segunda-feira, 15 de setembro de 2014
A DÍVIDA PÚBLICA PORTUGUESA
A publicação, há pouco mais de um mês, do livro de João Cravinho A Dívida Pública Portuguesa, não teve na imprensa nacional o relevo que seria suposto merecer uma obra tratando um tema que interessa necessariamente todos os portugueses.
Além do próprio texto de João Cravinho o volume inclui a Proposta Modesta para Resolver a Crise da Zona Euro (A Modest Proposal for Resolving the Eurozone Crisis), de James Kenneth Galbraith, Stuart Holland e Yannis Varoufakis, o Plano PADRE - Reestruração da Dívida Politicamente Aceitável na Zona Euro (Politically Acceptable Debt Restructuring in the Eurozone), de Pierre Pâris e Charles Wyplosz, o Relatório Final do Grupo de Peritos Sobre um Fundo para Amortização da Dívida e Eurobills (Final Report of the Expert Group on Debt Redemption Fund and Eurobills), presidido por Gertrude Tumpel-Gugerell e ainda o chamado Manifesto dos 74, subscrito por um grupo de personalidades portugueses abrangendo um alargado leque de sensibilidades ideológicas e políticas.
Começa João Cravinho por se referir à mistificação política da crise das dívidas soberanas na zona euro, afirmando - como toda a gente minimamente informada já sabe - que «A brutal imposição da austeridade a qualquer custo insere-se, em primeiro lugar, e acima de tudo, na finalidade de salvar os bancos e o sistema bancário. Mas é óbvio que os líderes europeus, a Comissão Europeia, o BCE e o FMI nunca poderiam deixar transparecer, muito menos assumir, a existência desse nexo entre austeridade e salvação da banca.»
Diz mais: «Mas o engodo da crise bancária não era tudo. Os decisores viram-se de repente perante uma inesperada e extraordinária oportunidade, daquelas que só surgem de século em século. Podiam finalmente moldar o pós-crise segundo novos paradigmas políticos e sociais fundados nas "realidades" do século XXI, em vez de continuarem escravos de abencerragens que poderiam ter tido alguma justificação há mais de cinquenta anos mas que hoje não só estariam obsoletos, como seriam, de facto, as mais poderosas forças de bloqueio da competitividade e eficiência da economia de mercado.»
«Nesta óptica, à incontornável premência de garantir a consolidação sistémica da banca soma-se a irresistível tentação de reconfigurar radicalmente o contrato social, sem a maçada de tentar ganhar mandato democrático - que implicaria uma prolongada luta corpo a corpo, para mais tratando-se de um combate de desfecho negativo praticamente certo.»
«De uma só cajadada matam-se dois coelhos; salva-se a banca e retorce-se o Estado Social, inimigo jurado do Estado Fiscal Mínimo e do Contrato Social na base da responsabilidade individual máxima perante todo o tipo de riscos. Seria a liquidação fácil, embora tardia, do compromisso histórico no âmbito dos Estados-Nação a que o capitalismo industrial foi forçado depois da Grande Depressão dos anos 30 do século passado e da catástrofe da I Guerra Mundial.»
E ainda: «No projecto europeu, onde se pensava que o défice democrático era a lamentável fraqueza das instituições europeias em contraste com o normal funcionamento da democracia no interior dos Estados-Membros, hoje sabe-se que a maior e porventura mais fatal consequência da actual estratégia europeia é subordinar a democracia nos Estados-Membros aos ultimatos ideológicos de instituições supranacionais. E estas revelam-se cada vez menos democráticas e cada vez mais opacas, menos respeitadoras da vontade política legitimamente expressa pelos cidadãos e mais misteriosas sem que se saiba a quem prestam contas na realidade.»
A verdade, é que as instituições supranacionais obedecem a poderosos interesses, designadamente à ambição germânica de reconstituir a Grande Alemanha (se possível sem o recurso à via militar) protagonizada pelo governo de Angela Merkel mas de facto dissimuladamente apoiada pelos grandes industriais e financeiros alemães, os herdeiros e sucessores daqueles que há perto de um século sustentaram Adolf Hitler.
Ao longo dos nove capítulos do livro, João Cravinho, em linguagem técnica mas não necessariamente inintelegível para os não iniciados, debruça-se sobre a crise da dívida pública em Portugal e na Zona Euro e sobre aspectos da redução da dívida, sobre a austeridade, o crescimento, os erros sistemáticos das previsões oficiais e a reestruturação grega. Discorre ainda sobre o Manifesto dos 74 e as soluções europeias em agenda.
Não cabe aqui analisar e discutir as propostas de Cravinho, nem elaborar sobre os outros documentos que integram o volume.
Por isso, apenas se referirá que a Proposta Modesta considera que a Crise Europeia é uma crise quádrupla: bancária, das dívidas soberanas, de subinvestimento e social. E que, atendendo a quatro limitações politicas incontornáveis, existem também quatro medidas: uma resolução da crise bancária caso a caso; um programa limitado de conversão das dívidas; um programa de investimento a favor do crescimento e da coesão e um programa urgente de solidariedade social.
O Plano PADRE parte do princípio de que qualquer reestruturação da dívida implica custos que têm de ser suportados por alguém. Propõe por isso a transformação de parte das dívidas existentes em títulos perpétuos isentos de juros, o que significa que os montantes correspondentes são efectivamente eliminados (e deixarão de aparecer nos valores declarados de dívidas). Os seus autores analisam a lógica económica da reestruturação da dívida, os condicionamentos e opções políticas, os cenários alternativos e inventariam até alguns riscos. Mas concluem que a adopção do Plano terminaria imediatamente a crise da dívida soberana e daria aos governos o espaço de que precisam para conseguirem realizar uma urgente recuperação, deixando a política orçamental como o último instrumento macroeconómico nas mãos de cada Estado. «A única resposta é que é inevitável recorrer a algum tipo de reestruturação da dívida. Quanto mais tempo esperarmos, mais altos serão os valores envolvidos.»
O Relatório Final do Grupo de Peritos assenta fundamentalmente na criação de um Fundo e um Pacto para a Amortização da Dívida (DRF/P - Debt Redemption Fund and Pact) e a emissão conjunta de títulos da dívida pública a curto prazo (eurobills). Os relatores analisam as variáveis a considerar e eventuais riscos, mas consideram que «tanto um DRF/P como os eurobills seriam meritórios para estabilização dos mercados de dívida publica, apoio à transmissão da política monetária, promoção da estabilidade e integração financeiras.»
Sobre o Manifesto dos 74, já escrevemos aqui, em Março passado, aquando da sua divulgação. Os seus considerandos permanecem actualíssimos e as propostas também: o abaixamento da taxa média de juro, o alongamento dos prazos da dívida e a reestruturação da mesma pelo menos acima de 60% do PIB.
É evidente que a inevitável resolução da presente "crise das dívidas soberanas" (há uma longa história: entre 1820 e 2012 houve 251 defaults soberanos e desde a Segunda Guerra Mundial, 425 renegociações da dívida) depende fundamentalmente de opções políticas. Políticas e sociais.
A ideologia neo-liberal que predomina no Mundo Ocidental defende o Estado Mínimo e, consequentemente, o Estado Social Mínimo. Tudo deve ser privatizado, até a guerra, facto a que, aliás, já se assiste. Logo, as propostas para resolução das dívidas são rapidamente afastadas por esta ou aquela razão, porque há que aproveitar o momento para proceder à destruição do sistema social que a Europa Ocidental (a Leste também existia, em moldes diferentes) implementou progressivamente desde há perto de um século. E os tratados europeus e o desenho da Zona Euro facilitam a mistificação.
Porém, e esta opinião é sustentada por figuras dos mais diversos quadrantes ideológicos, com exclusão dos arautos do fundamentalismo capitalista, o problema terá mesmo de ser resolvido - e a curto prazo. O protelamento de decisões, já hoje inadiáveis, não só provocará gravíssimas convulsões nos países sujeitos às medidas impostas por entidades anti-democráticas e o consequente desmoronamento dos respectivos regimes, como arrastará na queda os países que se opõem à adopção de soluções compatíveis com a gravidade da situação.
Avisadamente, o Papa Francisco advertiu ontem que estamos a começar uma Terceira Guerra Mundial.
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