quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

MAALESH

Escrevi há dias um texto sobre o livro Cocteau, l'Égyptien de Ahmed Youssef, onde o escritor egípcio se debruça sobre as duas viagens de Jean Cocteau ao Egipto, nomeadamente sobre a segunda, em 1949, que relataria no livro Maalesh - Journal d'une tournée de théâtre.

Ahmed Youssef faz numerosas referências a Maalesh, algumas das quais reproduzi no meu texto, embora então não tivesse ainda lido integralmente a obra, o que fiz agora.

Esta segunda viagem de Cocteau, acompanhado por uma troupe teatral, iniciou-se no Egipto, mas teve continuação na Turquia e na Grécia, permitindo ao poeta francês visitar museus e monumentos e manter uma intensa vida social com os notáveis locais. Ao mesmo tempo fazia conferências e superintendia a montagem das peças que constavam do repertório da companhia, peças francesas naturalmente (as pessoas educadas de então, e os estudantes, compreendiam todos a língua francesa (o que não seria o caso de hoje, em que o inglês se arvorou numa espécie de esperanto comercial), designadamente peças de Victor Hugo, Feydeau, Sartre e dele mesmo.

O grosso do volume é dedicado ao Egipto, onde passou mais tempo, uma parte menor é consagrada à Turquia e outra ainda menor à Grécia, onde a companhia não chegou a representar por falta de local.

Nesta sua digressão oriental, Cocteau passou para o papel as suas impressões: no Egipto, quase exclusivamente sobre o período faraónico, já que o passado islâmico não lhe interessava; o mesmo se diga da Turquia, onde prevalecem as considerações sobre a época bizantina, descurando a época otomana, ainda que haja bastantes referências a Mustafa Kemal Atatürk, et pour cause, já que o fundador da Turquia moderna era manifestamente francófilo.

As observações sobre o Egipto Antigo são um tanto superficiais, mas Cocteau não era um especialista e estava especialmente preocupado com as suas relações mundanas, numa sociedade em que a classe dominante vivia em grande esplendor e o resto do país vivia na miséria, não existindo sequer uma classe média, como insiste em afirmar, embora isso não fosse totalmente verdade. Aliás, a República seria proclamada poucos anos depois. E Cocteau também não dispensou a mínima atenção às classes "baixas", chegando mesmo a desconsiderá-la, o que lhe valeu, mais tarde, a proibição do livro no Egipto.

Nas considerações sobre a Turquia, Cocteau alude a um assunto muito comentado: a paixão de Pierre Loti por uma lindíssima turca, Aziyadé, que descreve no romance homónimo. Ao fazer a "peregrinação" que todos fazemos em Istanbul, deslocando-nos ao Café que Loti frequentava em Eyüp, refere Cocteau que essa beldade seria possivelmente do sexo masculino, como sempre foi voz corrente, atendendo aos costumes do oficial e escritor francês. Escreveu Cocteau: «...je le vois mal rejoignant une Aziyadé aussi ambiguë que les jeunes filles de Proust.» (p. 152)

Existe um outro Maalesh (2003), o livro de fotografias de Étienne Sved (1914-1996), judeu húngaro de seu nome original Istvan Süsz, que fugiu para o Egipto em 1938, devido às perseguições nazis, onde se manteve até 1946, data em que se instalou em França, mudando então de nome. No Cairo, Sved estabelecera laços de amizade com Étienne Drioton, director do Museu Egípcio, que lhe facilitou as deslocações por todo o país, permitindo-lhe realizar milhares de fotografias, as mais diversas. 

A publicação do livro de viagens de Cocteau em 1949 sugeriu-lhe a ideia de fazer uma edição de fotografias tiradas no Egipto que pudesse de alguma forma constituir a ilustração da obra do poeta. Não só da monumentalidade faraónica mas também do verdadeiro povo, da vida do quotidiano nas suas misérias e grandezas. Quando recebeu a maquete, Cocteau mostrou-se entusiasmado e encorajou Sved a fazer a publicação, mas a obra foi sucessivamente rejeitada por vários editores, pois não correspondia a um género consagrado. Só em 2003 o livro-álbum fotográfico viria a ser publicado, incluindo no fim o texto de Maalesh, de Cocteau, na parte respeitante ao Egipto (portanto com exclusão da Turquia e da Grécia).

As belíssimas fotografias (mais de uma centena) de Sved são legendadas por passagens do livro de Jean Cocteau, ainda que não refiram directamente ao próprio texto mas tão só a uma alusão iconográfica.

 

Sem comentários: