacionadas. Ambos tinham
trabalhado juntos e ambos foram investigados pelo Conselho Privado por alegado
ateísmo. Ambos poderiam implicar terceiros e ambos morreram em circunstâncias
suspeitas antes de poderem testemunhar.
Supõe-se que Shakespeare, através de Marlowe
e Strange, estaria envolvido num grupo de ateístas sediciosos, dirigido pelo
explorador e político Sir Walter Ralegh. As investigações do Governo sobre este
grupo podem explicar, talvez, a discrição de Shakespeare em Londres. Em 1592, o
padre católico exilado Robert Persons citou “the popular school of atheism of
Walter Ralegh”. No Outono do mesmo ano, foi impresso em Londres um folheto
intitulado “An Advertisement written to a Secretary of my Lord Treasurer’s of
England” que também atacava a “school of atheism” de Ralegh. Em 1592, Giordano
Bruno referiu-se a essa escola como uma primeira experiência. Aparentemente, os
encontros organizados por Ralegh começaram no princípio de 1585. Em 10 de Março
de 1593, uma carta do poeta George Chapman foi interceptada pelo Conselho Privado.
Dizia respeito ao grupo que se encontrava regularmente em casa de Ralegh em
Sherborne (Dorset). Na carta, Chapman referia-se às discussões sobre ateísmo,
implicando Christopher Marlowe e Lord Strange. Enquanto se debruçava sobre
essas acusações de ateísmo (um crime capital nos tempos isabelinos) o Conselho
recebeu o Baines Report sobre Christopher Marlowe, que sugeria que este estava
familiarizado com esse grupo. Houve outras pessoas que afirmaram sob juramento
que existia uma ligação de Marlowe aos ateístas de Ralegh. Sabemos, através de
um relatório sobre as actividades do agente dos Serviços Secretos Richard
Cholmeley, que este fora instruído pelo Conselho Privado no sentido de espiar
Marlowe, por volta de Maio de 1593. Nesse relatório, Cholmeley afirma que
Marlowe é um membro activo do grupo. Também o dramaturgo Thomas Kid,
interrogado pelo Conselho Privado na Primavera de 1593, ligou Marlowe a esse
grupo. Em Abril de 1594, parece que as reuniões do grupo terminaram, não
existindo relatórios posteriores sobre as actividades ateísticas de Ralegh. Com
toda a probabilidade, a rainha terá ordenado ao Conselho Privado para cessar as
investigações, ordenando a Ralegh para se concentrar na sua próxima expedição à
América do Sul. Ainda que não haja qualquer ligação conclusiva de Shakespeare
ao próprio Ralegh, parece evidente uma associação entre ambos. No punhado de
nomes associados à “school of atheism” de Ralegh, dois nomes parecem estar
estreitamente ligados a Shakespeare: Marlowe e Strange. Em Love’s Labour’s Lost, Shakespeare parece referir-se-lhe como
“school of night”, um nome desde sempre aplicado ao grupo. Também parece que
Ralegh esteve rodeado de dramaturgos que preenchiam uma função essencial. Num
tempo em que os mass media não
existiam, o teatro era virtualmente o único meio de alcançar uma vasta
audiência. Quando Marlowe, provavelmente o mais importante dramaturgo de
Ralegh, morreu em 1593, Shakespeare terá sido chamado para o substituir como um
elemento importante na disseminação das ideias do grupo. O misterioso estilo de
vida de Shakespeare é parcialmente compreensível se ele tiver sido um dos
dramaturgos de Ralegh. Assim sendo, os anos 1590 terão sido para ele
angustiantes, receando sempre ser preso por ordem do Conselho Privado. Isso
explicaria a discrição de Shakespeare em Londres. Explicaria também porque
estando abertamente envolvido numa companhia de teatro, o seu nome raramente
seja associado à representação das suas peças quando representadas pela
primeira vez.
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Marlowe |
Christopher Marlowe nasceu em Canterbury em
1564. Com 16 anos ingressou no Corpus Christi (Cambridge), obtendo o seu BA
três anos mais tarde e começado um MA em 1587. Com os seus contactos de
Cambridge e consequente círculo de amigos ricos, Marlowe entrou com facilidade
no mundo do drama, mudando-se para Londres para iniciar a sua carreira teatral.
Uma coisa que temos como certa é que se encontrava a trabalhar com Lord Strange
nos primeiros meses de 1592. Como as primeiras peças de Marlowe foram
inicialmente representadas pelos Lord Admiral’s Men, a sua associação com
Strange pode ter começado quando as duas companhias se fundiram cerca de 1590.
Várias indicações na vida de Marlowe sugerem que ele já se encontrava associado
ao grupo de Ralegh muito antes de 1590. Através do seu amigo, o poeta Thomas
Watson, Marlowe terá sido introduzido nos Serviços Secretos pelos seus agentes
Thomas Walsingham e Robert Poley. Este aparece pela primeira vez no Clare
College (Cambridge), em 1564, onde é recordado como recentemente casado com uma
filha de Watson, do que se conclui que Poley era genro de Watson. Em 1583,
Poley é evocado como vivendo numa casa pertencente a Francis Walsingham, em
Barn Elms, sendo descrito como estando a trabalhar com o dramaturgo Sir Philip
Sydney, genro de Francis Walsingham. A associação de Poley com a família de
Walsingham pô-lo em contacto com Thomas Walsingham em 1586, quando trabalhava
com ele ajudando-o a descobrir a Conspiração de Babington (Babington Plot) para
assassinar a rainha. Através de Watson, Poley e Thomas Walsingham, Marlowe foi
também aliciado para os Serviços Secretos como correio. Em 1587, viajou por
toda a Europa, sendo mencionado em despachos para a Secretaria de Estado
provenientes de Utreque, em 2 de Outubro desse ano. É novamente referido como
mensageiro entre o Governo e o embaixador britânico em Paris, em 1592. Em tudo menos
no nome Marlowe trabalhava como espião para os Serviços Secretos. Como correio,
esperava-se dele não só que transportasse mensagens mas que relatasse a
situação nos países que visitava. O contacto original de Marlowe com o círculo
de Ralegh foi feito inicialmente através de Philip Sydney, que era desde 1583 o
patrão de Poley. Marlowe conheceu-o provavelmente muito cedo, e Sydney era
amigo de longa data de Fulke Greville, em cuja casa tinham lugar as reuniões de
Ralegh. O teólogo italiano Giordano Bruno foi amigo chegado de Sydney e
menciona-o relacionado com tais reuniões. É possível que Shakespeare se tenha
envolvido com Marlowe e a School of Night através do editor Richard Field.
Durante o interrogatório pelo Conselho Privado relativo às actividades de
Marlowe, Thomas Kyd citou alguns membros da School of Night incluindo “some
stationers in [St] Paul’s Churchyard”. Ainda que houvesse outros “papeleiros” a
trabalhar em St. Paul’s Churchyard nesse tempo (era o centro do comércio de
livros em Londres), não subsistem dúvidas de que era a Richard Fields que Kyd
se referia. No início do seu testemunho Kyd refere que eles se encontram por
baixo de “the sign f the White Greyhound”. Ora o pub Greyhound era precisamente o local onde eram vendidos os livros
de Field, como indicado na capa de Venus
and Adonis. Por meio de Field, temos uma relação directa entre o círculo de
Ralegh e William Shakespeare.
A associação entre Shakespeare e o grupo de
Ralegh responde a numerosas perguntas até aqui sem resposta. E fornece uma
ligação entre a sua vida em Stratford e a sua vida em Londres. Explica a sua
entrada no mundo do teatro e oferece um cenário sustentável relativamente à sua
educação e conhecimentos. A única relação demonstrável de Shakespeare com
Londres antes da sua carreira teatral é Richard Field, seu editor no princípio
dos anos 1590. Sobreviveram registos suficientes das publicações de Richard
Field que permitem descobrir muito da sua vida. Fez a sua aprendizagem com
Thomas Vautrollier, huguenote francês de Rouen, e quando este morreu em 1587
casou com a sua viúva Jacqueline, herdando o seu negócio em Blackfriars. As
escrituras de propriedade e as transacções comerciais que sobreviveram da
empresa de Blackfriars mostram claramente a aprendizagem de Field e a sua vinda
de Stratford para Londres. Em Stratford também se encontram registos de Richard
Field. Nasceu em 1561, filho de Henry Field, um curtidor vivendo em Bridge
Street, muito perto da casa de Shakespeare em Henley Street. Certamente que
Shakespeare conheceu Field, não só porque eram aproximadamente da mesma idade
mas porque os seus pais trabalhavam ambos em produtos de couro. Além disso,
quando Henry Field morreu em 1592, o pai de Shakespeare ajudou a valorizar a
sua propriedade. Field estava já trabalhando bem como editor em 1585 e em 1587
herdou o negócio. É possível que Shakespeare tenha sido convidado a trabalhar
nas publicações de Field referentes a Bishopsgate. Os registos de aprendizagem
são incompletos e por isso não sabemos os nomes da maior parte dos empregados
de Field. Contudo, é possível que Shakespeare tenha começado a sua vida em
Londres como aprendiz de impressão trabalhando com Richard Field. Ao trabalhar
na companhia de Field, Shakespeare não só terá ganho a indispensável
experiência comercial como penetrou no âmago do mundo da literatura: imprimir,
publicar e vender. Além disso, rodeado por muito diferentes géneros de
publicações, pôde aprender como deveria prosseguir. Editando obras para
publicação, ganhou gradualmente uma vasta experiência de estilo, conteúdo e
gramática, não proporcionada aos poetas académicos. Também terá aprendido a
mais importante de todas as lições: o que se vende. Shakespeare tornou-se o
dramaturgo com o maior sucesso no mundo não só porque foi o melhor escritor mas
porque sabia o que o povo queria. A casa do amigo de Ralegh, Henry Percy,
Petworth House, no Sussex, pode dar-nos a solução para a educação de
Shakespeare. Na sua casa, Percy tinha reunido uma imensa biblioteca para saciar
a sua sede de conhecimento. Inventários daquele período mostram que ela
continha mais de 2.000 livros - um número enorme para a época – e era
considerada uma das melhores no género em qualquer lugar do país. A biblioteca albergava
alguns dos livros mais estudados de então: livros de história, politica,
matemática, filosofia e da nova geografia. Continha também muitos dos clássicos
da antiga Grécia e de Roma. Em consequência, incluía quase tudo o que era
necessário para suportar as obras de William Shakespeare. Muitos dos outros
poetas amigos de Percy usavam a biblioteca enquanto escreviam as suas obras. Em
Outubro de 1599, quando Shakespeare é procurado pelos cobradores de impostos da
paróquia londrina de St. Helen, é localizado em Sussex. As autoridades parecem
estar certas do seu paradeiro, porque a taxa foi finalmente cobrada pelo bispo
de Winchester, que tinha jurisdição fiscal sobre todos os assuntos
eclesiásticos no condado de Sussex. Com o Globe Theatre aberto recentemente e
uma procura de novas peças, Shakespeare teria gasto um ano em Petworth
escrevendo novas obras.
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William Cecil
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O facto de Shakespeare ter conservado em
segredo o seu trabalho em Londres relativamente à sua vida em
Stratford-upon-Avon pode dever-se ao desejo de proteger a sua família. A
associação ao grupo de Ralegh e um possível plano para derrubar o
primeiro-ministro William Cecil podiam justificar uma acção contra o
dramaturgo. A educação de Shakespeare, os seus anos de ausência, a sua ligação
inicial ao teatro concorrem de alguma forma para explicar a sua discrição.
Contudo, não resolvem o mais estranho de todos os mistérios. Porque não aparece
ninguém em Stratford que conhecesse mesmo que remotamente a sua carreira de
poeta-dramático. A única explicação possível para este mistério é que o próprio
Shakespeare quis que assim fosse. Mas porque embarcar nesta política de
cancelamento? A resposta só pode estar no desejo de proteger a sua família. Há
aspectos da sua obra como dramaturgo que poderiam comprometê-la. Este mistério
assenta no facto do seu envolvimento com a School of Night e a aliança entre
Walter Ralegh e os Serviços Secretos de Walsingham. Por volta de 1570, Francis
Walsingham tornou-se secretário de Estado e membro do Conselho Privado. Como
protestante puritano, desejou garantir que a Grã-Bretanha não regressasse ao
catolicismo, e com essa finalidade utilizou os Serviços Secretos como seu
principal instrumento, estabelecendo uma rede de espiões e informadores para
descobrir conspirações católicas no país e no estrangeiro. Depois da morte de
Francis Walsingham, em 1590 os Serviços Secretos tornaram-se uma coisa muito
pouco honesta, dirigidos por Thomas Walsingham, primo de Francis. O
primeiro-ministro e Lord Grande Tesoureiro William Cecil, ficou compreensivelmente preocupado
com o poder deles e percebendo as suas potencialidades tentou passá-los para a
sua esfera de controlo. Foi por esta
altura, no princípio dos anos 1590, com Thomas Walsingham tentando manter a sua
influência sobre os Serviços Secretos, que ele e Ralegh encontraram um
adversário comum: William Cecil. Porém este não entendeu extinguir os Serviços
Secretos mas tão só destrui o seu inimigo Walter Ralegh. O grupo de ateístas
suspeitos compreendia Ralegh, Percy, Hariot, Marlowe, Sidney, Bruno, Greville,
Strange, Chapman, Warner , Toydon e possivelmente Field. Quatro dos associados
a Walsinghsm, Marlowe, Sidney, Roydon e Chapman, estavam envolvidos com Ralegh.
Marlowe era inquestionavelmente um agente de Walsingham e Sidney e Roydon
provavelmente também o eram. Em Março de 1594, Lord Strange escreveu a Cecil
informando-o de que tinha conhecimento de uma evidente conspiração contra o seu
governo, sendo Ralegh e Walsingham os mais provavelmente envolvidos. Contudo,
antes que se pudessem encontrar, Strange adoeceu gravemente, com sintomas de
envenenamento por arsénico. Como Shakespeare estava intimamente ligado a
Marlowe e a Strange, que morreram em circunstâncias estranhas, teve razões para
se sentir ameaçado.
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Francis Walsingham
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No final dos anos 1580, o Secretário de
Estado Francis Walsingham recrutou alguns poetas dramáticos para actuarem como
espiões e informadores. Em 1593, muitos dos colegas mais íntimos de Shakespeare
estavam a trabalhar como agentes dos Serviços Secretos isabelinos. Também
Shakespeare? Eles possuíam as qualificações necessárias para a espionagem: eram
instruídos e falavam várias línguas. Marlowe esteve envolvido como correio,
Watson como espião. Outros dramaturgos foram certamente agentes de Walsingham,
como Sidney, Roydon e Chapman. O dramaturgo Anthony Munday tornou-se mesmo um
super-espião. Esteve em Reims, em 1580, intrigando para capturar o chefe dos
Jesuítas ingleses, Edmund Campion, que foi induzido a regressar a Inglaterra,
onde foi lançado no seio de uma conspiração. Acreditando ir encontrar-se com os
seus colegas católicos, Campion foi preso logo que chegou a Inglaterra, sendo
enforcado em 1581. Munday assistiu à execução, descrevendo alegremente o facto
no seu diário. Mais tarde, Munday gabou-se dos seus feitos em Reims e
publicou-os em The English Romain Life. Em
consequência das actividades de Munday acabou por ser enforcada uma dezena de
sacerdotes. Finalmente, Munday escreveu aos The Lord Admiral’s Men indicando
que Shakespeare trabalhara com ele no Sir
Thomas More quando os The Lord Admiral’s Men e Lord Strange’s Men se
fundiram no princípio dos anos 1590. Marlowe e Munday foram pois dois colegas
próximos de Shakespeare. O envolvimento de Lord Strange ocorreu no período dos
agentes duplos, a seguir à morte de Francis Walsingham. Entre 1590 e 1594,
agentes dos Serviços Secretos fizeram defecção do campo de Cecil. Em 1594,
apenas uma mão cheia dos mais leais não tinha desertado do campo de Thomas
Walsingham. Em 27 de Setembro de 1593, o latifundiário católico Richard Hesketh
chegou a casa de Lord Strange, que acabara de se tornar conde de Derby, para o
convidar a juntar-se a um projectado levantamento católico. Hesketh conhecia
Strange há muitos anos. Como o pai de Strange era católico, Hesketh assumiu que
o filho simpatizaria com a causa. Strange levou Heskith a acreditar que ele
consideraria devidamente o caso, embora, pelo contrário, informasse William
Cecil do facto. É muito possível que Strange trabalhasse na mesma qualidade,
como informador de Cecil, quando parece ter traído Ralegh e/ou Walsingham em
Março de 1594. Depois da morte de Strange, em 1594, não mais se ouviu falar da
School of Night. Walsingham demasiado novo e inexperiente para enfrentar um
homem como Cecil, entregou o jogo aos Serviços Secretos, A luta pelo poder fora
ganha por William Cecil, que se tornou o homem mais influente de Inglaterra. Assim,
três dos mais importantes colegas de Shakespeare, no princípio de 1590,
estiveram profundamente envolvidos nos Serviços Secretos: Marlowe, Munday e
Strange. Não só foram seus mentores como seus patronos e certamente os
indivíduo que lançaram a sua carreira. Shakespeare esteve rodeado de espionagem
por todos os lados. As circunstâncias sugerem o seu envolvimento. A carreira de
Shakespeare iniciou-se quando a luta de Cecil/Ralegh/Walsingham estava no auge,
nos começos de 1590. Quando Marlowe morreu, a obra de Shakespeare foi
imediatamente patrocinada por Southampton, favorito da rainha. Quando Strange
morreu, a sua companhia foi apadrinhada por Lord Hundson, camareiro da rainha.
Estes os primeiros factos que garantiram o sucesso de Shakespeare. Teria o
patrocínio de Southampton e Hundson sido influenciado por alguém capaz de
exercer pressão além da rainha: William Cecil?
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Walter Ralegh
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Em 28 de Agosto de 1593, foi despachado um
comunicado de Willim Cecil para o seu agente Edward Kelly em Praga. O conteúdo
da carta é desconhecido, ainda que o pagamento ao mensageiro, chamado William
Hall, esteja registado pelo Tesoureiro da Câmara. Com diversas ortografias, o
mesmo nome aparece muitas vezes associado aos Serviços Secretos, e em cada
ocasião há sempre uma relação com Shakespeare. Terá sido William Hall um nome
falso utilizado por William Shakespeare como agente dos Serviços Secretos? Em
17 de Junho de 1592, a um “Will Hall” foram pagas £ 10 por espionagem com
Anthony Munday, e em 19 Março de 1596 o Tesoureiro da Câmara pagou £ 15 a “Hall
e Wayte” por “mensagens” enviadas da Holanda para a Secretaria de Estado. Se
este é o mesmo Hall, há duas associações com colegas de Shakespeare. Em
primeiro lugar é conhecido que Shakespeare trabalhava com Munday cerca de 1592.
A peça Sir Thomas More data desse
tempo e a companhia de Munday, The Lord Admiral’s Men, já tinha sido fundida
com Lord Strange’s Men. Em segundo lugar, Shakespeare foi associado a um homem
chamado Wayte em 1596, que é precisamente o ano em que os papéis de Queen’s
Bench registam que um William Wayte desejava garantias de paz em relação a
William Shakespeare. O trabalho de Shakespeare como correio podia explicar o
aparente conhecimento de cultura estrangeira mostrado em muitas peças. De
facto, numa ocasião em que o agente Hall aparece, ele tinha exactamente regressado
da Dinamarca. Em 2 de Outubro de 1601, um “Willm Halle” é mencionado por um
funcionário da Secretaria de Estado como tendo regressado com informações da
Dinamarca. Isto apresenta outra possibilidade de ligação a Shakespeare. Hamlet foi escrito cerca de 1601 (foi
registado em 1602), altura em que Halle regressou da Dinamarca. Poderia
Shakespeare ter adquirido uma experiência em primeira mão na Corte Dinamarquesa
que o inspirasse a escrever a peça, já que recentemente aí viajara incógnito?
Se Shakespeare usasse um nome falso para ocultar as actividades dos Serviços
Secretos, não teria sido o único dramaturgo a fazê-lo. Anthony Munday, por
exemplo, usou o nome George Grimes como agente dos Serviços Secretos. Como
dramaturgo popular, Munday foi uma figura bem conhecida, então não estava
obviamente a tentar esconder a sua identidade. Munday parece ter usado o nome
Grimes porque o seu padrinho chamava-se Matthew Grimes. A família de
Shakespeare em Stratford parece ter estado estreitamente ligada a uma família
local chamada Hall. A filha de Shakespeare acabou por casar com um membro dessa
família, o médico John Hall. Além disso, o nome cristão é o mesmo – William. A
evidência de que Shakespeare usou realmente um nome falso aparece na
dedicatória da edição de 1609 dos Sonnets,
de Shakespeare. Na dedicatória de capa do editor Thomas Thorpe lê-se: “To the only
begetter of these ensuing sonnets, Mr. W.H. all happiness and that eternity
promised by our ever-living poet, wishet the well-wishing adventurer in setting
forth.” Thorpe dedica os Sonnets ao autor, Mr. W.H. Mas sabemos
pela nota preambular que eles são “Shakespeare Sonnets”, e dois deles
ostentando o nome de Shakespeare tinham já aparecido em 1599. Portanto, Thorpe
refere-se a Shakespeare como Mr. W.H. Quererá W.H. dizer William Hall? Um espaçamento não usual entre “W.H.” e a palavra “all”
na impressão da dedicatória original sugere que a segunda inicial e a palavra
seguinte deveriam ler-se juntas – Mr. W. Hall. Idêntico procedimento para
ocultar a informação aparecida num panfleto publicado pelo impressor de Thorpe,
George Eld, em 1608. Escrito por Thomas Haricot, incluía a descrição da
mensagem cifrada enviada por Galileu para o astrónomo Kepler, relativa à sua
observação telescópica des crevendo que Vénus possui fases semelhantes às da
lua. A mensagem cifrada, mais a sua solução, é quase certo ter sido conhecida
por Thorpe. Com certeza não é coincidência que uma impressão cifrada numa das
publicações de um dos sócios de Thorpe precisamente um ano antes, produza o
nome W. Hall quando aplicado à dedicatória dos Sonnets.
Isabel I morreu em 24 de Março de 1603 e o
rei Jaime da Escócia tornou-se rei de Inglaterra. William Cecil morrera em
1598, tendo-lhe sucedido seu filho Robert como secretário de Estado. Foi devido
à influência de Robert que Jaime se tornou rei. Sob a influência de Cecil,
Jaime reverteu quaisquer vestígios de política de clemência em relação aos
católicos romanos. A prioridade inicial de Cecil foi cimentar a sua própria
posição, o primeiro passo para se livrar de Walter Ralegh, o velho rival de seu
pai. Ralegh tinha muitos seguidores populares e, como liberal religioso, era o
foco natural para muitos rebeldes potenciais. Por conselho de Cecil, Ralegh foi
demitido de Capitão da Guarda, Guardião das Minas e governador de Jersey. Outra
prioridade de Cecil foi desacreditar os católicos, e no Verão de 1603 surgiu
uma oportunidade para matar de uma cajadada dois coelhos. Em Junho, Cecil
recebeu informações sobre uma conspiração para assassinar o rei e os seus
filhos e entronizar Elizabeth, a filha de Jaime. Esta tinha apenas sete anos e
o plano era evidentemente usá-la como marioneta de um regime católico.
Conhecido por Bye Plot, o plano parece ter sido arquitectado pelo padre jesuíta
Watson e o latifundiário católico George Brooke. O irmão de Brooke, Henry, Lord
Cobham, foi também recrutado para a conspiração e através dele Walter Ralegh
encontrou-se envolvido. No julgamento, Ralegh negou vigorosamente as acusações,
mas a evidência pesou contra ele. Algures em Julho, Rober Cecil tomou
conhecimento da conspiração. Algumas semanas mais tarde Brooke foi preso, logo
seguido de Cobham. No interrogatório, Cobham denunciou Ralegh e foram ambos
presos. É um mistério como é que a conspiração foi descoberta. Contudo, a
resposta está provavelmente contida na carta de 3 de Julho, enviada a Robert Cecil
por um operacional dos Serviços Secretos chamado Parrot, garantindo ao
secretário de Estado que a informação que este tinha recebido era autêntica. Na carta Parrot
afirma: “I believe in all truth that you may proceed”. A carta referia-se com certeza à Bye Plot. Parece que
Parrot trabalhou com William Hall. Quando Hall recebeu o pagamento pela viagem
à Dinamarca em 1601, Parrot foi registado na conta da Chamber Treasury por ter
recebido a importância de £ 10 por “message conveyed”. Parece portanto que Hall
e Parrot viajaram juntos pra a Dinamarca. A outra única referência a Parrot
como correio está também associada a William Hall. Em 19 de Março de 1596, foi
paga a Parrot a importância de £ 15 pelos seus serviços, juntamente com Hall e
Wayte. Parrot aconselhou Cecil a respeito da prisão dos conspiradores de Bye
Plot. Também confirmou que a informação transmitida a Cecil por outra pessoa
era digna de confiança. Poderia essa pessoa ser outra que não Willim Hall? Não
só Parrot e Hall tinham trabalhado em conjunto em duas ocasiões anteriores mas
a menção final de Hall foi apenas cinco dias antes da mensagem de Parrot para
Cecil. Num despacho de Cecil para o inimigo jurado de Ralegh, Lord Henry
Howard, favorito do rei, Cecil garante a Howard que ele não necessita de estar
preocupado quanto à crescente influência de Ralegh sobre o novo monarca.
Afirmou também que “Ralegh’s man” o informou que Ralegh
seria a sua própria ruína devido a algum interesse prematuro. Por outras
palavras, Cecil tinha alguém ligado a Ralegh informando-o de algum esquema em
que Ralegh estivesse envolvido. Seria certamente o mesmo informador referido na
mensagem de Parrot. No próprio dia em que Cecil escreveu a Howard, ele ordenou
ao tesoureiro da Chamber para pagar £ 20 a “Will Halle”. Os pagamentos
habituais aos correios eram registados como tais e os pagamentos feitos por
“other business” – usualmente pelo fornecimento de informações – não eram
especificados. Hall sendo pago por “other business” no próprio dia em que Cecil
admitiu ter recebido informações de “Walter Ralegh’s man” evidencia que Hall
era esse homem. Na sequência da acessão de Jaime, Shakespeare e a sua companhia
receberam um incomparável favor real. Em Maio de 1603, aos actores do Burbage foi
concedido o patrocínio real e, em consequência, chamados The King’ Men,
tornando-se a primeira companhia da época. Mais tarde, a seguir ao Bye Plot,
foram convidados para aparecer perante o rei em Wilton (Wiltshire), a casa de
William, conde de Pembroke. Como o seu pai, nos começos de 1590, Robert Cecil
teria estado numa posição única nos favores do rei em pagamento dos serviços
prestados. Os actores do Burbage tornaram-se os favoritos do rei. No Inverno de
1603-4 foram chamados para oito representações reais, no ano seguinte, onze, e
em 1611, umas espantosas vinte vezes. Quanto a Walter Ralegh depois do seu
julgamento em Winchester em 1603, ficou preso na Torre de Londres durante treze
anos.
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Monumento funerário de Shakespeare
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A carreira teatral de
Shakespeare parece ter terminado abruptamente com o incêndio do Globe Theatre,
em 29 de Junho de 1613. Depois do fogo, os sócios pagaram cada um cerca de £ 60
pela reconstrução, excepto Shakespeare. Como não há registo da contribuição de
Shakespeare ele deve ter cedido então a sua participação, pois não existe
qualquer quota no seu testamento. Como o testamento também não faz referência
ao Blackfriars Theatre, presume-se que também teria vendido a sua quota. O
Incêndio de Globe coincidindo precisamente com o seu súbito afastamento, parece
indicar uma inter-relação. Talvez a obra de uma vida perecesse nas chamas. Isto
explicaria certamente a falta de manuscritos no testamento de Shakespeare. Mas
trinta e sete das suas peças sobreviveram e todas, excepto uma, Pericles, foram preservadas mais tarde
no First Folio. Não há explicação adicional para o afastamento de Shakespeare.
Na sua introdução preambular no First Folio de 1623, os actores colegas de
Shakespeare, Heminge e Condell, dizem que Shakespeare foi “maimed and deformed
by the frauds and stealths of injuriou impostors”. Como “maimed and deformed”
parece uma maneira estranha de descrever a alteração das suas obras,
aparentemente de significado implícito, Heminge e Condell podem estar a
referir-se a alguma coisa acerca do próprio Shakespeare. Ficou Shakespeare
gravemente ferido no incêndio do Globe? A incapacidade de Shakespeare podia
tê-lo obrigado a retirar-se da vida pública. Outras suspeitas sobre o facto de
Shakespeare ter ficado ferido no incêndio decorrem do mistério do seu
testamento. Ele foi redigido pelo seu executor Thomas Russell. É difícil
imaginar não ser Shakespeare a redigir o seu próprio testamento a menos que,
por alguma razão, estivesse incapaz de o fazer. Haveria limitações físicas que
tornassem praticamente impossível que escrevesse? Vimos como as suas
assinaturas que sobreviveram, todas após 1612, parecem ter sido escritas por uma
mão incompetente e instável. A existência de uma incapacidade parece ser a
única explicação racional para a débil e inconsistente assinatura de Shakespeare.
Este pode até ter suportado maiores ferimentos. Alguma forma de deformação
facial é insinuada por Ben Jonson no seu elogio de Shakespeare no First Folio.
Por alguma razão, Jonson chamou a atenção para o retrato de Shakespeare
sugerindo que não corresponde à verdade. Diz também que o impressor foi forçado
a melhorar a aparência de Shakespeare. Porque teria o impressor de melhorar a
aparência de Shakespeare a menos que houvesse no seu rosto algo de
extraordinário ou desfigurado? A deformação de Shakespeare pode constituir
também uma resposta para o mistério da sua vida. Porque não existe um retrato
autêntico, quando sobreviveram os retratos da maior parte dos dramaturgos do
seu tempo? Talvez Shakespeare tenha destruído todos os retratos antigos num momento
de depressão, como fez Thomas Hariot angustiado por um cancro do nariz nos anos
1620. Porque será que em Stratford parece que ninguém conheceu a poesia de
Shakespeare, as suas peças, a sua anterior glória, quando ele regressou a casa?
Se ele tivesse ficado desfigurado ou de alguma maneira deformado podia ter-se
recusado a socializar, confinando-se a uma existência de ermita. Além do mais,
se já não podia escrever, podia ter condenado a sua própria obra, destruído
qualquer original que ainda possuísse. Na primavera de 1616, pela primeira vez
na sua vida, Shakespeare elaborou o seu testamento. Em 25 de Março terminou-o e
dentro de um mês, em 23 de Abril, morreu. Tal proximidade sugere que
Shakespeare sabia que estava para morrer. Contudo, segundo o único relato da
sua morte, escrito por John Ward, o vigário de Stratford nos anos 1660,
Shakespeare sentiu-se subitamente doente nas primeiras horas da madrugada e
morreu antes do nascer do sol. Uma doença tão aguda podia ter resultado de
envenenamento. Na verdade, o reverendo Ward diz que a morte de Shakespeare foi
atribuída a alguma coisa que tivesse comido ou bebido na noite anterior. Se
Shakespeare foi assassinado, o homem que pode ter sido responsável foi Sir
Walter Ralegh. Se Shakespeare foi William Hall, parece que Ralegh terá passado
largos anos na prisão em resultado da actividade de Hall. Depois de ter estado
treze anos na Torre de Londres, Ralegh foi libertado em 19 de Março de 1616,
precisamente seis dias antes de Shakespeare ter feito o seu testamento. Saberia
Shakespeare da libertação de Ralegh e sentir-se-ia em perigo?
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Acima se registaram os
sumários dos capítulos desta obra. As hipóteses e as conclusões revelam-se um
pouco confusas. Realmente, os autores não primaram pela clareza e pelo método.
Mas é o que há. Nem tive disponibilidade de tempo para tentar organizar o
discurso. Todavia, alguns mistérios persistem. Talvez sejam esclarecidos com o
decorrer dos anos.