segunda-feira, 11 de julho de 2016

AS MEMÓRIAS DE MAURICE ROSTAND




 "Maurice Rostand... Ce que je lui dois est innombrable et inestimable"

(Marcel Proust, Correspondance)


"Pour le brave coeur de Maurice Rostand je donnerais bien des intellects"

(Jean Cocteau, Le passé défini)


Consegui adquirir em França, há já alguns anos, num golpe de sorte, um exemplar usado das memórias de Maurice Rostand, Confession d'un demi-siècle (1948). Porque outras leituras se revelaram entretanto mais urgentes, só agora tive oportunidade de ler o livro onde o filho de Edmond Rostand (o célebre autor de L'Aiglon e de Cyrano de Bergerac) descreve a sua vida e a vida da família, o meio teatral francês, a sociedade parisiense da época, as amizades particulares (para utilizar a expressão de Roger Peyrefitte), enfim, muitas curiosidades de uma existência mundana na primeira metade do século passado.



Maurice Rostand (1891-1968), nasceu em Paris, foi autor de numerosos livros (teatro, romance, poesia) e algumas das suas peças obtiveram assinalável sucesso. Todavia, Maurice, irmão do famoso  cientista Jean Rostand, distinguiu-se especialmente por ter sido uma das mais evidentes personalidades homossexuais francesas do período que mediou entre as duas guerras mundiais.

Começa Maurice Rostand por evocar o seu nascimento, a infância, a juventude e a entrada na idade adulta. Tudo pontuado pela vida da família, especialmente do pai, que foi à época um dos grandes vultos do teatro francês. São contados os aspectos que rodearam a criação de algumas peças, designadamente Cyrano, e é omnipresente a figura de Sarah Bernhardt, que convivia de perto com Edmond Rostand, de quem foi amante e de cujas obras foi extraordinária intérprete. Aliás, Maurice não deixa de referir as muitas peculiaridades da famosíssima actriz, um dos ícones do teatro francês e mundial das últimas décadas do século XIX e das primeiras do século XX.

A partir dos vinte anos, Maurice começa a relacionar-se com as principais personalidades da literatura e da vida social, nem sempre coincidentes, e conhece Jean Cocteau, Pierre Loti, Robert de Montesquiou, François Mauriac, Georges Feydeau, Léon Blum, Anna de Noailles, Abel Bonnard, Gabriele d'Annunzio, Duquesa de Pierrebourg, Marcel Proust, Ramon Fernandez (pai de Dominique Fernandez), Lucien Daudet, Don Louis d'Orléans-Bourbon (e os principais favoritos deste, o português António de Vasconcellos e o argentino José-Maria Soto, dois rapazes encantadores, segundo o autor),  Raymond Poincaré (que foi presidente da República Francesa), Francis Carco, Pierre Louÿs, Pierre Benoît, Maurice Sachs, Roland Dorgelès, Roger Peyrefitte, Guy des Cars, o marechal Lyautey, Sacha Guitry, etc., etc.

Ao longo da sua via, Maurice Rostand empenhou-se em exaltar a obra do pai, e quiçá seguir-lhe as pisadas, não tendo contudo, apesar de alguns romances e peças de teatro com aceitação, logrado alcançar a glória que os franceses tributaram a Edmond de Rostand. Nem foi recebido entre os Imortais, como o pai e o irmão Jean, pois a Academia Francesa não lhe abriu as portas.

Não quero deixar de realçar um aspecto digno de nota nestas memórias de Maurice Rostand: ao contrário de muitos escritores, que se servem deste género literário para ajustarem contas com terceiros, Maurice não diz mal nem dos amigos, nem dos concorrentes literários, resolutamente de ninguém. Ao invés, não perde a oportunidade para elogiar aqueles, que por uma ou outra razão, consigo se cruzaram ao longo de uma excitante vida. Auxiliou sempre quem necessitasse da sua influência ou mesmo do seu dinheiro, desinteressadamente, coisa já então rara. E mesmo quando uma obra literária não lhe agradava, encontrava nela algum mérito que lhe permitisse louvar o respectivo autor.

Católico, foi também um pacifista e um socialista, tal como o pai e o irmão. Dotado de uma cortesia extrema, aliada a um profundo sentido de humor, era um "coração de ouro", segundo o testemunho dos seus contemporâneos.



Em 1994, Christian Gury, advogado na Cour d'Appel de Paris e autor de várias obras sobre homossexuais franceses que se tornaram célebres (Proust, Barthes, o marechal Lyautey, o cardeal Grente, por exemplo), publicou L'extravagant Maurice Rostand - Un ami de Proust et de Cocteau, onde descreve, a traços largos, a carreira exuberante desta personagem, recorrendo em parte às suas memórias, mas acrescentando coisas que o filho de Edmond Rostand e de Rosemonde Gérard se abstém de contar, por natural discrição familiar. Ficamos assim a saber que o casal exemplar para o mundo era tudo menos isso, que Edmond teve inúmeras amantes mas manteve-se sempre insatisfeito (como Don Juan, o que leva Gury a suspeitar da sua homossexualidade "inconsciente") e que Rosemonde, que viveu até ao fim agarrada ao filho, teve também numerosos amantes, alguns amigos (e possivelmente mais do que isso) de Maurice.

O livro de Maurice Rostand, escrito naturalmente ao estilo peculiar do autor e à maneira de grande parte dos livros coevos do género, insistindo demasiado nas figuras que com ele se cruzaram no decorrer de uma vida aparentemente frívola, mas não tanto como se poderá deduzir à primeira vista, contém, todavia, alguns nacos de prosa que nada ficam a dever aos grandes escritores e consagra reflexões que revelam um conhecimento profundo dos homens (estou a referir-me à humanidade, como é óbvio) e das suas motivações mais profundas. Abrangendo o período que decorre do nascimento do autor até 1940 (depois da morte da mãe, sua eterna companheira, Maurice entrou em depressão profunda e passou os últimos anos da sua vida recolhido por seu irmão Jean), Confession d'un demi-siècle ilustra especialmente um período crucial da vida francesa, o intervalo entre as duas guerras mundiais, isto é, o fim de uma determinada maneira de estar e de viver, e o começo de outra que, alucinadamente se vem prolongando até aos nossos dias.

Desenganem-se, porém, os que pensam encontrar nestas memórias a descrição das aventuras sentimentais de Maurice Rostand. Em matéria de relações íntimas, que Maurice cultivou abertamente, o livro é de uma discrição que poderíamos considerar mesmo excessiva. Apenas uma frase ou outra permitem subentender que para lá de um convívio social existiu algo de mais profundo, o que sendo um mérito é também uma lacuna para a história dos costumes. Nem se poderá invocar o respeito pela privacidade alheia, já que a maioria das figuras envolvidas estaria morta à data da publicação da obra. Mas respeita-se, obviamente, a opção do autor.

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