terça-feira, 26 de julho de 2016

A TURQUIA MODERNA




Numa das minhas últimas idas a Istanbul (visitei a cidade oito ou nove vezes) há cerca de dez anos, comprei numa interessante livraria que costumava frequentar, ao fundo da Istiqlal Caddesi, na esquina oposta ao Liceu de Galatasaray, o livro que refiro abaixo.

Trata-se de uma obra cuja leitura deveria ser obrigatória para todos quantos hoje falam e escrevem sobre os mais recentes acontecimentos na Turquia, seja na televisão, na rádio, nos jornais, e mesmo no facebook: Turkey: A Modern History, de Erik J. Zürcher, professor da Universidade de Amesterdão.

Publicado pela primeira vez em 1993, e reeditado várias vezes, é uma das obras mais rigorosas sobre a evolução da Turquia desde o começo do declínio do Império Otomano até finais do século passado, abordando as reformas de Selim III e de Mahmut II, visando a modernização do país, as perturbações internas, o despotismo de Abdülhamit II, a Primeira Guerra Mundial e o desmembramento do Império, os "Jovens Turcos", a Guerra da Independência, a extinção do Sultanato e a consequente abolição do Califado, a proclamação da República, as lutas intestinas e as primeiras décadas do novo regime.

Existe na opinião pública, e publicada, a ideia de que Mustafa Kemal Pasha, um dos heróis da luta pela conservação da maior parte do território remanescente do Império, assumiu sem objecções a liderança do novo país. Nada de mais errado.

A carreira de Mustafa Kemal, presidente da Grande Assembleia Nacional, a qual, sob sua pressão e dos seus apoiantes haveria de proclamar, inopinadamente, a República, em 29 de Outubro de 1923, na ausência dos seus mais eminentes companheiros de combate, e escolhê-lo a si mesmo para primeiro presidente, foi recheada de escolhos.

Dotado de grande inteligência e de particular habilidade política, Mustafa Kemal desembaraçou-se sucessivamente dos seus opositores e mesmo dos seus partidários e amigos que lhe poderiam ensombrar a carreira, e foi inicialmente alvo de grande contestação no país, indignado com os seus métodos, com as reformas que foi introduzindo e que visavam não só a modernização como principalmente a ocidentalização da Turquia e também a consolidação da sua autoridade e do seu prestígio pessoal.

Apesar de um passado conturbado, a família imperial, talvez pelo seu peso histórico, gozava ainda de grande prestígio entre a população, e a extinção da Monarquia e o exílio do último sultão provocaram profundo descontentamento, agravado com a abolição do Califado, instituição que simbolizava não só a chefia dos muçulmanos turcos mas dos muçulmanos de todo o mundo.

Também a transferência da capital de Istanbul, cidade histórica por excelência, que já se chamara Bizâncio e Constantinopla, para Ankara, localidade apagada no centro do país mas que servira de contrapoder durante a oposição dos "revolucionários" aos governos dos últimos grão-vizires, provocou evidente mal-estar.

Seguiram-se as reformas cujo objectivo era a alteração dos costumes: a proibição do uso do fez pelos homens, substituído pelo chapéu ocidental, a interdição do porte de véu pelas mulheres em todos os estabelecimentos públicos, a eliminação dos títulos de cortesia Effendi, Bey, Pasha, a adopção da legislação civil e judicial ocidental e, last but not least, a substituição do alfabeto árabe pelo alfabeto latino (com ligeiras modificações) na língua turca, que constituiu um ciclópico trabalho de adaptação, mas que hoje se encontra de tal forma vulgarizado na população que tendo eu pedido, por mais do que uma vez, a jovens turcos (liceais ou universitários) para me lerem inscrições antigas em monumentos, redigidas em turco ainda com caracteres árabes, eles foram absolutamente incapazes de compreender o que se encontrava escrito.

É inegavelmente imensa a contribuição de Mustafa Kemal para a modernização da Turquia, para o seu desenvolvimento económico, para a nova orientação da política externa. Mas com que custos? Uma contabilidade que nunca foi efectuada, e talvez não pudesse ser de outra forma.

O recente "golpe de Estado" abortado contra Recep Tayyip Erdoğan, de contornos ainda mal definidos mas que o levou já a adoptar medidas drásticas contra os presumíveis golpistas e a generalidade dos seus opositores, fez-me lembrar um episódio semelhante ocorrido há cerca de um século.

Em 15  de Junho de 1926, quando Mustafa Kemal se preparava para visitar Izmir (Esmirna), foi descoberta uma conspiração para o assassinar. Esta tentativa, verdadeira ou falsa, constituiu pretexto para Kemal, com o apoio do dedicado amigo Mustafa Ismet Inönü, seu antigo companheiro de combate, primeiro-ministro, e que viria a suceder-lhe na presidência da República, se desembaraçar do que restava da oposição à sua absoluta liderança, com inúmeras prisões e enforcamentos, depurações em massa, silenciamento da imprensa (já então muito submissa) e com a instituição do Partido Republicano do Povo (PRP), em turco Cumhuriyet Halk Partisi ou CHP, como partido único, que passou a governar a Turquia sem oposição até ao fim da Segunda Guerra Mundial

A semelhança dos dois episódios recorda-me a asserção de Karl Marx no seu livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, quando sustenta que os grandes eventos repetem-se sempre na História: a primeira vez ocorrem como tragédia, a segunda vez como farsa.

A secularização da Turquia iniciada por Mustafa Kemal tornou-se imparável, e as Forças Armadas, onde o presidente atingiu o posto de marechal, constituíram-se fiéis depositárias dessa herança, que têm defendido, inclusive através de golpes de Estado, só começando a perder poder com a contra-revolução de Erdoğan, um Kemal às avessas, cujo objectivo, desde o tempo de presidente da  Câmara Municipal de Istanbul, de primeiro-ministro, e agora de presidente da República, é reverter o legado kemalista e proceder à reislamização do país. As purgas e prisões nas forças armadas, e também na magistratura, no ensino e nos meios de comunicação social, e a dúplice política externa, fazem de Erdoğan um homem perigoso não só para os turcos esclarecidos mas para todo o Médio Oriente e para a Europa. O actual presidente turco aspira não só ao completo controlo do poder secular mas, se lhe for possível, também à chefia do poder espiritual, transformado numa espécie de califa ad hominem, na ausência de uma autoridade religiosa centralizada do Islão.

Qundo morreu, em 10 de Novembro de 1938, Mustafa Kemal, já então conhecido por Kemal Atatürk (o Pai dos Turcos) - o apelido foi-lhe concedido em 1934 pelo Parlamento e o seu uso definitivamente proibido para qualquer outra pessoa - tinha-se tornado uma figura mais ou menos consensual (problema dos Kurdos à parte) e era objecto de veneração da Pátria.

O leito onde morreu, no seu quarto do palácio imperial de Dolmabahçe, em Istanbul, ainda hoje está coberto com a bandeira turca, e todos os relógios do monumental edifício, mandado construir em 1843 pelo sultão Abdülmecid I, foram parados à hora do seu passamento.

Suspeito que Erdoğan não terá uma morte tão pacífica como o fundador da Turquia  moderna.


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