sexta-feira, 15 de julho de 2016

ATÉ QUANDO?




O ataque perpetrado ontem à noite em Nice é um acto horrível, que suscita profunda emoção e reclama a condenação absoluta do(s) seu(s) autor(es). Mas, independentemente da novidade do procedimento, não foi um ataque inesperado, uma vez que o autodenominado Estado Islâmico prometeu a prática continuada de acções semelhantes, designadamente em território europeu. Nem se pode dizer que a França estivesse desprevenida, pois, et pour cause, vigora desde os atentados de Paris o estado de emergência, que, aliás, foi agora prorrogado por mais três meses. A realidade ontem vivida em Nice permite-nos todavia concluir que tal estado excepcional para pouco ou nada serve, apesar de frequentemente nos ser dito que graças às medidas policiais foram evitados numerosos atentados nos últimos tempos. Como não temos acesso a essa informação, não a podemos confirmar ou infirmar.

Esta vaga de terrorismo dito islâmico, já que é suposto que todos os seus autores são muçulmanos e do qual o Daesh costuma reivindicar a autoria, tem assumido proporções significativas nos últimos anos, nomeadamente em solo europeu, mas não só (Istanbul, Baghdad, etc.,etc.), o que suscita a questão de saber se há dois alvos a atingir ou tão só dois meios de atingir o mesmo objectivo.

É incontroverso que esta onda de violência, nos presentes moldes, se iniciou após a invasão do Iraque, e a seguir da Líbia, com as tão aclamadas "primaveras árabes" e com a trágica guerra que continua a devastar a Síria.  É certo que o "mal-estar" no Médio Oriente e na África do Norte vem de trás: das colonizações francesa e britânica, com o propósito de uma "missão civilizadora"  junto de povos com civilizações muito anteriores à civilização ocidental, dos acordos Sykes/Picot, da Declaração Balfour, da criação do Estado de Israel, da manutenção manu militari da dinastia reinante na Arábia Saudita e principados aliados, etc. Mas nunca, antes da sinistra coligação encabeçada por Bush e Blair, se assistira ao espectáculo que aos nossos olhos é dado contemplar.

Tem insistido a comunicação social ocidental, sabe-se lá porque vias, que estamos face a um fundamentalismo islâmico e que as motivações destes actos terroristas é de carácter religioso. Oportunamente, os grandes islamólogos franceses vêm sustentando nos últimos tempos duas posições distintas: para uns, assiste-se a uma radicalização do islão, para outros a uma islamização do radicalismo. Tenho amigos nos defensores de ambas as correntes. Pessoalmente, partilho a segunda hipótese.

O modo como a França está gerindo esta crise, pois é já de uma crise que se trata, é risível. François Hollande, e com ele o seu governo com Manuel Valls à cabeça, ainda não compreendeu que não é declarando guerra ao terrorismo ou indo invadir outros países que resolverá o problema da segurança em França. Ainda há pouco tempo, Hollande preparava-se para invadir a Síria e derrubar o regime de Assad. No último minuto, graças a um telefonema de Obama, recuou, e a firmeza de  Vladimir Putin não foi alheia a essa decisão. Os terroristas são cidadãos franceses, nascidos e criados em França, e ocorrendo que a maioria tem antepassados árabes, nem sabemos das convicções religiosas profundas de muitos dos autores dos ataques. Sabemos, sim, que são normalmente indivíduos excluídos da sociedade e sem perspectivas de vida.

Acontece, também, que a Europa vem acolhendo no seu seio milhões de refugiados das guerras por ela e pelos Estados Unidos provocadas, embora não conste que haja refugiados entre os promotores dos atentados. Mas essa mão-de-obra barata, que tanto jeito faz ao Ocidente, e cujo ingresso no Velho Continente será impossível impedir (Umberto Eco dixit já há mais de vinte anos) constituirá um terreno de ressentimento propício a acções violentas.

Durante décadas a Europa tratou os imigrantes, nomeadamente os maghrebinos, como lixo. Assistimos agora ao reverso da medalha. Mesmo encerrando as fronteiras com muralhas, elas sempre serão permeáveis à passagem dos damnés de la terre (na expressão de Frantz Fanon). Nem o inenarrável "comércio" de Merkel com Erdogan, para os manter em "campos de concentração" na Turquia, servirá para alguma coisa.

Há ainda um aspecto curioso aquando destes ataques terroristas. Os seus autores, quando detidos, todos mortos à excepção de Salah Abdeslam, transportam sempre consigo a identificação,  permitindo às polícias investigar o seu passado e inquirir junto da família e vizinhos sobre os seus antecedentes. Como não acredito na tese de que pretendem averbar o seu registo como  mártires, fico sempre com imensas dúvidas acerca dessa preocupação identitária. Recordo-me, agora, de que os serviços policiais americanos, no dia seguinte ao ataque, informaram urbi et orbi que tinham encontrado entre os destroços das Torres Gémeas de Nova Iorque o passaporte de Mohammed el-Atta, um dos presumíveis desviadores de um dos aviões que colidiu contra as torres. Possivelmente intacto.

Muito haveria a escrever mas não vale a pena alongar-me. A questão do "terrorismo islâmico" é mais política do que religiosa. Nem se resolverá pela força das armas, antes pelo contrário. Consiga-se repor alguma ordem, se tal ainda for possível, no Médio Oriente, evite-se o aproveitamento que imams (ao serviço de quem?) fazem do descontentamento dos expulsos das suas terras, promova-se a melhoria de vida na região ao contrário de sugá-la até à última gota de petróleo e ao último jacto de gás.

Que obscuros interesses permitiram a rápida criação e armamento do Estado Islâmico, numa superfície superior à de Portugal? E porque susbsiste ainda hoje? Perguntas sem resposta!

Depois do mortífero atentado de ontem, ignoro que medidas adicionais poderá tomar Hollande, que protecção especial poderá reivindicar a Europa. Aguardemos. Mas compartilho do receio de todos aqueles que pensam que uma fuga para a frente só poderá comprometer ainda mais a segurança e a paz.


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