domingo, 26 de janeiro de 2020

AMOR E SEXO EM ROMA




O Amor e o Sexo em Roma têm sido largamente tratados, nas últimas décadas, por vários especialistas europeus, de quem algumas obras se encontram traduzidas em língua portuguesa. Mas há também obras originais de autores portugueses, como é o caso de Caminhos do amor em Roma - Sexo, amor e paixão na poesia latina do séc. I A.C., de Carlos Ascenso André, publicada em 2006.

Quando hoje evocamos Roma, a ideia que retemos, proveniente da literatura mas especialmente do cinema, é a do fausto da Roma imperial, lugar de banquetes, de festas, de luxos, de orgias, de degradação e de prazer. Mas Roma nem sempre terá sido assim. Os cerca de sete séculos da República romana dão-nos uma visão mais austera da vida em Roma, cuja embriaguês, devido sobretudo aos progressivos contactos com o Oriente, começa realmente a manifestar-se no século I A.C., isto é, no final da República e na instauração do Império, com Octávio César Augusto.

É claro que amor e sexo sempre existiram em Roma, e ele é evocado, nesta época de transição de regime, pelos grandes poetas da literatura latina. E foi sobre esta época que Carlos Ascenso André  se debruçou no seu livro em apreço, recorrendo em especial aos poetas mais significativos, contemporâneos uns dos outros, como Catulo (87-57 A.C.), Horácio (65-8 A.C.), Propércio (54-16 A.C.), Tibulo (54-19 A.C.), Ovídio (43 A.C.- 18 D.C.) e especialmente Virgílio (70-19 A.C.).

Já comentei, em Dezembro passado, no post dedicado ao livro A Vida Sexual na Roma Antiga, muitos dos aspectos agora referidos em Caminhos do amor em Roma. Mas porque os romanos separavam cuidadosamente o sexo e o amor, o livro de André enfatiza a problemática amorosa, sem todavia descurar as práticas sexuais.

Esta obra de Carlos Ascenso André destinou-se inicialmente a provas académicas, sendo depois reformulada para publicação em livro. O autor, que traduziu a Arte de Amar, de Ovídio, enaltece especialmente Virgílio, autor da Eneida, o canto épico dos romanos. Curiosamente, Virgílio, que nos deixou alguns dos retratos femininos mais notáveis da história da literatura, como Dido, Eurídice, Lavinia, aparentemente misógino, não gostava realmente de mulheres, ou porque elas traziam consigo o amor e a paixão, que arrebatam os corações e toldam a mente, ou por outras razões que André não menciona. Ao tempo, as mulheres começavam a merecer uma posição de mais algum destaque de que em épocas anteriores, mas muito longe do que se poderia considerar qualquer princípio de emancipação feminina. Refere, por exemplo, o autor: «Ao homem era concedido que tivesse tria nomina, três nomes, isto é, o nome próprio, em segundo lugar o nome gentílico, de sua gens ou família, e, por fim, um terceiro, que podia definir uma característica pessoal ou também associada à família (são os casos de Marcus Tullius Cicero, Gaius Iulius Caesar); à mulher, todavia, só era dado possuir um nome, que jamais era próprio, mas o do seu pai; assim, Tullia seria filha de Tullius, Liuia filha de Liuius, Hortensia filha de Hortensius e assim por diante.» (p. 15)

Nos seus livros, particularmente na Eneida, Virgílio aborda, segundo a sua perspectiva, quatro tipo de "amores": o amor sereno, o amor sexual, o amor homossexual e o amor paixão. Mas fá-lo igualmente nas Bucólicas e nas Geórgicas. É o amor-paixão que Virgílio especialmente abomina, por ser fonte de desgraça.

O livro debruça-se primeiro sobre o casamento, a infidelidade, o corpo, o sexo, o prazer, a sensualidade, o erotismo, a sedução, o ciúme, matérias em que recorre aos poetas acima citados. Estão em causa relações entre pessoas de sexo diferente.

No que se refere ao amor homossexual, o autor enfatiza: «Na Antiguidade Clássica, a relação homossexual era uma prática corrente, fazia parte do quotidiano e era encarada naturalmente pela sociedade. Na Grécia, em especial, o culto da relação física entre jovens do mesmo sexo era uma componente da própria educação. A pederastia não era, apenas, aceite, como, até, estimulada. A leitura dos filósofos, em particular de Platão, fornece abundantes exemplos; e deles está também repleta a literatura grega, a começar pela epopeia.» (p. 175)

Mas André lembra, como que eu já escrevi em posts anteriores, que a atitude relativamente às relações entre pessoas do mesmo sexo era em Roma muito diferente do que era na Grécia. Isto é, os romanos não conviviam bem com a pederastia em sentido estrito. O problema não residia no facto de se tratar de pessoas do mesmo sexo, obviamente, mas na função activa ou passiva da relação sexual. Estava em causa uma questão de poder. De relação física, a relação homossexual assumia uma dimensão social: quem possui e quem é possuído. Enquanto a Grécia estimulava a relação entre cidadãos livres (a pederastia era a relação entre um adulto e um adolescente), Roma não permitia a relação entre dois homens livres, apenas a de um homem livre com um liberto ou um escravo, assumindo sempre o homem livre o papel de activo. Naturalmente, estas disposições normativas, quer na Grécia quer em Roma não eram rigorosamente cumpridas, como é fácil de compreender. E se a República Romana era mais exigente na matéria, com o advento do Império os costumes foram-se tornando mais dissolutos e as relações facilitadas.

No que à homossexualidade feminina diz respeito, ela é praticamente ignorada na sociedade romana. Sendo a relação sexual uma questão de poder, e sendo a mulher, por definição, detentora de um papel passivo, a situação seria considerada perversa, o que não significa que não tenha existido.

Acresce dizer que a expressão "homossexual" é aqui utilizada por comodidade, já que tal conceito, que apenas foi criado no século XIX, não existia na Antiguidade.

O autor conclui a sua obra sobre aqueles que são escravos do amor, os que são possuídos por uma paixão. Os poetas latinos cantam a paixão de mil e uma formas, podendo ela estar assente numa relação homo ou heterossexual. E, talvez à excepção de Virgílio, cantam-na na primeira pessoa do singular, quer a tenham vivido realmente ou apenas na sua imaginação, o que, para o caso, não importa. Ora a paixão, sendo por definição um excesso, não é do domínio do racional.

Escreve o autor: « A concepção do amor como doença, de facto, era já familiar na literatura grega, na lírica, na tragédia e, depois, na poesia helenística. E até mesmo na comédia latina. Mas a ideia de que a vítima do poder do amor sofria de uma espécie de doença que lhe afectara a mente veio a ser mais corrente na elegia latina do que era na poesia grega. O que não surpreende, se tivermos em conta que os elegíacos latinos, especialmente Propércio e Tibulo, como a seguir se verá, enfatizaram mais que os gregos a prisão do amor, a humilhação, a irracionalidade.» (p. 209)

«Esperar-se-ia de Ovídio um maior artificialismo; ele que ensinava os preceitos do amor, a partir de uma técnica claramente racionalizada, como se tudo não passasse de um jogo orientado por objectivos de carácter aparentemente lúdico, poderia ser menos sensível àquela espécie de prisão doentia. Mas nem sempre assim é. O próprio Ovídio se declara, mais de uma vez, rendido ao amor, em todas as suas contradições. As mesmas, no fim de contas, que virão a dar origem, mais de mil e quinhentos anos depois, aos oxímoros camonianos do soneto "Amor é fogo que arde sem se ver"» (pp. 210-211)

O autor discorre também sobre a passagem da paixão ao ciúme e ao ódio, mas muito longe nos levariam as reflexões sobre a abordagem que Carlos Ascenso André faz da poesia latina no período em questão.

Não querendo alongar-me demasiadamente, como já aconteceu em posts anteriores, recomendo ao leitor interessado no tema que leia este livro e, para maior informação, os próprios textos dos poetas citados.


3 comentários:

Anónimo disse...

Dificilmente se poderá avançar mais no conhecimento deste capítulo da vida romana clássica do que o que se tem lido ultimamente neste erudito blog. Levar o escrúpulo até comentar o livro de um ex-governador civil, é obra... Bem sei que o autor tambem é professor em Coimbra, mas a sua passagem pelo governo civil de Leiria não deixa de ser curiosa. Apesar do exaustivo interesse analítico do autor do blog, não vejo novidades de relevo na prosa do sr. governador, o que aliás é compreensivel dado o vasto tratamento que o assunto tem conhecido ao longo dos tempos. Evidentemente que mantenho as minhas reservas quanto a determinados aspectos, dado parecerem que sempre desvalorizam os exemplos de Adriano e os casos do Satiricon, mas tudo bem.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para o Anónimo das 23:57:

Do "cv" do autor sabia que é doutorado pela Universidade de Coimbra e nela professor, bem como noutras universidades estrangeiras. Desconhecia o facto de ter sido governador civil, o que não lhe retira o mérito, antes mostra um indivíduo polivalente.

A propósito, aproveito para mais uma vez reclamar o restabelecimento dos Governos Civis, que tanta falta fazem ao país, em lugar de fantasiosas regionalizações.

Zephyrus disse...

Onde ainda se encontrariam vestígios do que foi a vivência da sexualidade no mundo Antigo seria, creio, no Norte de África, na Turquia e no Próximo e Médio Oriente, antes da difusão moderna dos fundamentalismos islâmicos. Ainda hoje os turcos, país onde há menos intolerância, têm em geral uma vivência das relações masculinas diferente da que se vive no Ocidente, sem a interiorização dos conceitos de homossexualidade ou bissexualidade.