domingo, 2 de julho de 2017

UM CRIME INÚTIL





Acabou de ser publicada a tradução portuguesa do livro de Robert Service The Last of the Tsars (2017), com o título O Último dos Czares. Robert Service é especialista da história da Rússia e professor da Universidade de Oxford e membro de diversas instituições universitárias.

O presente volume é consagrado à vida de Nicolau II, desde a sua abdicação até à execução sumária da família imperial na Casa Ipatev, em Ekaterinburg, em 1918.

Com tantas obras publicadas sobre o último imperador, afigura-se este estudo bastante objectivo, ainda que Service não deixe de mostrar uma certa antipatia, senão pelo bolchevismo, pelo menos pelos seus mentores.

A obra, profusamente documentada, talvez mesmo excessivamente documentada, tal os milhares de citações, a maioria em russo, língua familiar ao autor, percorre a vida de Nicolau quase diariamente, desde a sua detenção em Tsarkoye Selo e a passagem por Tobolsk até ao fuzilamento em Ekaterinburg.

São mencionadas dezenas de personagens, o que obriga a um considerável esforço mental dos leitores para saber quem é quem, mas a escrita é fluente e Robert Service procura enfatizar as suas ideias fundamentais.

Em primeiro lugar, a incompetência de Nicolau II para desempenhar o cargo de Supremo Autocrata de Todas as Rússias. Profundamente crente, totalmente ignorante do povo que governava, razoavelmente anti-semita, desprovido de cultura geral e política, reservado, distante (como mandava o protocolo), obstinado, sofrível chefe militar, teria certamente preferido viver como um abastado fidalgo, na companhia da família (que adorava) do que ser o soberano de um vasto império. Mas a sorte foi-lhe madrasta.

Depois, a influência nociva da imperatriz Alexandra Fyodorovna (nascida Alix de Hesse), a única pessoa que lograva influenciar as suas opiniões e que era igualmente desprovida do mais elementar bom senso. Diga-se, de passagem, que Nicolau e Alexandra se amavam profundamente e que essa paixão não esmoreceu com os anos mas prolongou-se até ao instante final.

Nicolau II nunca procurou inteirar-se das condições de vida do seu povo e quando criou a Duma, após a revolução de 1905, fê-lo forçado pelos acontecimentos, procurando sempre condicioná-la à sua vontade.

A guerra com a Alemanha foi desastrosa para a Rússia e agravou a situação no Império com o desenvolvimento dos movimentos anti-czaristas. Ao contrário de seu avô Alexandre II, que proclamara a emancipação dos servos, mas acabou por morrer assassinado, Alexandre III e Nicolau II acharam que não valia a pena seguir essa via e optaram pela repressão.

Importa não ignorar a presença na Corte do falso starets Grigory Rasputin, que exerceu, durante os últimos anos da monarquia, uma influência nefasta sobre o casal imperial, nomeadamente sobre a imperatriz Alexandra. Supostamente dotado de poderes miraculosos ou mágicos, teve o engenho, e isso é verdade, de debelar as frequentes crises do czarevich Aleksey, um hemofílico, a quem a doença fora transmitida por via materna, já que Alexandra era descendente da rainha Vitória de Inglaterra, que disseminou o mal por dezenas de casas reais europeias. Rasputin passou a imiscuir-se não só na vida da Casa Imperial mas mesmo no Governo, sugerindo ou exigindo, através da imperatriz, a substituição de alguns ministros. Acabou por ser morto, com a intenção de salvar a Rússia, pelo príncipe Felix Yussopov, com a colaboração de outros membros da família imperial, no próprio palácio de Yussopov, sobre o rio Moika, em 1916, mas já era tarde. Sobre a morte de Rasputin pode ler-se o meu post de 15 de Outubro de 2013.

Foi assim que se chegou à Revolução de Fevereiro de 1917 e à exigência da abdicação de Nicolau, feita primeiro, e naturalmente, a favor do herdeiro natural, o czarevich Aleksey, e alterada depois pelo próprio imperador, a favor de seu irmão, o grão-duque Miguel Alexandrovich, que recusou a incumbência até que fosse realizada a assembleia constituinte. O pavor de Nicolau consistia na eventualidade de ter de separar-se de Aleksey.

A formação do governo provisório do príncipe Georgi Lvov, com Alexandre Kerenski como ministro não logrou conter os ânimos, especialmente face ao incremento que ia assumindo a facção bolchevique, ainda assim largamente minoritária e largamente desconhecida no país, à excepção de São Petersburgo e Moscovo. Em Julho, Kerenski forma um gabinete de transição, mas os acontecimentos precipitavam-se de forma alucinante, e os bolcheviques, com Lenin regressado do exílio, preparam-se para a tomada do poder, que se dá com a Revolução de Outubro. Kerenski foge e a família imperial é enviada para Tobolsk e depois para Omsk.

Constituiu sempre um problema para o novo poder o destino a dar a Nicolau e à família. Se muitos exigiam a pena de morte, a esmagadora maioria do povo russo era contrária, mesmo entre os socialistas e os radicais, para não falar já dos monárquicos, que eram uma larga maioria do povo russo, especialmente no campo, longe das grandes cidades, e também devido a influências religiosas.

Não cabe aqui a história da Revolução Russa, mas Lenin e o seu braço direito, Sverdlov, terão encarado, num primeiro momento, um julgamento em Moscovo, para onde havia sido transferida a capital. Mas as complicações decorrentes do Tratado de Brest-Litovsk, e a evolução da Guerra Mundial, complicaram os projectos. Com o Soviete dos Urais a oferecer pouca confiança ao Comité Central, foi decidida a transferência da família para Ekaterinburg, um lugar mais seguro para evitar uma possível fuga. No entanto, o avanço das tropas checoslovacas (anti-bolcheviques) sobre a região determinou a decisão final. Embora Lenin nunca tenha proferido uma ordem formal de execução, é óbvio que um acontecimento de tal importância não poderia ter lugar sem a sua aprovação, embora os eventuais documentos comprometedores tenham desaparecido por completo, ficando o ónus do crime sobre as autoridades de Ekaterinburg, cujos nomes me dispenso de citar. E não sendo possível ocultar o fuzilamento de Nicolau, durante muito tempo fez-se crer, na Rússia e no estrangeiro, que só ele havia perecido. Houve também a preocupação de Lenin, nos tempos seguintes, de que se falasse o mínimo sobre o caso, à espera que este esquecesse, e também por causa das relações internacionais, já que Nicolau II era primo do rei Jorge V de Inglaterra e Alexandra era uma princesa alemã.

Tudo isto é pormenorizadamente explicado no livro e não é este o lugar para mais detalhes. O poder soviético teve a maior dificuldade em se impor em toda a Rússia, foi combatido por russos das mais diversas extracções, e só através da violência conseguiu controlar o país. Violência essa que Stalin usou primorosamente, aniquilando todos os seus adversários. O relatório de Krustchev ao Congresso do Partido Comunista em 1956 é eloquente. O reinado do terror abrandou desde essa altura.

 Assim, em 17 de Julho de 1918, sob as ordens de um indivíduo chamado Yurovski, foram fuzilados na adega da Casa Ipatev, o czar Nicolau II, a czarina Alexandra, o czarevich Aleksey, as grã-duquesas Olga, Tatiana, Maria e Anastasia, o médico dr. Botkin, e outro pessoal doméstico.

A imperatriz viúva Maria Fyodorovna (mulher do falecido Alexandre III, nascida princesa Dagmar, da Dinamarca), e sua filha, a grã-duquesa Xenia, que viviam tranquilamente na Crimeia, encontravam-se em perigo, à medida que o poder bolchevique se estendia por toda a Rússia mas pretendiam permanecer no país. Por pressão de sua sobrinha, a rainha Maria da Roménia, e embora contra vontade, a imperatriz viúva acabou por ceder, tendo abandonado a sua residência, graças à eficiência de um coronel canadiano. Para a decisão de abandonar a Rússia contribuiu também a insistência da rainha Alexandra de Inglaterra, sua irmã, viúva de Eduardo VII e mãe de Jorge V. Entretanto, o Kaiser Guilherme II abdicara e a Primeira Guerra Mundial chegava ao fim. Maria Fyodorovna permaneceu algum tempo em Inglaterra e regressou depois à sua pátria, a Dinamarca, onde faleceu.

Em 24 de Janeiro de 1919, os soviéticos decidiram fuzilar os quatro grão-duques que se encontravam presos na Fortaleza de São Pedro e São Paulo: Nikolai Mikhailovich, Pavel Alexandrovich, Dmitri Constantinovich (no livro está Mikhailovich mas é um erro) e Georgy Mikhailovich, como retaliação (diz-se) do assasinato dos líderes da extrema-esquerda alemã Rosa Luxemburg Karl Liebknecht. Salvou-se o grão-duque Nikolay Nicolayvich, que também estava na Crimeia (comandava a frente do Cáucaso) e abandonou o país com a imperatriz viúva e com Xenia.

Milhões de páginas se têm escrito sobre a queda do Império Russo, a tomada do poder pelos Sovietes e a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. É um facto que a Rússia era governada despoticamente, que o povo vivia na miséria, que os czares e os seus ministros eram geralmente incompetentes e que o Império estava largamente atrasado relativamente à Europa Ocidental.

Também é verdade que os bolchevistas se impuseram pela força, sem olharem a meios, eliminando tudo o que pudesse atravessar-se no seu caminho. Um dos grandes escolhos, que nunca foi absolutamente contornado, foi a religião. Os russos, profundamente ortodoxos, continuaram a rezar nas suas casas.

Apesar da resistência, que especialmente se fez sentir nos primeiros tempos contra o novo Poder, a existência da Família Imperial não fazia perigar o novo regime. Aliás, Lenin e os seus sequazes sabiam-no bem. A eliminação sumária (sem qualquer tipo de julgamento, como fora inicialmente previsto) do Czar, da mulher, dos filhos e do pessoal doméstico constituiu um crime inútil. Pior do que um crime, como poderia dizer Talleyrand, foi um erro, que manchou indelevelmente a história do comunismo.

Quando se deu a queda da União Soviética e Boris Yeltsin assumiu o poder, ele que mandara demolir em 1977 a Casa Ipatiev quando era governador da região, promoveu a "reabilitação" dos Romanov. No local da Casa Ipatiev existe hoje a Igreja do Sangue e os restos mortais, que se encontravam enterrados numa cova não muito distante do local do crime, e que foram entretanto identificados por peritos internacionais, foram inumados em 1998 na Basílica de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo.

Sarcófago da Família Imperial (minha fotografia de 2013)

Durante o consulado de Vladimir Vladimirovich Putin, o Patriarcado de Moscovo e a Igreja Ortodoxa Russa voltaram a gozar de liberdade religiosa e de muitos dos privilégios do tempo do Império.

Na minha opinião, com o aparelho repressivo instalado pelo Poder Soviético, e apesar das tentativas monárquicas de Restauração, não seria viável o regresso ao Antigo Regime, nem as potências ocidentais, exangues com a Guerra Mundial, estavam dispostas a uma nova aventura bélica. Os Romanov deveriam ter sido enviados para o exílio, como se aventou no começo da Revolução, e os bolcheviques prosseguiriam o seu destino. De resto, havia graves dissenções entre eles, como o comprovou o assassinato de Trotsky, mas este é só o exemplo mais notável. O "mundo ocidental" experimentou inicialmente alguma curiosidade pela inédita experiência mas logo criou uma cortina de ferro, receosa da contaminação comunista e promoveu o triunfo da social-democracia até à queda do muro de Berlim.

Nos seus últimos tempos, a União Soviética tinha evoluído no sentido de uma certa abertura, mas o cerco do capitalismo internacional inviabilizou a intenção e precipitou a queda.

Cabe aos contemporâneos julgarem os factos.

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