quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CORONAVÍRUS, A GLOBALIZAÇÃO DA DOENÇA




A declaração de uma situação de emergência internacional por parte da Organização Mundial de Saúde, devido à rápida propagação do coronavírus, aparecido numa cidade da China, em circunstâncias ainda não identificadas, obriga-nos a reflectir sobre os benefícios da globalização.

Desde o início deste século que a globalização tem sido incensada como o último estádio civilizacional, uma espécie de "fim da História" na terminologia de Fukuyama. Com a desregulação dos mercados, patrocinada pelo tandem Reagan/Thatcher, começou a operar-se a globalização económica e financeira do planeta, com todas as implicações daí decorrentes, mais evidente na União Europeia, dada a livre circulação de pessoas e bens. Tem sido também relevante a deslocalização dos serviços, a que há a acrescer o espantoso incremento conferido ao turismo de massas nos últimos anos, com a multiplicação de ligações aéreas entre todos os países. A Terra move-se, como diria Galileu, ou, mais prosaicamente, as pessoas movem-se na superfície terrestre.

Regista a história muitas epidemias no passado, algumas que são já dos nossos dias. Mas parece, e ainda estamos no princípio, que não foi acautelada a possibilidade de uma epidemia supostamente muito contagiosa se desenvolver num país com mais de mil milhões de habitantes e cujos cidadãos se deslocam pelos cinco continentes.

Tanto quanto sabemos, a cidade onde terá tido origem este surto epidémico (com uma população superior à de Portugal) encontra-se encerrada ao exterior, completamente paralisada, e dentro da própria China foram entretanto adoptadas medidas drásticas para evitar o progresso da contaminação. Mas o vírus foi já detectado noutros continentes e a sua disseminação ameaça colocar cidadãos, cidades, ou até mesmo países em situação de quarentena. 

Parece que a nova ordem internacional, na sua hubris alucinada, não previu que os proveitos da globalização poderiam estar sujeitos aos malefícios de uma "mercadoria" invisível, não constante de acordos ou tratados e dispensando passaportes ou vistos para a sua circulação.

É evidente que o país económica e socialmente mais afectado será, para já, a China, e não deixará de haver quem pense tratar-se este vírus de uma conspiração contra a emergência de Pequim como a nova superpotência mundial.

Ouvi, há momentos, que está um navio de cruzeiro, com centenas de passageiros, impedido de atracar em Civittavecchia (o porto de Roma) porque se encontram a bordo dois passageiros chineses supostamente contaminados. [Civittavecchia, exactamente o porto por onde Floria Tosca queria fugir de Roma com Mario Cavaradossi, mas isso é uma história de Sardou e Puccini]. Se vier a verificar-se, nos próximos dias, uma vertiginosa propagação do vírus, acontecerá que deixaremos de poder circular pelo mundo como até aqui. E por quanto tempo?

Estas são perguntas a que ninguém antecipou respostas. Mas que se trata de um sério problema, isso é indesmentível. De um problema e de um aviso!


3 comentários:

Jaime Santos disse...

Em que é que isto é novidade? A peste negra, que matou um parte considerável da população europeia, chegou cá numa era de comunicações atrasadas. E depois o mesmo se passou com a sífilis, que terá sido trazida das Américas. E com a gripe que dizimou em 1918-1919 mais gente que a I Guerra Mundial.

A globalização permite, com todos os defeitos que naturalmente tem, a troca de informações entre as autoridades sanitárias de diferentes países (desde que estes não optem pelo secretismo à maneira das sociedades fechadas do Leste Europeu antes da queda do muro de Berlim, como fizeram agora pelos vistos os Chineses), que é a melhor arma contra uma doença na sua fase inicial, isto antes da procura de uma vacina ou cura, que naturalmente muito deve à cooperação científica internacional.

Não vale a pena, à moda do Príncipe Próspero de Allan Poe, tentar puxar a ponte levadiça. A morte, vermelha, negra ou de que cor seja, encontra-nos na mesma no final...

Zephyrus disse...

Caro Jaime, existe alguma polémica sobre a origem da sífilis. Crê-se que poderia já existir na Antiguidade, e que depois poderão ter surgido estirpes mais virulentas. Houve um surto na Florença renascentista que teve um grande impacto nos costumes, pois havia mais prostitutos que prostitutas na cidade. As prostitutas odiavam a concorrência do sexo masculino e conspiraram contra os homens jovens que satisfaziam os prazeres de locais e viajantes.

Importa referir o impacto das doenças importadas na flora portuguesa. Neste momento o sobreiro e as azinheiras estão a morrer no Sul do país por causa de um fungo importado que se espalha quando as terras são lavradas. No século XIX o castanheiro desapareceu das serras do país do Minho ao Algarve também por causa de um fungo importado. E há o impacto das espécies importadas. O eucalipto domina completamente a paisagem em boa parte do Norte e Centro do país,mesmo fora das plantações comerciais, ocupando o espaço que pertencia ao carvalho-alvarinho. Portugal é o país mais descaracterizado que conheço em toda a Europa e em termos per capita é o país com mais eucalitpal. Devido à falta de cultura das nossas elites não há sensibilidade para esta problemática. Poucos tiveram coragem de alertar para o problema, excepto os professores Orlando Ribeiro, Jorge Paiva, Helena Freitas ou o Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles.

Jaime Santos disse...

Meu caro Zephyrus, não vou discutir a polémica sobre a sífilis, não tenho dados suficientes sobre o assunto.

O meu ponto é exactamente aquele que você também aponta, a presença de espécies invasoras existe desde tempos imemoriais, onde se incluem naturalmente as espécies microbianas (a peste que assolou o Porto no final do século XIX terá chegado de barco e a gripe espanhola só se chamou espanhola porque a Espanha, enquanto País neutral na Grande Guerra, a reportou).

Como é evidente, faz todo o sentido combater a sua presença, como faz sentido colocar os viajantes vindos de zonas de risco na China sob quarentena. Não sou nenhum fatalista nesta matéria.

O que não faz sentido é arrancar as roupas por causa do processo de globalização e esquecer que se existem riscos acrescidos pela velocidade com que os viajantes hoje circulam, também existe uma comunidade científica global, assim como autoridades de saúde competentes (a OMS) que nos proporcionam armas para lutar contra possíveis pandemias com que os nossos antepassados nunca sonharam... Limitavam-se a chamar às doenças nomes ligados aos países adversários (spanish influenza no caso da gripe, e mal francês no caso da sífilis, p.e.)...