domingo, 31 de julho de 2016

DO ESTADO DE DIREITO AO ESTADO DE DIREITA ?




No seu número desta semana, "Libération" interroga-se: De l'État de droit à l'État de droite?

A vaga de atentados terroristas ocorrida nas últimas semanas, especialmente em França, mas também na Alemanha, suscita com crescente intensidade a reclamação de medidas cada vez mais enérgicas para enfrentar um problema que correria  o risco da banalização não fora o sentimento de progressiva intranquilidade das populações.

Em França, a Frente Nacional (FN) protagoniza a exigência da adopção de meios que se situam nos limites das garantias constitucionais, quando não os ultrapassam. Mesmo Nicolas Sarkozy, que não é exactamente Marine Le Pen, desfruta da ocasião para confrontar o governo Hollande/Valls com a insuficiência da protecção concedida aos cidadãos.

Encontramo-nos perante a tentação de uma deriva securitária que a ninguém aproveitará, excepto aos terroristas. A própria inversão do discurso da FN, que passou de anti-semita a anti-muçulmano, é um sinal não só de oportunismo político como, o que é mais grave, de confusão mental.

Entre os principais islamólogos franceses, entre os quais conto alguns amigos, são sustentadas duas teorias: segundo uns, assistimos a uma radicalização do islão, segundo outros, estamos perante uma islamização do radicalismo. Inclino-me para a segunda hipótese, embora se trate de uma matéria que não permite a delimitação de fronteiras, tantas são as nuances que a análise comporta.

Antes de mais convém precisar o seguinte: nem todos os muçulmanos são terroristas, apenas uma percentagem infinitesimal; nem todos os terroristas são muçulmanos, como os ataques verificados nos últimos anos permitem confirmar.

É evidente que existe um certo ressentimento entre os povos árabes relativamente ao mundo ocidental, especialmente em relação a alguns países. Nietzsche elaborou sobre a matéria, e Max Scheller e Marc Ferro reflectiram pertinentemente sobre o assunto. O ressentimento não é, sem dúvida, exclusivo dos árabes, é transversal ao  mundo, mas neste momento é sobre os árabes que importa reflectir.

E somos assim obrigados a voltar à velha Questão do Oriente, iniciada, grosso modo, pela invasão do Egipto pelo general Bonaparte (então não era ainda Napoleão I) em 1798. O que desde essa data decorreu até hoje deveria ter levado os dirigentes ocidentais, maxime europeus, a cogitarem sobre as consequências da colonização franco-britânica do Norte de África e do Médio Oriente, da partilha do Império Otomano, dos famigerados Acordos Sykes/Picot, da Declaração Balfour (que os palestinianos pretendem levar agora a tribunal), da criação do Estado de Israel, de tantas acções contra os povos que, melhor ou pior, são os herdeiros de uma civilização que se revestiu de particular brilho e, no seu período áureo, ultrapassou largamente, em todo os domínios, a civilização ocidental. Para finalizar tão incompleta enumeração, há ainda que referir, já neste século, a invasão anglo-americana do Iraque, as "primaveras árabes" obscuramente alimentadas, a invasão da Líbia e a persistente guerra na Síria. Demasiado.

Sendo que a História é irreversível, não é possível corrigir os erros do passado, nem pedir responsabilidades aos mortos, a não ser simbolicamente. Mas os que ainda estão vivos, deveriam ser presentes à justiça, o que certamente nunca acontecerá. Contudo, para o caso em apreço, qualquer condenação pecaria por tardia. Inventariadas, parcialmente, as causas (haverá outras), importa ocorrer agora às consequências.

Por razões religiosas, ou políticas, ou sociais, o fenómeno do terrorismo, neste caso do terrorismo dito islâmico, o único que neste momento interessa abordar, chegou e está entre nós, e dadas as características que reveste não é passível de erradicação manu militari a curto prazo. Então, que fazer?

Certamente, os especialistas dos governos europeus, especialmente nos países mais atingidos, já se terão debruçado sobre o assunto dispondo de informações que naturalmente desconheço. Mas como simples observador, parece-me que a fuga para a frente a seguir a cada atentado é um caminho errado, e corresponde possivelmente àquilo que os próprios terroristas pretendem: a instalação de uma espécie de "guerra civil", para lá da restrição das liberdades, da suspensão das garantias constitucionais, e por aí fora, até à instalação de estados autoritários, senão mesmo totalitários.

A Direita mais dura invoca agora o perigo dos refugiados, como se os autores dos atentados verificados pertencessem à vaga de refugiados que tem demandado a Europa, na grande maioria em consequência da guerra que a Europa levou aos seus países: os sírios, os iraquianos e os líbios são casos flagrantes, embora também cheguem migrantes provenientes da África sub-sahariana. Os terroristas "islâmicos" são, na generalidade, nascidos e criados no nosso continente. E a Europa nunca hesitou no passado em acolher a mão-de-obra barata desses trabalhadores migrantes, em particular maghrebinos, da qual ainda hoje carece.

Duvido sinceramente que, apesar dos milhares de páginas escritas em contrário, os terroristas, que acabam curiosamente todos mortos, sem prestarem contas à justiça (parece-me que a única excepção é Salah Abdeslam), estejam a agir por motivos exclusivamente religiosos, em nome da luta contra os infiéis (kuffâr). Provavelmente, a maioria nem conhece o Corão e a sua conversão ao islão é de fresca data. Há outras motivações que é preciso conhecer, mas como os autores estão mortos resta-nos a especulação sobre o que realmente os determinou à violência contra os inocentes que sucumbem aos seus golpes, e que são também eles, muitas vezes, muçulmanos autênticos. Não basta gritar Allâhu Akbar para alguém ser um soldado do Daesh. Por vezes, tenho a impressão de que as declarações dos políticos e a consequente história que nos é contada pela comunicação social carecem de verosimilhança, salvo a realidade dos mortos e feridos.

Tudo isto, porém, não obsta a que seja necessário e urgente adoptar medidas que protejam o cidadão comum (os não-comuns têm protecção própria) dos ataques terroristas, provenham eles de islamistas convictos, de islamistas ocasionais ou de simples loucos furiosos. E como não pode (não deve) haver condenação sem acusação e acusação sem provas, é preciso que a Justiça funcione eficazmente no quadro legal e que as polícias actuem também no âmbito das prerrogativas que lhes estão outorgadas. Sem transigências e sem excessos, mas com o bom senso que as circunstâncias exigem.

Não vale a pena, nem seria possível, como pretendem alguns sectores políticos, fechar as fronteiras da Europa. Os presumíveis terroristas estão cá dentro, há muito tempo. Agora, è tardì!

Também seria contraproducente encerrar mesquitas, mas importa estar atento às prédicas dos imames. Aliás, parece que a maior parte dos terroristas conhecidos não frequentava mesquitas.

Lamentavelmente, nunca se concluiu o debate entre integracionismo e comunitarismo relativamente às minorias sócio-religiosas em solo europeu. E com as implantações actuais é uma discussão que, dado o seu atraso, perdeu oportunidade.

O terrorismo, que não é um fenómeno exclusivo dos nossos dias, importa relembrar, tem de ser combatido nas causas e não nas consequências, mais através de meios políticos do que militares. É necessário desmantelar o Daesh (nem se percebe como foi criado, ou talvez...) mas não é suficiente. Bombardear populações indefesas só aumentará a vontade de vingança. Se os políticos europeus estão à altura de enfrentar este desafio é a imensa interrogação que se coloca e cuja resposta suscita as maiores dúvidas.

Regresso ao "ressentimento". É porventura o ponto de maior complexidade mas aquele que permitirá alguma compreensão do fenómeno e que é sistematicamente descartado em nome do politicamente correcto. "Pelos frutos os conhecereis" (Mateus, VII, 16).

Muito mais haveria para dizer a propósito, mas fica para outro dia...


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