quarta-feira, 14 de agosto de 2019

CAPRI E OS SEUS HÓSPEDES




A conhecida e louvada ilha italiana de Capri foi desde há muitos anos considerada um paraíso para os amantes de conquistas masculinas jovens.  Talvez mesmo desde há muitos séculos: foi lá que o imperador Tibério construiu, no ano 27, a Villa Jovis (Vila de Júpiter), embora a razão principal tenha sido a sua segurança pessoal.

 Mas nos dois últimos séculos a reputação da ilha alastrou por toda a Europa e motivou a deslocação de muitos visitantes ilustres, alguns dos quais aí instalaram permanente residência.

Entre os "exilados" de Capri conta-se o escritor e poeta francês barão Jacques d'Adelsward-Fersen (1880-1923), ainda pertencente à família do marechal sueco Hans Axel von Fersen, que teria sido amante da rainha Maria Antonieta. Devido a um escândalo em Paris, em 1903, envolvendo alunos dos principais liceus da cidade, e que, supostamente, além de outros óbvios aspectos, envolvia a realização de "missas negras", Fersen foi constrangido a anular o seu previsto casamento e considerado persona non grata na capital francesa. Rumou então a Capri, onde estivera com 17 anos, e aí construiu a Villa Lysis, lá vivendo a maior parte do tempo com um muito jovem operário, Nino Cesarini, que conhecera numa rua de Roma e que convertera em seu amante. Mesmo em Capri, devido à realização de algumas festas mais extravagantes, Fersen teve alguns dissabores, sendo obrigado por vezes a ausentar-se temporariamente da ilha, onde acabaria por morrer, ao que parece por suicídio, por meio de ingestão de uma overdose  de cocaína, já que desde há longo tempo se tornara toxicodependente.

Vem isto a propósito de ter relido recentemente o livro L'exilé de Capri (1959), de Roger Peyrefitte, onde este, com abundante soma de pormenores, relata a vida de Fersen, aludindo também aos mais notáveis visitantes de Capri, como Oscar Wilde e Alfred Douglas, o general conde de Moltke, comandante militar de Berlim, o príncipe de Eulenburg, primo de Guilherme II, o célebre industrial alemão Friedrich Alfred Krupp (que acabaria por suicidar-se por denúncia de um escândalo de costumes), o fotógrafo Wilhelm von Gloeden (embora o seu domicílio permanente fosse em Taormina, na Sicília), Jean Cocteau, Gorki, Lenin, Axel Munthe, embora nem todos se tivessem deslocado pelos mesmos motivos. E ainda uma série de figuras, pertencentes ou não ao Gotha, que alimentava permanentemente a crónica da famosa ilha. Nem falta sequer uma alusão ao cardeal secretário de Estado Rafael Merry del Val, mas esse estava no Vaticano.

Esta biografia romanceada de Fersen, escrita por Peyrefitte, tem o mérito, como habitualmente todos os livros do autor, de desfrutar da sua extraordinária erudição, da sua arte de efabular os factos e de espicaçar a curiosidade do leitor. Peca, também como habitualmente, pelo excesso de personagens convocadas e pela soma de pormenores, alguns absolutamente supérfluos e que em nada contribuem para a exaltação da narrativa.  Em qualquer caso, os vários livros de Roger Peyrefitte, sobre os mais diversos temas, ainda que neles focando privilegiadamente a homossexualidade, ajudam-nos a compreender determinadas facetas da sociedade da sua época.

 Sobre ele escreveu o cardeal Tisserant, que foi decano do Sacro Colégio: «Peyrefitte frappe fort, mais rarement à côté. Vous verrez qu’un jour ses écrits apporteront des lumières pour ceux qui voudront comprendre notre temps».



Um dos principais livros de Jacques d'Adelsward-Fersen, que ficou mais conhecido pela sua vida excêntrica de que como escritor, é L'Hymnaire d'Adonis

1 comentário:

Anónimo disse...

O autor não só escreve frequentemente "contra a corrente",mas neste caso contra a torrente,ou até contra a avalanche. A gigantesca e leviatânica instalação social de um específico puritanismo inquisitorial e planetário,faz com que as personagens citadas fossem hoje impossiveis de existir,excepto em masmorras ou cemitérios. Como já só restam alguns livros para nos lembrar de tempos de liberdade e civilização,aguardemos os autos da fé livrescos,onde alem do Peyrefitte e do Gide,não pode faltar a própria Yourcenar. Lá chegaremos...