Foi publicado no mês passado o livro La familia grande, de Camille Kouchner, em que a autora relata a
história da sua família, nomeadamente o caso do assédio sexual ao seu irmão
gémeo (então com 13 anos, à vezes aparece com 14, segundo o livro ou a
informação divulgada na imprensa), ocorrido há mais de 30 anos, por parte do padrasto de ambos, o professor
Olivier Duhamel, um dos mais prestigiados politólogos e juristas franceses,
professor universitário emérito, deputado europeu e presidente da Fundação de
Sciences-Po.
Neste livro, que está a perturbar a França, e cuja intenção é, sem
dúvida, mais do que relatar a estória agitada da poderosa família, denunciar
publicamente aquele episódio, Camille Kouchner
modifica o nome de alguns intervenientes, pretensamente para proteger a sua
privacidade. Trata-se, todavia, de uma precaução inútil, já que é fácil
verificar as respectivas identidades, além do que o caso era desde há anos conhecido
do círculo mais restrito de familiares e amigos, embora o grande público o
ignorasse.
Assim, antes de me referir propriamente ao livro, entendi
conveniente inscrever as dramatis
personae:
- Bernard Kouchner (n. 1939) – Médico e político, fundador de
Médicins sans frontières e Médicins du monde (conhecido como o French Doctor),
militante comunista, depois socialista, foi ministro de várias pastas no tempo
de François Mitterrand, de quem era próximo. Mais tarde aceitou o convite de
Nicolas Sarkozy para sobraçar a pasta dos Negócios Estrangeiros, o que provocou
a sua expulsão do Partido Socialista. Recentemente, apoiou a candidatura de
Emmanuel Macron à presidência da República. Foi um defensor do “dever de
ingerência humanitária”, conceito que se substituiu ao de “direito de
ingerência humanitária” e sustentou o bombardeamento da Jugoslávia pela NATO,
sendo a seguir nomeado Alto Representante das Nações Unidas no Kosovo. Durante
a sua carreira, com intervenção pessoal ou política em diversos conflitos,
apoiou os Estados Unidos e o Reino Unido nas duas guerras do Iraque. Também as suas
posições relativamente ao conflito israelo-palestiniano são controversas. É
membro da Agência de Modernização da Ucrânia, com Bernard-Henri Lévy e
Karl-Georg Wellmann e é colaborador da Compagnie Edmond de Rothschild. Em 1977,
assinou com mais 69 personalidades um manifesto escrito por Gabriel Matzneff e
publicado em “Le Monde”, contra a detenção de pessoas suspeitas de relações com
menores então com 13 anos. Entre os subscritores contam-se Louis Aragon, Roland
Barthes, Simone de Beauvoir, Jean-Louis Bory, François Châtelet, Patrice
Chéreau, Copi, Gilles Deleuze, Bernard Dort, Jean-Pierre Faye, André
Glucksmann, Félix Guattari, Jean-Luc Hennig, Guy Hocquenghem, Jack Lang, Michel
Leiris, Jean-François Lyotard, Catherine Millet, François Ponge, Jacques
Rancière, Jean-Paul Sartre, René Schérer, Philippe Sollers e Hélène Védrine,
isto é, os maiores nomes da intelectualidade francesa da época.
Conheceu em 1964, aquando de uma viagem a Cuba, a sua futura
mulher Évelyne Pisier, a qual manteve então uma ligação com Fidel Castro. Passou
a viver com Evelyne, com quem partilhava as suas posições revolucionárias,
pouco antes do nascimento do primeiro filho de ambos, Julien (n. 1970). Em 1975
nasceram os gémeos, Camille e Antoine. Devido às suas longas ausências em
missões no estrangeiro, Évelyne decidiu separar-se em 1980, tendo-se divorciado
oficialmente em 1987. Desde a separação, Évelyne passou a viver com o
professor e jurista Olivier Duhamel. Bernard Kouchner tornou-se companheiro de
Christine Ockrent (1980), famosa jornalista, tendo tido um filho, Alexandre Kouchner (n.1986)
- Évelyne Pisier (1941-2017) – Militante feminista de esquerda,
apoiante dos movimentos revolucionários, jurista, professora universitária emérita da Sorbonne, alta funcionária do
Ministério da Cultura, escritora, conferencista, casou a primeira vez com
Bernard Kouchner, acima citado, em 1970. Tiveram três filhos, como acima se
referiu. Devido às longas ausências do marido no estrangeiro, separou-se em
1980, passando a viver com Olivier Duhamel, nove anos mais novo, com quem se
casou em 1987. O casal adoptou duas crianças chilenas, Aurore, em 1987, e
Simon, em 1989. Irmã da notável actriz Marie-France Pisier, os pais de ambas
suicidaram-se, o pai Georges, em 1986, com um tiro na cabeça e a mãe, Paula, em
1988, por envenenamento. Depois da morte da mãe, Evelyne tornou-se alcoólica e
veio a morrer numa operação a um cancro do pulmão.
- Julien Kouchner (n. 1970) – Filho
de Bernard Kouchner e de Évelyne Pisier, estudou na École Spéciale des Travaux
Publics, du Bâtiment et de l’Industrie de Paris. Especialista dos media e da transição digital é
director-geral do Groupe Profession Santé. Casado, tem um filho chamado Joachim,
nascido em 2009.
- Antoine Kouchner (n. 1975) – Filho de Bernard Kouchner e de
Évelyne Pisier, estudou na Universidade de Paris-Diderot e especializou-se em
electrónica e neurinos cósmicos. É professor-investigador do Laboratório de
Astropartículas e Cosmologia. Casado, tem três filhos. Terá sido abusado
sexualmente por seu padrasto Olivier Duhamel, desde os 13 anos e durante alguns
anos. Revelou o caso à irmã gémea Camille Kouchner, com a promessa de rigoroso
segredo mas esta viria a revelar o caso à mãe, que lhe pediu silêncio para
evitar a dissolução do seu casamento. Só depois da publicação do livro de
Camille, ele viria a apresentar queixa ao Ministério Público, estando todavia os
factos prescritos desde 2003.
- Camille Kouchner (n. 1975) – Filha de Bernard Kouchner e de Évelyne
Pisier, irmã gémea do anterior, mestre de conferências, publicou o livro La Familia Grande em 2021, onde denuncia
o abuso sexual continuado do seu padrasto na pessoa do seu irmão gémeo,
começado quando este tinha 13 anos. Vive com um companheiro, e tem filhos.
- Marie-France Pisier (1944-2011) – Irmã de Évelyne Pisier,
famosa actriz de teatro e de cinema, tendo trabalhado com os mais notáveis
encenadores e realizadores. Viveu com o actor Robert Hossein, foi casada com o
advogado Georges Kiejman (1973-1979) e depois com Thierry Funck-Brentano desde
2009, mas com quem já vivia a partir de 1984. Funck-Brentano é primo direito de
Olivier Duhamel. Foi encontrada morta pelo marido, no fundo da piscina da sua
residência, entalada numa cadeira metálica, tendo a polícia aberto um inquérito
e presumido tratar-se de um suicídio, embora a hipótese de assassinato não
fosse totalmente descartada. Marie-France estava zangada com sua irmã Évelyne, por
questões ideológicas e também por esta se opor à divulgação do abuso sexual do
cunhado sobre o sobrinho. Tornara-se alcoólica nos últimos anos.
Olivier Duhamel (n. 1950) – Um dos mais notáveis
constitucionalistas e politólogos, professor das universidades de Besançon,
Paris-Nanterre e Paris-Sorbonne e de Sciences-Po, presidente da Fundação
Nacional das Ciências Políticas, conselheiro da presidência do Tribunal
Constitucional Francês, deputado europeu, conferencista, ensaísta. Em 2020
assumiu a presidência do clube de influência “Le Siècle”. Esteve casado de 1974
a 1981 com Leïla Murat (n. 1953), descendente do príncipe Joachim Murat. Casou
em 1987 com Évelyne Pisier, com quem vivia desde os anos 1980. É acusado de
relações sexuais incestuosas com o seu enteado Antoine Kouchner, iniciadas
quando aquele tinha 13 anos de idade. Depois da divulgação pública deste caso, situação que ele contesta, demitiu-se de todos os seus cargos. Reconhecendo ter tido conhecimento destes
factos desde 2018, e tendo-os ocultado, também o director de Sciences-Po, Frédéric
Mion, se demitiu este mês das suas funções.
- Alexandre Kouchner (n. 1986) – Filho de Bernard Kouchner e de
Christine Ockrent, diplomado de Sciences-Po, analista político, jornalista,
actor e conselheiro em comunicação.
- Christine Ockrent (n.1944) – Jornalista célebre, escritora, apresentadora
do “Journal de 20 heures”, directora-geral do Audiovisual Exterior da França, membro
do Grupo de Bilderberg, vive desde 1980 com Bernard Kouchner, com quem teve um
filho, Alexandre Kouchner, acima referido.
- Thierry Funck-Brentano (n. 1947) – Homem de negócios, universitário,
administrador e director de Relações Humanas do Grupo Lagardère. Primo direito
de Olivier Duhamel, casou em 2009 com Marie-France Pisier, com quem vivia desde
1984. Há dois filhos desta união: Mathieu (n. 1984), actor e Iris (n. 1986),
actriz.
São estas as principais personagens referidas no livro La Familia Grande, ainda que a autora
tenha modificado alguns nomes próprios. Assim Julien Kouchner aparece citado
como Colin, Antoine Kouchner, como Victor, Alexandre Kouchner, como Adrien, os
filhos adoptivos chilenos, como Luz e Pablo, etc.
Os curricula, ainda que sumários, estão, relativamente aos parentescos, tão completos quanto pude averiguar, ignorando-se as datas mais recentes de alguns dos netos dos principais protagonistas.
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Tendo encomendado o livro por curiosidade, esperava que se
tratasse de uma prosa intragável, atendendo às repercussões do conteúdo na
imprensa. Devo confessar alguma surpresa ao lê-lo. O texto está razoavelmente
bem escrito e até cerca de metade do volume a história da família (e nunca se
sabe o que é verdadeiramente real ou o que é ficcionado) afigura-se coerente.
Quando a autora se começa a debruçar sobre o caso do “incesto” propriamente
dito e sobre os seus “problemas de consciência” em não ter denunciado
imediatamente os factos, e também sobre as suas relações com a mãe, com a tia, com os
irmãos e com o padrasto, então o texto torna-se verdadeiramente alucinante e muitas
vezes incompreensível. Afigura-se que pretende uma justificação para a sua denúncia
do caso mas que se sente simultaneamente culpada por tê-la feito e por ter
obrigado o irmão “abusado” a reconhecer publicamente a situação, ele que
sempre desejara o silêncio sobre esses episódios já antigos. Camille Kouchner
relata também os seus vários problemas de saúde, donde ressalta uma grande
instabilidade emocional. Poderemos até concluir que se trata de uma doente mental.
Para frisar bem a culpabilidade do padrasto, Camille transcreve (ignoro
se a transcrição é fidedigna) os artigos do Código Penal francês que condenam a
20 anos de reclusão criminal os culpados de violação e que consideram relações
incestuosas as praticadas por um ascendente ou colateral (digamos assim para simplificar)
seja "carnal", seja por um pacto civil. Isto é, a legislação francesa consagra o incesto
“por afinidade” (curiosa figura jurídica), quando sempre se definiu o incesto
através da consanguinidade. O facto, contudo, não me espanta, pois os franceses
atingiram já um patamar de delírio jurídico que se arrisca a ultrapassar as
controversas leis de Vichy, decretadas pelo marechal Pétain.
Também não é revelado no livro, “por pudor?” ou por ignorância
ou inexistência de factos, o tipo exacto de relações que o padrasto mantivera durante
anos com o seu irmão gémeo sem este nunca se ter queixado, excepto através de
uma confidência à irmã. Insinua esta que poderia tratar-se de acariciamento e felação
activa ou irrumação, por parte do padrasto. Deduz-se que nunca houve coito anal. Também não se diz se
o irmão exerceu alguma posição activa em relação ao padrasto. Talvez conste dos autos.
Para concluir, que este post já vai longo, devo referir que
Camille Kouchner, que viveu sempre no seio de uma grande família e de numerosas
amizades (atendendo ao seu elevado estatuto social) lamente que após a
revelação dos factos apenas um número restrito de pessoas se tenha solidarizado
com a sua atitude, passando muita gente a afastar-se dela: uns, preferiram
ignorar o que se terá verificado; outros acharam que estas coisas se resolvem no seio da
família e nunca se trazem para a praça pública.
Permanece uma questão: o que levou verdadeiramente Camille
Kouchner a decidir-se publicar agora este livro?
- Ânsia de protagonismo numa família em rota descendente e onde
ela nunca atingiu o nível da mãe, do pai, da tia e do padrasto;
- Necessidade de dinheiro;
- Vingança pessoal ou política;
- Ciúme do padrasto ter preferido relacionar-se com o irmão
gémeo em lugar de a procurar a ela;
- Perturbação mental acentuada, evidenciada na escrita e no
relato que faz das suas sucessivas doenças, e tendo em atenção que quer a mãe,
quer a tia se tornaram alcoólicas dependentes no fim da vida.
Talvez o tempo responda a estas questões!