segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

PIERRE LOTI NA INTIMIDADE

Tendo-me referido a Pierre Loti (1850-1923) nos últimos dias, resolvi ler Pierre Loti - L'écrivain et son double (1998), que jazia na minha biblioteca desde a data da publicação. Eu sei que o tempo não estica e que muitos serão os livros que possuo e nunca chegarei a ler. É a vida!

O autor, Alain Buisine (1949-2009), professor na Universidade de Lille, é um especialista do famoso escritor turcófilo francês, sobre o qual publicou outros títulos.

É intenção deste livro descodificar a enigmática vida de Loti, mascarada desde as suas primeiras obras e desdobrada entre o oficial de marinha Julien Viaud, de seu verdadeiro nome, e o escritor e académico Pierre Loti. 

Note-se, por curiosidade, que, enquanto aspirante, o barco cuja tripulação então integrava, o "Vaudreuil", passou por Lisboa em 1871.

Uma das fontes importantes para a reconstituição da sua vida é, evidentemente, o seu Journal intime, embora certas passagens estejam rasuradas ou anotadas em código. 

Importa dizer que Loti foi desde muito cedo confrontado com o fantasma da morte, devido ao falecimento prematuro de seu irmão mais velho Gustave, médico militar, que adoeceu em serviço na Indochina e, sendo repatriado tardiamente, acabou por morrer a bordo do navio que o transportava de regresso a França, tendo o corpo sido lançado ao mar no Golfo de Bengala. Este facto jamais foi esquecido por Loti e é recorrente ao longo de toda a sua obra.

Também Tahiti, onde estivera seu irmão, foi objecto de grandes descrições de Loti, especialmente das jovens (e dos jovens) que facilmente e gostosamente se entregavam aos europeus. É que em Tahiti reinava alguma indiferenciação entre corpos femininos e masculinos, uma noção diferente de família, num ambiente de sensualidade e de voluptuosidade específico das ilhas polinésias. 

Um dos prazeres favoritos de Loti era mascarar-se e ser fotografado com as vestes mais extravagantes. Podemos vê-lo vestido de indígena do Senegal, de grego, de marinheiro, de albanês, de acrobata de circo, de bretão, de emir, de deus Osíris, de académico, de sheikh, de mandarim chinês, de pescador haitiano, de spahi, ou mesmo nu (com indumentária de ginástica). Usando às vezes o fez turco ou a boina basca. Diz-se que a grande satisfação que experimentou ao ser eleito para a Academia Francesa foi precisamente a de poder passar a envergar o trajo de académico.

Em 1876, Loti passa a prestar serviço no navio Gladiateur, que está à disposição da Embaixada de França em Constantinopla. É aqui que se apaixona por Aziyadé, jovem e bela escrava de um harém, com quem se encontra em Eyüp, graças à cumplicidade de um criado albanês.  Os encontros têm lugar à noite, numa barca junto ao sopé do vasto cemitério muçulmano que se estende por toda a colina, desde a mesquita de Ayub Ansari (Eyüp) companheiro do profeta, que foi morto em 670, no primeiro cerco de Constantinopla. Depois da tomada da cidade, em 1453, por Mehmet II, este descobriu miraculosamente o túmulo desse discípulo, mandando construir no local um mausoléu e uma mesquita em sua honra. Loti está pois no seu meio, entre os mortos, praticando o amor. 

Transcreve-se uma passagem do livro: «Déjà à Salonique, dont les minarets ont "l'air d'un tas de vieilles bougies, posées sur une ville sale et noire où fleurissent les vices de Sodome." (Aziyadé) Lors de ses soirées en compagnie de Samuel, le fidèle serviteur: "[...] j'ai vu d'étranges choses la nuit avec ce vagabond, une prostitution étrange dans les caves où se consomment jusqu'à une complète ivresse le mastic et le raki..." (Aziyadé) Encore à Salonique, lorsque le pauvre Samuel complètement paniqué, croit que l'officier de marine lui fait des avances éhontées quand il lui prend la main en signe d'amitié. À vrai dire les choses s'étaient déroulées tout autrement si l'on se reporte au Journal intime où il apparaît nettement que Samuel était demandeur: "Sa main tremblait dans la mienne, et je soulevai sa tête pour le voir. Il était toujours étendu: immobile, mais son regard avait une animation étrange, et son corps tremblait:/'Che volete, dit-il d'une voix sombre et troublée, che volete mi? (Que voulez-vous de moi?)...'/ Et puis il me pris dans ses bras, et en me serrant sur sa poitrine il appuya ardemment ses lèvres sur les miennes... Le but étaient atteint cette fois, et même terriblement dépassé; j'aurais pu prévoir cette solution, je fus navré de l'avoir si étourdiment amenée. Et je me dégageai de son étreinte sans colère: 'Non, lui dis-je, ce n'est pas là ce que je veux de vous mon pauvre Daniel, vous vous êtes trompés; dans mon pays ce genre d'amour est réprouvé et interdit. Ne recommencés plus, ou je vous ferais prendre demain par les Zoptiés' Alors il se couvrit la figure de son bras et restait immobile et tremblant. Mais, depuis cet instant étrange, il est à mon service corp et âme." À vrai dire l'attitude de Loti fut sans doute nettement moins décourageante et beaucoup plus ambiguë si l'on se fie à la suite du Journal, racontant ce qui se passe quand Hakidjé a quitté la barque de Loti pour rejoindre la vieille négresse et le serviteur albanais: "quand nous fûmes seuls, Daniel vint s'asseoir près de moi dans la barque; il m'attira sur sa poitrine et appuya ma tête sur la sienne; c'est ainsi qu'il restait chaque nuit quelques minutes immobile et heureux - à force de tendresse, d'humilité, de charme insinuant, de persistance, il avait obtenu de moi cet étrange salaire de son dévouement sans limites./Je ne me méprenais point sur les sensations physiques inavouées de cet homme, le péché de Sodome fleurit dans cette vieille ville d'Orient où le hasard nous a réunis. Mais je ne sais pas repousser les humbles qui m'aiment, quand il ne me coûte rien de leur éviter ce genre de peine, le plus dur de tous . Y a-t-il un Dieu, y a-y-il une morale?"» (pp. 113-114-115)

Esta passagem ilustra bem a versatilidade das relações sexuais de Loti, que, contudo, preferiu manter sempre um clima de ambiguidade, nunca assumindo uma postura homossexual. Aliás, Loti não seria inclinado em exclusivo para o mesmo sexo, mas antes um bissexual praticante, com confirmadas aventuras com pessoas do sexo oposto, casado e pai de vários filhos, alguns deles ilegítimos.

O livro de Alain Buisine não é uma biografia no sentido tradicional, antes tendo como objectivo principal proceder a uma comparação entre a vida real de Loti e a forma como ele a descreve na sua vasta obra. De facto, as personagens dos seus livros são (a começar por ele) figuras reais mas travestidas, que transmitem ao leitor aquilo que Loti gostaria que tivessem sido mas que verdadeiramente não foram. É curioso que possamos detectar algumas dessas incongruências comparando os livros com o Diário íntimo, onde Loti deixa transparecer, às vezes intencionalmente, outras por acaso ou descuido, a realidade dos factos. 

Aliás, a vida de Loti foi sempre uma fantasia, como se comprova pela sua casa de Rochefort, transformada em habitação turca, onde, inclusive, mandou construir uma mesquita, tributo da sua paixão pelo Oriente, e onde promovia festas exóticas, especialmente concorridas.

Uma certa apreciação de Loti pelo sexo masculino, nem sempre dissimulada, constitui também uma preocupação de Buisine.  Transcrevo, a propósito do reencontro, regressado da Turquia, com o quartier-maître Pierre Le Cor, com quem já tinha navegado, um rapaz dotado de grande beleza fisica: «"Mon ami Pierre a vingt-six ans. [...] De haute taille, étonnamment large de poitrine, avec des bras d'Hercule, des muscles de fer. La figure à peu près imberbe, d'ailleurs entièrement rasé. Basané, bronzé par tous les hâles de la mer; - des sourcils froncés, sous lesquels sont pronfondément enfoncés des yeux brun clair, qui dans la vie ordinire conservent une expression de 'regard en dedans'./ Le nez extrêmement  fin et régulier, - la lèvre méprisante, quelque chose de grave qui tient du moine et du soldat." (Cette éternelle nostalgie) Dans son Journal intime, Pierre Loti ne se cache pas l'extrême plaisir qu'il prend à dessiner son ami, nu, posant en druide, appuyé contre un menhir. "Quand les gens se déshabillent, d'ordinaire, c'est assez laid [...] Quand Pierre enlève ses vêtements, on dirait une statue grecque, dépouillant son enveloppe grossière, et l'on admire. Dans le même albâtre bronzé, dur et poli, se dessinent les saillies mobiles des muscles, et les lignes puissantes de l'athlète antique."» (pp. 118-119)

Registados alguns dos propósitos mais evidentes do livro de Alain Buisine, remete-se o leitor para a obra ou, caso seja esse o interesse, para uma biografia convencional de Pierre Loti.

 

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