segunda-feira, 29 de setembro de 2014

AD-DAWLA AL-ISLAMIYYA


Mapa em transformação constante


As muitas interrogações provocadas pelo (não) súbito surgimento do chamado Estado Islâmico (EI), aparecido na Síria e no Iraque em 2013, supõem algumas breves respostas.

Autodenominado Estado Islâmico no Iraque e no Levante (ISIL) ou Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS), em árabe Ad-Dawla al-Islamiyya fi al-Iraq wa ash-Sham, conhecido pelo acrónimo DAISH [o Levante designa o território da Síria (e regiões vizinhas) a que os árabes também chamam Sham, designação que igualmente se aplica a Damasco] ou ainda novo Califado, o EI não apareceu por geração espontânea.

Há muitos anos, especialmente desde a queda do Império Otomano, que o Médio Oriente é uma região agitada. A sua repartição geográfica, no fim da Primeira Guerra Mundial, fruto do Acordo Sykes-Picot e da Declaração Balfour, porque ignorou as mais elementares realidades locais, atendendo apenas aos interesses estratégicos da Grã-Bretanha e da França, maxime o petróleo, foi um verdadeiro desastre. Mas porque uma desgraça nunca vem só, a consumação da tragédia teve lugar em 2003, com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, acompanhados pela inevitável Grã-Bretanha (desta vez a França ficou de fora) e por mais alguns comparsas, com o falso pretexto invocado por George W, Bush da existência de armas de destruição maciça. Este acto, cujas consequências são cada vez mais assombrosas, e que provocou cerca de cinco milhões de mortos, feridos, estropiados, loucos, desalojados, é um dos maiores crimes da história contemporânea, ainda mais funesto que o bombardeamento atómico de Hiroshima e Nagasaki.

O caos verificado no Iraque após a deposição e posterior enforcamento de Saddam Hussein levou à progressiva constituição de diversos grupos armados - muitos deles enquadrados por antigos oficiais (sunitas) do exército iraquiano e outros compostos por aguerridos fundamentalistas -  formados com o objectivo de contestarem a ocupação americana e mais tarde o governo do xiita Nuri al-Maliki, primeiro-ministro desde 2006. Alguns desses grupos obedeciam às directivas da Al-Qaïda, mas a sua implantação real no território iraquiano era modesta. Com a eclosão das chamadas "primaveras árabes" em 2011, um fenómeno ainda mal explicado e cuja origem suscita as maiores dúvidas, a guerra civil na Síria constituiu uma oportunidade para o desenvolvimento dos movimentos de guerrilha, rapidamente convertidos em movimentos terroristas. Primeiro, surge a Frente de Apoio ao Povo da Síria (Jabhat al-Nusra), criada em 2012 e a que nos referimos aqui e aqui, filiada na Al-Qaïda, e que combate simultaneamente as tropas do regime sírio e os guerrilheiros da "oposição democrática" a Assad. Depois, ganha peso o já existente, desde 2003, movimento terrorista do Iraque, dirigido a partir de 2010 por Abu Bakr al-Baghdadi, autoproclamado Califa Ibrahim em 2014, que pretende suplantar a rede do desaparecido Ben Laden, da qual se desvinculou, e que consegue adquirir uma significativa dimensão territorial no norte do Iraque e constituir importantes "corredores" no leste e norte da Síria.

Como é possível que, neste momento, o Estado Islâmico controle as regiões assinaladas no mapa acima, proceda a execuções sumárias, promova atentados noutras regiões do globo e ameace de morte todos os cidadãos ocidentais?

A capacidade operacional do EI decorre da ingenuidade, ignorância ou má-fé do Ocidente. Ao longo dos últimos anos, por interesses nem sempre convergentes, os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, mas também a Turquia, Israel, a Arábia Saudita e o Qatar, entre outros, forneceram apoio militar e financeiro aos opositores do presidente Assad, não só aos ditos "democráticos" mas igualmente aos fundamentalistas, com o firme propósito de derrubar o regime sírio. Acresce que as  monarquias do Golfo viam com bons olhos o desenvolvimento dos combatentes fundamentalistas que, sendo sunitas, constituiriam uma barreira à actividade do governo xiita do Iraque e, especialmente, às ambições do Irão. Dessa improvável congregação de vontades só poderia resultar a situação actual. Os apoios em dinheiro vieram primeiro dos países citados e posteriormente do imposto revolucionário cobrado nas regiões ocupadas, dos roubos, do confisco de 400 milhões de dólares do Banco Central de Mossul - quando os guerrilheiros tomaram esta cidade, a segunda do Iraque - e do rendimento da venda do petróleo dos poços que já se encontram em seu poder. Basta essa fortuna para adquirir armas aos sempre solícitos fornecedores do ramo. Também, quando forçaram o exército regular iraquiano a fugir para sul do país, os terroristas apoderaram-se do respectivo armamento, a maioria do qual fora cedido pelos americanos. Além disso, não  carecem especialmente de recursos humanos, pois para lá dos naturais apoiantes, contam com os djihadistas vindos do Afeganistão, com as populações locais forçadas a integrar as suas tropas, com o aliciamento de europeus e americanos convertidos ao islão.

É, portanto, neste caldo de cultura, que se perfila a ameaça da conquista do Médio Oriente, numa primeira fase e, posteriormente, de todo o norte de África e mesmo da Península Ibérica, no esforço de restabelecer o Califado criado no tempo dos primeiros sucessores do Profeta.

Na sua cruzada fundamentalista, os guerrilheiros do EI perseguem e executam não só cristãos mas igualmente muçulmanos xiitas, yazidis, drusos e mesmo os curdos que os enfrentam, ainda que estes sejam na maioria sunitas. Trata-se, de facto, de uma guerra santa ou de algo como tal disfarçado, já que existem teorias que sustentam que o zelo dos combatentes islâmicos tem mais a ver com outro tipo de razões, bastante alheias à propagação da fé.

Para neutralizar o perigo que estes extremistas representam para as populações locais e também para a "boa ordem ocidental", resolveram agora os Estados Unidos promover uma ampla coligação de países com a missão de atacar in loco os guerrilheiros de Allah. Por ironia, os mesmos (ou quase) países que os tinham apoiado ou tolerado durante os últimos anos. E assim, temos novamente os EUA a bombardear o Iraque (e a Síria) uma década depois da famigerada invasão.

Porque o argumento e o cenário desta tragédia estão em contínua mutação, não é possível prever com algum rigor o evoluir da situação no terreno, mas podemos reter a certeza de que as convulsões no Médio Oriente vieram para ficar ainda por muito tempo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Excelente análise. Há mais a dizer mas não caberia num post.

Eduardo Freitas disse...

Excelente post, Júlio.

Deixo um link que julgo interessante de uma intervenção recente na Câmara dos Comuns:

https://www.youtube.com/watch?v=cVgSAniqfRs

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Obrigado pelo comentário, Eduardo, e pela indicação da intervenção de George Galloway nos Comuns.