sábado, 10 de agosto de 2019

MÁRIO CESARINY, UM MUNDO SEM REGRESSO




Retirado, hoje, do mural de Paulo Marques:


O ESPELHO VAZIO

«Dos lugares que os homens criaram para se abrigar, o café é o que mais rua tem. Por isso, Mário Cesariny gostava tanto de cafés. Aí, sentia-se onde a poesia estava, onde “sempre esteve”. Aí, lembrando Lautréamont, podia fazê-la em comum. Foi em cafés que escreveu os poemas. Foi em cafés que conversou com os amigos e até com os inimigos. Foi em cafés que fitou os corpos com um olhar que os tornava mais visíveis. Era nos cafés, e no que eles tinham de rua, que se sentia verdadeiramente em casa. Cafés cheios de fumo e de fadiga e de fuga e de fúria. Cafés onde se estava porque não havia sítio melhor para estar. Cafés que resumiam o seu entendimento da vida: café-manicómio, café-convés, café-asilo, café-escritório, café-quase-salão e, pois claro!, café-de-engate. Viciado em cafés, nunca o vi aí tomar um café. Pedia uma água mineral e, muitas vezes, usava-a para lavar as mãos, porque desconfiava que, depois de bebida, a garrafa era enchida pelo dono da casa. Ria e, enquanto a vertia nos dedos em ablução ritual, olhava à volta para a “malandragem” que habitava as mesas e exclamava: “A água é a única coisa que não é de confiança neste café”. Nos tempos gloriosos do grupo surrealista, era nos cafés (Herminius, Royal, Gelo) que se incendiavam a eles próprios e era a partir dos cafés que queriam incendiar o mundo. Depois, toda a sua vida foi vivida, noturnamente, em cafés, até que os cafés acabaram e ele começou a acabar como eles.

Passei, durante anos todas as noites, milhares de horas com Mário Cesariny, nos cafés e nas ruas à sua volta. Esse tempo foi o mais lúcido e o mais bem aproveitado da minha vida. Estou a vê-lo chegar, alto, magro e direito, como um fidalgo que nunca perde o porte. Logo que entrava, punha-nos, com o que dizia, à altura do desconcerto do mundo. Se alguém estava a ler um jornal, perguntava: “Fala de nós?! Se não fala deita fora”. E sentava-se, com o olhar aceso de inteligência, gravidade, assombro, malícia e imaginação, a qual, como escreveu, é o contrário da fantasia e, por isso, habita o real. A conversa começava e não mais parava, a não ser quando ele fazia um silêncio para nos dar a ver melhor, como uma mímica só dele (que, para mim, se tornava uma mnemónica), o que queria dizer. Fazia perguntas para fazer das nossas respostas o chão a partir do qual levantava voo até às alturas onde o ar era mais puro e rarefeito: ou para descer aos abismos onde o fogo queimava mais. Costumava dizer, cingindo o rosto com as mãos, que tinha ardido num incêndio e aquele era o resultado. Esse incêndio era o Portugal da polícia de costumes, da censura, da PIDE, do “respeitinho é que é bonito” e do “trabalho é que educa”, onde viveu (não o esqueçamos nunca!) cinquenta anos da sua vida, uma parte deles perseguido por “suspeita de vagabundagem”, ele mostrava a perversidade do ataque, lembrando que, se a acusação fosse de “vagabundagem”, era fácil provar a sua verdade ou falsidade, mas que uma “suspeita de vagabundagem” não tinha prova possível e assim podia ser eterna…), e que afrontou da maneira mais intensamente livre que se pode: fazendo do seu corpo um lugar “tenebroso e cantante”, o sítio mais subversivo do universo. É por isso que a sua poesia nos ilumina e aquece e queima como a proximidade de um fogo alto e inextinguível.

Para a conversa tudo servia: o que acontecia e não devia acontecer e o que não acontecia e devia acontecer. Portugal (que, segundo ele, acabou na Segunda Dinastia, e de que desconfiava como se desconfia de alguém que já nos “fez várias”) ou o estrangeiro (a sua viagem ao México, por exemplo), a política ou o amor, a poesia, que para ele era o contrário da literatura, ou a magia, a pintura ou a filosofia esotérica, os Aztecas, os OVNIS, Sade ou o amor entre Rimbaud e Verlaine. E os Pré-Rafaelitas, Swedenborg, Blake, Breton, Artaud, Gener, Paz. Ou os Cancioneiros Medievais, Gil Vicente, Bocage, Antero, Gomes Leal, Cesário, Sá Carneiro, Pessoa, Raul Brandão, Pascoaes, Botto, E Giotto, Bosch, os painéis de Nuno Gonçalves, Picasso, Miró, Dalí, Bacon, Vieira da Silva, Paula Rego. E também (ora essa!) o senhor Manuel da Hortaliça, o Grande, a Galga, a Doble-Quina, Titânia, o Reinaldo ou o Gato (Quem quiser saber mais leia Titânia história hermética em três religiões e um só Deus verdadeiro com vistas a mais luz como Goethe queria: está lá tudo demonstrado). Dizia poemas de cor (sabia imensos e sabia-os dizer como ninguém), contava histórias do tempo em que “até os arrebentas tinham boca: queriam ser beijados”, falava de sonhos e de pesadelos, de coincidências e de acasos despectivos. E as troças que fazíamos eram esplêndidas. De repente, nele e em nós com ele, era como se comparecessem, todos juntos, os narradores do Decameron, das Mil e Uma Noites e dos Cantos de Cantuária, com as suas vozes ora roucas ora agudas, os olhos ora astutos ora inocentes, as mãos ora lentas ora ágeis. Quando a noite atingia o zénite, no meio do barulho do café, erguia-se a voz de Cesariny a declamar o Salve Rainha, dramatizando com gestos lúgubres o que ia dizendo. Ao chegar à passagem “A vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas, bradava mesmo, com voz luctuosa e suplicante. Esta oração, que sabia toda de cor, era para ele como que uma “vera efígie” de um cristianismo enlouquecido, contra o qual tinha erguido a sua magnífica liberdade de corpo, de alma e de espírito.

É verdade: Cesariny adorava ouvir histórias e adorava contá-las. Para começar, as da infância, quando ia de férias para a casa da família, na Póvoa do Varzim. Havia um tio, homem “importante dos regimes”, que não tinha aceite, para não deixar a terra nem a pacatez, um lugar no governo de Salazar. A mulher dele, espanhola efusiva e ambiciosa, insultava-o por isso, enquanto ele permanecia silencioso, a trabalhar no escritório. Toda a manhã, ela andava pela casa atirando-lhe à cara um nome: estúpido. E, ao mesmo tempo, dizia baixinho, contentíssima para o jovem Mário: “Niño, já viste o que é chamar estúpido a um homem desta posição!” Beata, esperta e má, quando regressava da missa, inspecionava minuciosamente a limpeza da cozinha e apertava o pescoço das criadas, gritando. “Este tacho não tem o brilho que devia ter. Há aqui uma mancha. Isto é um pecado. Deus está nos pormenores”.

Outra história que o divertia e nos divertia era a do poeta-aristocrata do Tâmega, devotado imitador de Pascoaes, e roído por uma avareza ainda maior do que a sua fortuna. Recebia, ao serão, no grande solar e, todas as noites, a certa hora, aparecia, no salão, uma antiquíssima e idêntica caixa de bolos. Era o dono da casa quem apresentava a lata, abrindo-a e fechando-a, instantaneamente, em frente de cada pessoa presente, sem que alguém se atrevesse a tirar sequer uma migalha, porque sabiam que isso o poria rubro de raiva. Certa vez, um convidado desprevenido tentou tirar um bolo e foi imediatamente entalado pela tampa que o poeta, num gesto automático, fechou sobre a sua mão. O conviva deu um grito de dor e o avarento exclamou: “Nunca queres! Nunca queres!” Cesariny contava estas histórias e ria muito, muitíssimo. A sua ironia valia um ensaio literário. Ele gostava dos grandes poemas de Eugénio de Andrade (“Green-god”, “Espera”) e sabia-os de cor. Mas gostava menos de alguns, como dizer?, mais “preciosos”. Assim, quando às vezes se despedia de nós, dizia, mordaz: “Boa noite. Eu vou com as aves”, usando o verso de um desses poemas…

Durante anos, o Reimar, na rua das Pretas, foi um templo de visita quotidiana obrigatória. Chegava-se lá e a “coisa” já estava montada. Quero eu dizer: havia sempre “coisa”. Ao pé “daquilo”, Fellini era Cecil B. De Mille. As empregadas, a Mena e a Mina, tinham as vozes sempre no tom e na altura em que a Maria Callas brilhava. Quando chegava a hora do tiroteio, faziam do balcão uma trincheira, deitavam-se no chão e esperneavam como se estivessem ligadas à corrente eléctrica. E, se calhar, estavam! O senhor Manuel da Hortaliça, ou do Bairro Alto, que antes tinha descido o Chiado entre a mulher, dedicada enfermeira dos Hospitais Civis, e o amante, aprumado marujo do Alfeite, ameaçava (ou estaria a oferecer conteúdos?) a tropa especial, agitando a pochette. E dizia para as “amigas”, “Vai com este, que é muito limpinho e não mexe em nada”. Nesse magnificente antro, havia de tudo: putas e homens “coisa e tal”, chulos e travestis, artistas e ladrões, professores primários em crise de identidade e fadistas (com e sem voz), operários e vagabundos sem eira nem beira, filósofos ocultistas e jornalistas (proibidos, sob ameaça de morte, de falar do que ali se passava), funcionários públicos casados, mas com heterónimos sexuais, milionários em fuga para um Egipto qualquer, poetas e pintores, maiores e menores. E, se Cesariny era um enviado do fogo, havia também, apolíneos e dionisíacos, enviados (alguns fardados) dos outros três elementos, terra, mar e ar, a que se juntavam, em temível contraste, anões, gigantes coxos, zarolhos, corcundas, gagos e mudos. “Tudo boa gente”, dizia Cesariny. E acrescentava “Comparado com isto, o que Ulisses viu na viagem de regresso a Ítaca era banal…” Por entre a ginjinha e as imperiais, de que a Mina e a Mena bebiam golinhos, antes de as entregarem aos clientes (“é para ver se estão fresquinhas”, diziam), falava-se de Nietzsche e do marujo da mesa ao lado. Ali estávamos como se estivéssemos em plena idade Média, o seu tempo histórico do Ocidente preferido (“com tanta treva e tanta peste, deviam querer aproveitar bem o tempo, divertindo-se muito…”, explicava).

Mário Cesariny gostava de anarquistas, videntes, usurpadores, blasfemos, xamãs, incendiários e revoltosos. E de reis destronados, deuses abolidos, bruxas ameaçadas, fidalgos arruinados, náufragos salvos no último minuto. Gostava de gostar e gostava que gostassem-até dele. Gostava de não gostar e não gostava que alguns não gostassem dele. Nunca conheci ninguém que, ao mesmo tempo, tivesse em tão alto grau o sentimento trágico da vida e o sentimento cómico da vida. A sua palavra era grave e ameaçadora e alegre e ácida e inocente e ameaçado e leve e dura e genial, no juntar tudo isso na sua voz única, no seu olhar-clarão, na altivez, com que se impunha aos medíocres de todas as vaidades, culturas, universidades, classes, terras, aptidões, idades e especialidades. Gostava de falar da “inteligência estúpida” e da “estupidez inteligente”; contra o “discurso discursivo” e a “arte artística”. Este Cavafis de uma Lisboa-Alexandria, que, nas ruas, falava com malucos, tresnoitados, mulheres do trapo ( havia uma de quem dizia “é igual à Vieira”), visionários, apocalipticos e seres de outros planetas que vinham tomar a bica à Avenida da Liberdade. Nessas falas com eles, tinha o dom de as tornar o que eram: poetas.

O seu atelier da Calçada do Monte, onde ouvíamos incessantemente os concertos para violino e orquestra de Beethoven e de Tchaikovsky, ficava num pátio com diferentes oficinas (de estofador, por exemplo) e também tinha muita rua. Raro era o dia em que não acontecesse qualquer coisa que dava uma história para contar, desde o que se passou no pátio, a seguir ao 25 de Abril, com motins, intentonas, escândalo sexual do senhorio, plenário de inquilinos na voz do Operário e chapéu de palha comido por um ser humano, até ao vizinho que ele, uma tarde, descobriu, degolado e frio, atrás da porta, passando pelo estranho caso de um assaltante que lhe entrou no atelier, com as paredes cheias de quadros a que não atribuiu qualquer valor, e que não só não levou nada, como ainda esqueceu lá um guarda-chuva, deixado num canto, sem que Cesariny lhe quisesse tocar. Passado muito tempo, numa noite de súbita invernia, em que o único chapéu que havia era aquele, acabou por usá-lo e, debaixo dele, foi assaltado a caminho do Martim Moniz, onde ia apanhar táxi… Os vizinhos pressentiam-no célebre (até porque Mário Soares ia ao atelier), chamavam-lhe “senhor Mário”, mas tratavam-no como ele gostava de ser tratado: com a franca cortesia medieval praticada entre a gente das várias artes e ofícios…

“Tudo isto vive em mim para uma história, de sentido ainda oculto, lapidar e seca, como uma povoação abandonada aos lobos, lapidar e seca, como uma linha férrea ultrajada pelo tempo”, digo eu, agora, com versos dele. Houve uma época, já os cafés tinham acabado e ele estava muito em casa, andei ocupado e não o pude visitar com a assiduidade de que ele gostava e que era própria da nossa amizade. Uma tarde, o Al Berto, tinha morrido e eu fui à Basílica da Estrela. Quando entrei na capela mortuária, plena de gente, Cesariny estava sentado junto do corpo do poeta morto. Ao ver-me, ergueu-se e gritou, no silêncio: “Vens visitar um morto e não me vais visitar a mim, que ainda estou vivo!” Quando agora o velei no Palácio das Galveias, lembrei-me destas palavras, mas, estranhamente, não senti que estivesse junto de um morto: vi apenas um espelho Vazio. Mas a sua presença é tão forte em mim que nada, nem a morte, a consegue tocar. Por isso tenho vivido estes primeiros dias da sua ausência como quem olha, de olhos muito abertos, o escuro, perscrutando-o e sabendo que Cesariny é como um desses astros mortos que continuam a iluminar a nossa noite.»

José Manuel dos Santos, jornal Público (suplemento Mil Folhas), 8/12/2006

1 comentário:

Anónimo disse...

Magnífico! Bem pensado,bem sentido,bem escrito. Devia ser de leitura obrigatória para todos os estudantes,para saberem o que era Lisboa e quem era um grande poeta.