quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
JOUHANDEAU SECRETO
Marcel Jouhandeau (1888-1979), importante escritor francês do século passado, nunca foi verdadeiramente um escritor secreto. Educado como católico desde a infância, travou ao longo da vida um combate entre os preceitos religiosos e a sua orientação homossexual, manifestada desde muito cedo. E a carne venceria sempre os escrúpulos do espírito.
Nascido em Guéret, aldeia do centro da França, cedo viaja para Paris, onde estuda na Sorbonne e onde ficará a viver. Professor no liceu privado Saint-Jean-de-Passy, acaba por dedicar-se exclusivamente à escrita. A sua obra é vasta (cerca de cinquenta títulos, além dos 28 volumes de Journaliers) e na maior parte dos seus livros são evidentes, embora discretas, as alusões à vida homossexual.
Em 1929, casa-se catolicamente com Élisabeth Toulemont, ex-bailarina, que fora amante do célebre actor e encenador Charles Dullin. Jouhandeau confessa-lhe a sua homossexualidade e ela promete "curá-lo". Mais tarde, ele escreveria que, durante três anos, existiu entre ambos um perfeito entendimento carnal. Mas as paixões masculinas sobrepuseram-se e, para o fim da vida, impor-se-iam definitivamente.
A mulher, sob o pseudónimo de Élise, será presença constante na maioria dos seus romances, nomeadamente pelas queixas a seu respeito que Marcel não se coíbe de assinalar. O casamento não terá sido branco, como o de Gide, mas foi certamente tumultuoso. Élisabeth morrerá em 1971.
Em 1949, os Jouhandeau tinham recolhido uma rapariga, Céline, cuja educação foi um fracasso. Atingida a maioridade, ela deu à luz um rapaz, Marc (tendo o pai fugido para Itália, abandonando mãe e filho). A criança virá a ser adoptada pelo casal Jouhandeau.
De 1936 a 1941, Marcel Jouhandeau escreveu alguns artigos considerados anti-semitas e em 1941 participou no célebre Congresso de Weimar, organizado por Goebbels, na companhia de Abel Bonnard, Pierre Drieu La Rochelle, Robert Brasillach, Ramon Fernandez, etc. Todavia, recusou sempre a classificação de anti-semita, e, por isso, chegou mesmo a processar Roger Peyrefitte, que o havia mencionado, sob pseudónimo, no seu livro Les Juifs.
Apesar das suas tendências homossexuais serem conhecidas do público, Marcel Jouhandeau recusou-se a publicar em vida (salvo em edição anónima e fora do mercado) três obras que seriam dadas à estampa apenas em 1988, sob a designação de Écrits secrets: Le voyage secret, Carnets de Don Juan e Tirésias. Os dois primeiros são uma reflexão sobre o amor, o prazer, a alma, a religião, a presença e a ausência, a amizade, a beleza, a intimidade, os combates da luz e da sombra, o vício e a virtude, a paixão que um homem pode inspirar a outro homem, etc. O terceiro, Tirésias, de que existe uma edição portuguesa publicada em 1994, é aquele que mais expõe a vida de Jouhandeau, especialmente nos últimos anos. Nele, o escritor relata as suas aventuras nos banhos públicos de Paris, e descreve como passou a adoptar a posição sexual de passivo e os encontros com quatro rapazes: Richard, Philippe, o Anão e Pierre, figuras que constituem os quatro capítulos do livro.
Na introdução de Tirésias, Jouhandeau remete-nos para a mitologia grega, recordando uma das três versões do mito. Passeando na floresta, Tirésias viu duas serpentes em cópula e separou-as com a sua vara. Por isso, ficou transformado em mulher durante sete anos. No oitavo ano, voltou a ver as serpentes na mesma posição, e tornou a separá-las. E voltou a ser homem. Estando Zeus (Júpiter) em discussão com sua esposa Héra (Juno) sobre quem teria maior prazer no acto sexual, o homem ou a mulher, resolveram pedir a opinião de Tirésias, visto ele ter já experimentado os dois sexos. Tirésias partilhou a opinião de Zeus, considerando que em dez partes, o homem só teria um décimo do prazer e a mulher nove décimos. Furiosa, e para o castigar, Héra condenou-o às "trevas eternas". Não podendo contrariar a decisão da mulher, para o compensar da sua cegueira Zeus resolveu dotá-lo com o dom da adivinhação e com uma vida de sete gerações.
Assim nasceu o mito de Tirésias, oportunamente aproveitado por Marcel Jouhandeau como introdução ao texto em que enaltece o prazer homossexual especialmente na sua vertente de passividade.
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