Foi publicado no mês passado um novo livro de António Costa Pinto, O Regresso das Ditaduras?. Com ponto de interrogação. Trata-se de uma obra breve mas interessante onde o autor discorre sobre as características dos regimes ditos ditatoriais por oposição aos regimes ditos democráticos. E de como é ténue a fronteira entre democracia e ditadura.
Começa o autor por abordar os tipos e variedades de ditaduras para se debruçar depois sobre a relação destas com as instituições políticas. Tratando a seguir dos meios de repressão e coerção e das várias faces do autoritarismo contemporâneo.
Segundo Costa Pinto, a melhor definição de ditadura (e a mais consensual) é a que a caracteriza como um regime político em que a elite política governa por outros meios que não eleições livres e justas, sendo certo que vários regimes deambulam entre o ditatorial e o democrático. De acordo com a Universidad Autónoma de Madrid, dos 122 Estados existentes em 1973, 30 eram democracias e 92 ditaduras (75,5%); em 2000, dos 191 Estados, 117 eram democracias e 74 ditaduras (38,8%).
O autor distingue partidos fascistas de regimes fascistas e evoca os partidos fascistas que se desenvolveram na Europa durante a década de 1930, na sequência do Partido Nacional Fascista Italiano, o único partido que (em minha opinião) se pode chamar verdadeiramente fascista, já que os outros assim comummente designados foram partidos que originaram regimes totalitários ou autoritários mas cuja natureza foi diversa. Tivemos o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), a Guarda de Ferro, na Roménia, o Quisling, na Noruega, a Falange, em Espanha e regimes ditatoriais mais conservadores, como o de Dolfuss, na Áustria, o de Salazar, em Portugal, o de Tiso, na Eslováquia, ou o Estado Novo (ou Terceira República Brasileira) de Getúlio Vargas.
As ditaduras socialistas, associadas ao comunismo, adoptaram instituições políticas, sociais e económicas muito semelhantes, independentemente dos modos de chegada ao poder dos partidos comunistas. Posteriormente, houve diferenças substanciais entre a União Soviética e os chamados países de Leste, a Republica Popular da China, Angola ou Moçambique, a Coreia do Norte, Cuba, a Albânia, a Jugoslávia, ou Pol Pot, no Camboja.
Também oferecem panorama conceptual muito distinto as ditaduras militares, especialmente as da América Latina, como o Chile e a Argentina. Há exemplos de outros tipos de regimes ditatoriais como o de Mobutu Sese Seko, no Zaire (hoje RDCongo), ou Nasser, no Egipto, Abdel Qarim Qasim, no Iraque, Alphonse Massamba-Débat, no Congo-Brazzaville, Suharto, na Indonésia. Ou em Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia (no Norte de África, embora distintas entre si), as monarquias do Golfo, Somoza, na Nicarágua, Duvalier, no Haiti, Stroessner, no Paraguai.
De acordo com o autor, metade das 172 ditaduras do século XX que foram iniciadas por militares ou partidos, foram total ou parcialmente personalizadas num período de três anos depois da tomada do poder. Interessante a análise a que Costa Pinto procede relativamente aos partidos únicos, ou dominantes, aos governos, aos parlamentos e às eleições. Entre os partidos únicos existem grandes diferenças: nada de comum entre a União Nacional, de Salazar (que, aliás, não era um partido, digo eu), a Frelimo, de Samora Machel ou o Partido Comunista Chinês. Interessa saber também quem governa, o Partido ou o Governo? De uma maneira geral, a governação, ou pelo menos a orientação política, é do partido, ficando o governo com as tarefas administrativas, ou seja a execução do programa previamente delineado.
No fascismo italiano, o Grande Conselho do Fascismo era a organização máxima, composto pelos notáveis do Partido. A ditadura de Hitler foi a que esteve mais próxima de um regime com legitimidade carismática. O poder foi-se dissolvendo por vários órgãos, do NSDAP às SA, do Governo às SS, das Forças Armadas a outros centros de decisão fomentados por Hitler, de forma que, em última análise, tudo (o que era importante) ficava dependente do veredito do Führer.
Nos regimes comunistas, o Secretariado do Comité Central era o órgão decisivo, tendo o Governo quase exclusivamente funções técnico-administrativas.
As ditaduras militares são normalmente dirigidas por uma Junta, composta por representantes dos ramos das Forças Armadas, embora algumas tenham evoluído para uma rotatividade de funções ou mesmo para um presidente único (caso do Chile de Pinochet).
A grande maioria das ditaduras contemporâneas mantém parlamentos que representam formalmente o poder legislativo das democracias. De uma maneira geral, em quase todos os regimes autoritários o partido controla estes parlamentos. Os parlamentos autoritários das ditaduras da época do fascismo encontraram nos modelos corporativos uma alternativa aos parlamentos das democracias liberais.
«O corporativismo, enquanto ideologia e como tipo de representação dos interesses organizados, foi, a partir do final do século XIX até meados do século XX, inicialmente promovido pela Igreja Católica como uma "terceira via", em oposição ao socialismo e ao capitalismo liberal, mas rapidamente permeou as principais famílias políticas da direita conservadora e autoritária: desde os partidos católicos e o catolicismo social, até aos fascistas e radicais de direita, para não falar dos solidaristas e dos partidários dos governos tecnocráticos.» (p. 50)
As ditaduras comunistas mantiveram, em parte, o princípio electivo com sufrágio universal para as eleições legislativas, mas com candidaturas oficiais dos partidos comunistas. Nos Estados multinacionais, como a URSS ou a China ou a Jugoslávia, os parlamentos desempenhavam também uma função integrativa, mesmo que apenas para consultas e para sancionar as decisões da direcção do partido e do governo.
Nas ditaduras e autoritarismos competitivos contemporâneos, ainda que a eleição seja o modo dominante de constituição dos parlamentos, alguns mantêm uma parte dos seus membros nomeados pelo regime.
A seguir, Costa Pinto trata da coerção e repressão e, depois, das várias faces do autoritarismo contemporâneo. O autor indica os exemplos de Erdogan, na Turquia, de Orbán, na Hungria e de Putin, na Rússia como democracias iliberais. Refere-se também à China actual e à Bielorrússia, de Lukashenko. E também à vaga populista de Trump, nos EUA, de Bolsonaro, no Brasil e de Duda, na Polónia.
Eis um resumo da matéria, já de si muito resumida por António Costa Pinto no seu breve livro sobre os regimes ditatoriais. Trata-se de um complexo tema, bastante para ocupar dezenas de volumosas obras.
À guisa de posfácio, poderia dizer-se que cada regime, autoritário, totalitário ou mesmo democrático é único, apesar das semelhanças ou dissemelhanças que possam existir relativamente a outros que lhe sejam próximos.
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Permitam-se-me algumas notas pessoais.
Em primeiro lugar, relativamente à utilização indevida da palavra "fascismo" para tudo o que não tenha a ver com as chamadas democracias liberais (e, às vezes, até para estas), distinguidas das democracias iliberais, um novo conceito hoje atribuído à Hungria, à Rússia, à Turquia. Verdadeiramente, o único regime fascista foi o italiano, de seu próprio nome. O Duce arregimentou todo o imaginário das legiões romanas e do esplendor do Império Romano, império que se propôs reconstituir, apoderando-se da Líbia, da Abissínia, da Somália, etc. O regime nazi foi um regime totalitário, tal como o italiano, mas não foi um regime fascista. Aliás, só a partir da Segunda Guerra Mundial houve uma maior identificação entre a Itália e a Alemanha, e, de resto, Hitler e Mussolini detestavam-se reciprocamente. O Nacional-Socialismo era especialmente esotérico, de acordo com as convicções do Führer e cultivava a mística da supremacia da raça ariana, o que decorre também da ignorância de Hitler e seus adeptos relativamente às potencialidades da raça negra. Todas as raças, agora diz-se etnias, possuem características muito próprias, sendo umas mais dotadas nuns aspectos e outras noutros. Um dos obreiros desta religião nazi, essa sim "negra", foi Heinrich Himmler, o homem das SS. A paixão de Hitler pela música e os temas de Wagner e a atmosfera em que as suas obras se desenrolam explica igualmente muita coisa.
O fascismo é também um regime de movimento de massas (as monumentais paradas de Hitler e de Mussolini). Em Portugal não houve um regime fascista mas sim um regime autoritário, sem partidos (a União Nacional não era um partido político) e sem grandes desfiles (Salazar tinha um horror às multidões). Aliás, o próprio Salazar conteve os elementos mais à direita do regime, como Rolão Preto, que se tinham tornado incómodos. Houve é certo, o culto da personalidade mas em moldes diferentes do praticado em outros países. O Estado Novo foi um regime orgânico, corporativo, parente do austríaco, mas manteve as suas distâncias em relação aos regimes totalitários. Dadas as circunstâncias da terrível guerra civil, não sei se poderá chamar-se ao regime de Franco um regime totalitário. Talvez tenha sido inicialmente um regime totalitário que evoluiu depois para um regime autoritário, especialmente com a restauração da Monarquia, embora o Caudilho permanecesse como chefe do Estado até à sua morte.
O regime de Vichy, em França, é um caso particular. O Marechal Pétain nunca se intitulou presidente da República mas tão só chefe do Estado francês. As suas características são sui generis já que o país se encontrava parcialmente ocupado.
O conceito de democracia também é elástico, embora Costa Pinto não elabore sobre ele. De facto, os regimes do leste europeu, e não só, intitulavam-se democracias populares, considerando o centralismo democrático como um processo absolutamente ortodoxo. Num país tradicionalmente considerado democrático como os Estados Unidos da América só em época recente todos os habitantes adquiriram direito de voto. As mulheres estiveram até certa altura excluídas (mas isso era normal em todos os países) mas também os negros, o que introduzia uma distinção relativamente à cor da pele (parece que agora se chama cromatismo!). Sendo a "democracia" etimologicamente o "governo do povo", os nossos antepassados da Grécia e de Roma excluíam da cidadania uma parte muito considerável da sua população. Impensável que os escravos (que eram coisas, por vezes preciosas) pudessem votar.
O funcionamento da democracia sofre entretanto graves entorses nos países ditos ocidentais. Por razões várias, que não é possível aqui elencar, há um progressivo afastamento da população relativamente aos regimes, tendo as eleições, em geral, a participação de menos de 50% dos cidadãos, o que diminui a legitimidade (não digo a legalidade) dos eleitos. As decisões políticas, acaparadas pelos partidos, decorrem da vontade das elites, que progressivamente expulsam o povo da polis, devido à deficiência dos mecanismos de representatividade.
Os partidos políticos deixaram de oferecer confiança aos eleitores, porque, tomado o poder, executam programas muito diferentes dos que foram apresentados ao sufrágio. Há um contínuo divórcio entre os cidadãos e as classes dirigentes. O povo começa a preferir um homem que lhe ofereça confiança a um partido político. Isso explica a esmagadora adesão dos russos a Putin, que resgatou a honra russa depois do funesto consulado de Yeltsin. Recordemo-nos da frase atribuída a Catarina II: "A Rússia é um pais demasiado grande para ser governado por mais de uma pessoa". É evidente que isto é uma boutade. Poderia dizer-se o mesmo de um pequeno país, como Portugal, que foi governado durante quase cinquenta anos por Salazar.
Não tenho tempo nem espaço para discorrer mais sobre esta matéria, nem sobre o futuro das democracias na Europa, onde surgem partidos que contestam progressivamente o sistema, anunciando reformas "redentoras"! Não digo que a maioria dos cidadãos deseje a instauração de ditaduras mas que talvez pretenda uma reformulação do modelo vigente. Por isso, ao analisar o "regresso das ditaduras" Costa Pinto colocou um ?.
Foi pouquíssimo o que escrevi sobre o tema face ao imenso que ficou por tratar.