Museu e Biblioteca de Alexandria (reconstituição fantasiosa) |
Por me ter sido agora solicitado, publico a versão provisória do capítulo "A Antiga Biblioteca e o Museu", que faz parte de um trabalho que iniciei há mais de dez anos, para o Ministério da Cultura, intitulado Alexandria, Ainda e Sempre (a história de Alexandria da fundação por Alexandre Magno até aos nossos dias), e que não teve continuidade devido a uma nova política de divulgação cultural, na sequência de uma substituição de Governo em Portugal.
A Antiga Biblioteca e o Museu
A Biblioteca de Alexandria foi a mais célebre biblioteca da
Antiguidade e a sua fama chegou incólume aos nossos dias. Sendo a mais vasta do
seu tempo, ela foi também um centro de investigação científica e um local de
convívio dos estudiosos e eruditos de todo o Mediterrâneo. Durante mais de mil
anos, os trabalhos dos sábios da antiga
Alexandria serviram de farol aos letrados muçulmanos e cristãos da Idade
Média tal como aos humanistas europeus do Renascimento. Antes da era alexandrina
o saber tivera, em larga medida, um carácter regional, mas com a criação da
Biblioteca de Alexandria, que foi a primeira biblioteca universal da história
da humanidade, ele adquiriu, em consequência, uma dimensão universal.
Contudo, a instituição primordial da cultura alexandrina foi
o Museu (Mouseion) ou Templo das
Musas, a primeira grande universidade dos tempos antigos, no qual a Biblioteca
estava incorporada e, talvez por constituir a parte material do conjunto, foi
esta que permaneceu na memória dos homens. Por uma invulgar coincidência, as
fontes ptolemaicas à nossa disposição nunca mencionam
simultaneamente o Museu e a Biblioteca. No século III A.C.,
só o Museu é evocado nos versos de Tímon e de Herondas. No século II A.C.,
Aristeu, na sua Carta a Filócrates,
apenas refere a Biblioteca e Estrabão, escrevendo sobre Alexandria após a queda
dos Ptolemeus, limita-se a descrever o Museu. Durante o Império Romano, nos
escritos de homens como Ateneu e Ireneu, as duas instituições aparecem ligadas,
sendo geralmente admitido que foram criadas ao mesmo tempo e que se completavam
na sua missão cultural.
A principal dificuldade com que nos deparamos para conhecer
a vida e o destino da Biblioteca de Alexandria é a exiguidade das fontes
disponíveis. Tudo o que nos resta são referências dispersas pelas obras de
vários autores, o que torna impossível a reconstituição da sua história.
Sabemos, por exemplo, que Calímaco de Cirene, por ordem de Ptolemeu II,
escreveu uma "Tábua dos escritores que se ilustraram em todos os géneros e
das obras que compuseram", as famosas Pinakes,
que era um catálogo em 120 livros (rolos de papiro), que agrupava os autores
por ordem alfabética, dentro de cada género (épica, lírica, drama, oratória,
etc.), as primeiras palavras dos seus livros, o número de linhas, uma curta
biografia, e, por vezes, discussões de autenticidade. Este trabalho, que
infelizmente não chegou aos nossos dias, mais do que um catálogo poderia
considerar-se como um antepassado das histórias da literatura. Também uma obra
de Aristonico acerca do Museu, o Tratado
sobre o Museu de Alexandria, da qual o patriarca Fócio, erudito bizantino,
ainda pôde ler alguns fragmentos, desapareceu na voragem do tempo. Talvez a
razão de uma informação tão escassa e fragmentária resida no facto dos autores
coevos, perante a importância e o renome da Biblioteca, considerarem inútil ou
temerária qualquer tentativa de descrição da mesma. Ateneu, que para a
elaboração do seu livro recorreu à consulta de 1.500 obras da Biblioteca, pergunta-se:
"No que se refere ao número dos livros e à organização das bibliotecas e
da assembleia do Museu, que poderei dizer que não seja já conhecido de
todos?".
As fontes relativas à fundação do Museu e da Biblioteca
reflectem duas tradições distintas. Uma atribui o mérito a Ptolemeu I Sóter, a
outra a Ptolemeu II Filadelfo. O documento mais antigo que possuímos sobre a
matéria é referida Carta de Aristeu e
data do século II A.C. Ao relatar a lendária tradução dos Setenta, Aristeu conta que o trabalho teve lugar durante o reinado
de Ptolemeu II, de acordo com os conselhos de Demétrio de Falero, que era o
"encarregado da Biblioteca do Rei". Esta afirmação influenciou
bastante os autores posteriores que se referiram à tradução da Lei judaica,
como Flávio Josefo, Ateneu ou Epifânio. Por outro lado, apenas um documento
atribui explicitamente a Ptolemeu I a fundação da Biblioteca. Trata-se de um
texto de Ireneu, escrito no século II, em que este diz que "Ptolemeu,
filho de Lagos, tinha a ambição de dotar a biblioteca fundada por ele em
Alexandria dos escritos de todos os homens desde que fossem dignos de
interesse". No século III, Clemente de Alexandria produz uma afirmação
ambígua e confusa: "Sob o reinado do rei Ptolemeu, filho de Lagos, ou,
como alguns dizem, sob o reinado do rei cognominado Filadelfo". Seria
então o pai ou o filho? É um facto que a glória de Ptolemeu II ofuscou a de seu
pai e durante toda a Idade Média foi-lhe atribuída a fundação da Biblioteca,
com a colaboração de Demétrio de Falero.
Apesar do peso da tradição em favor de Ptolemeu II, os
historiadores modernos inclinam-se a atribuir o mérito da fundação do Museu e
da Biblioteca a Ptolemeu I Sóter. A razão desta atitude provém do facto
conhecido da incompatibilidade entre Filadelfo e Demétrio, que surgem
associados naquela tradição.
Demétrio de Falero era um discípulo da escola peripatética e
foi tirano de Atenas durante dez anos, até ao seu banimento em 307 A.C. Depois
de uma curta permanência em Tebas (na Grécia) fugiu para o Egipto, o mais
tardar em 297 A.C., onde se tornou conselheiro de Ptolemeu I, devido à sua
vasta e variada experiência. Homem político brilhante, Demétrio foi também um
autor prolífico, cuja "erudição e variedade dos talentos" era tida em
grande estima por Diógenes Laércio, que estabeleceu uma lista dos seus
escritos. Segundo este seu biógrafo, Demétrio foi autor de um número de obras
impressionante e que revelam um saber efectivamente enciclopédico. Entre elas,
um tratado sobre Leis de Atenas,
escritos sobre a Retórica, a Arte Militar, a Demagogia, obras consagradas à Íliada
e à Odisseia, um tratado sobre
Homero, uma compilação das poesia de Esopo, obras de moral sobre o Casamento, a Grandeza da Alma, a Fortuna,
etc. Encontram-se nesta enumeração as preocupações da escola peripatética, tal
como haviam sido expressas por Aristóteles
e Teofrasto, ainda que o interesse de Demétrio se dirigisse mais para as
obras políticas e morais do que para a ciência propriamente dita. Entre as suas
obras de investigação, encontram-se novas preocupações, o que se poderia chamar
a crítica literária, o cuidado de reflectir sobre as grandes obras do passado
ou de as reunir, como o fez para as fábulas de Esopo. As suas obras são
verdadeiramente a prefiguração do que será a escola de Alexandria. Demétrio de
Falero é o último grande homem da história de Atenas e terá sido ele,
plausivelmente, que inspirou a Ptolemeu I a ideia de fundar em Alexandria um
grande centro de investigação que seria conhecido pelo nome de Museu e de lhe
anexar uma biblioteca universal. Esta sugestão não poderia ser mais oportuna,
pois correspondia ao desejo de Ptolemeu de tornar Alexandria não só a capital
de um poderoso império como também um lugar de cultura e de civilização. A
admiração de Ptolemeu Sóter pela escola peripatética devia-se possivelmente ao
facto de ele ter recebido, ao mesmo tempo que Alexandre Magno, as lições de
Aristóteles, em Pela, capital da Macedónia. Essa admiração é confirmada pelas
diligências que efectuou junto de Teofrasto, o seu mestre depois de
Aristóteles, para que este se tornasse preceptor do seu filho, o futuro Ptolemeu
II. Não o conseguindo, aceitou os serviços de um discípulo daquele, Estratão,
que foi um físico eminente. Assim, enquanto Ptolemeu I foi vivo, Demétrio gozou
dos favores reais, sendo protegido e respeitado. Por morte do rei, em 285 A.C.
(ou 283, segundo outras fontes) a sua situação modificou-se. Algum tempo antes
de morrer, Ptolemeu I tinha solicitado a opinião de Demétrio quanto à nomeação
de um dos seus filhos como co-regente. Este mostrara-se favorável à escolha de
um dos filhos de Eurídice, mas Ptolemeu acabou por decidir-se pelo filho que
tivera de Bérénice, o futuro Ptolemeu II, que nunca perdoou a preferência de
Demétrio pelos seus meio-irmãos, mandando-o prender e exilar numa aldeia do
Delta, onde morreu, tendo sido enterrado na região de Busiris, perto de
Dióspolis. A biografia de Demétrio de Falero demonstra assim à evidência não só
como teria sido impossível qualquer colaboração entre ele e Ptolemeu II, mas
igualmente a fortíssima probabilidade dele poder concretizar, graças à
confiança e amizade de Ptolomeu I, o seu projecto de criar em Alexandria um
centro de estudos que rivalizasse com o próprio Liceu de Aristóteles, em Atenas
O Museu
O plano do Museu seguia o modelo conhecido das duas grandes
escolas filosóficas de Atenas, a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles.
Registam-se três testemunhos que confirmam as semelhanças.
Segundo Diógenes Laércio, Polémon, que foi director da
Academia de 314 a 276 A.C. aproximadamente, "retirava-se do mundo para se
isolar no Jardim da Academia e os
seus discípulos, tendo feito construir perto pequenas celas, viviam não distante do santuário das Musas (mouseion) e da exédra".
Também Teofrasto, que esteve à frente do Liceu de 322 a 286
A.C., fornece, no seu testamento, informações precisas. Segundo ele, a escola,
á face da lei, era uma fundação religiosa, que compreendia um santuário das
Musas (mouseion) ornamentado com
estátuas das deusas e um busto de Aristóteles, um pequeno claustro (stoidion), um claustro (stoa) onde estavam colocadas placas em
que eram gravados os mapas dos países até então explorados, um altar, um jardim
, um pórtico (o célebre peripatos) e
habitações.
Por sua vez, Estrabão dá as seguintes indicações sobre o
Museu de Alexandria: "Faz parte do palácio real, compreende o pórtico (peripatos), uma galeria (exédra) e uma grande habitação abrigando
um refeitório onde os sábios que são membros do Museu tomam as refeições em
conjunto. Nesta comunidade, mesmo o dinheiro é pertença de todos. Têm também um
sacerdote que é o chefe do Museu, que antigamente era designado pelos soberanos
e que hoje é por Augusto". A designação de um sacerdote para presidir aos
destinos do Museu sublinha o carácter religioso da instituição.
As referências de Estrabão são a única indicação existente
sobre a arquitectura do Museu, já que a obra de Aristonicus, que forneceria
certamente elementos preciosos sobre a instituição, infelizmente, como já
referimos, não chegou até nós.
A época helenística é a idade de ouro da ciência antiga e
para tal contribuiu a munificência
Graças à munificência dos primeiros Ptolemeus, o Museu de
Alexandria proporcionou as condições materiais favoráveis ao florescimento da
ciência antiga, que teve a sua idade de ouro no período helenístico. Quase
todos os grandes sábios da época se lhe encontram ligados, embora alguns
viessem a abrir escolas noutros lugares.
Se considerarmos separadamente cada uma das ciências,
podemos traçar o seguinte quadro:
a) Medicina:
Os grandes médicos do século III A.C. são Herófilo de Calcedónia e Erasístrato.
O primeiro fez estudos de frenologia, descobrindo a distinção entre cérebro e
cerebelo, descreveu o duodeno e o pâncreas e efectuou a separação entre tendões
e nervos. Além disso, retomou a teoria de Alcméon, impugnada por Aristóteles,
de que o cérebro é o centro das sensações. Erasístrato, seu discípulo,
considerado o fundador da fisiologia, como Herófilo o fora da anatomia,
distinguiu entre nervos sensitivos e motores e dedicou-se ao estudo dos vasos
sanguíneos.
b) Matemática
e Física: É também do século III A.C. a grande trindade dos matemáticos
alexandrinos: Euclides de Alexandria, Apolónio de Perga e Arquimedes. Euclides
lançou as bases da geometria com os treze livros dos seus Elementos, que foram dedicados a Ptolomeu I. Apolónio
notabilizou-se pelos seus estudos sobre secções de cones. Arquimedes foi o
matemático mais famoso da Antiguidade. Descobriu o princípio da impulsão dos
corpos, quando se encontrava a tomar banho, tendo proferido a célebre
exclamação: "Eureka"
(Achei). A sua obra principal em geometria intitula-se Da esfera e do cilindro, tendo estudado também mecânica,
especialmente nos seus Corpos flutuantes
e Equilibrio de Planos.
c) Astronomia:
No século II A.C., Aristarco de Samos estudou os Tamanhos e Distâncias do Sol e da Lua e propôs, pela primeira vez,
a teoria heliocêntrica, segundo a qual o sol está no centro do universo e os
planetas, com excepção da lua, giram á volta dele. Este princípio fora já
esboçado por Heraclides Pôntico no século IV A.C., mas é Aristarco quem lhe dá
forma. No século II, Hiparco de Niceia, apesar de ter descoberta o fenómeno da
precessão dos equinócios, refutou a teoria de Aristarco e Ptolemeu de
Alexandria (Cláudio Ptolemeu), com a sua reconhecida autoridade de astrónomo,
confirmou a teoria geocêntrica, que prevaleceria durante toda a Idade Média.
Foi Copérnico, que em 1543, ano da sua morte, divulgou as novas bases da teoria
heliocêntrica, novamente rejeitadas por Tycho Brahe, em 1585 e só
definitivamente estabelecidas por Kepler em 1609. A confirmação final viria, no
século XVII, com Galileu.
d) Geografia:
A grande figura da geografia é Eratóstenes, no século III A.C., que escreveu um
tratado de Geometria, isto é, da
medição da superfície da terra, executado por meio da determinação das
latitudes.
e) Engenharia:
Considerada uma das sete maravilhas do mundo, o Farol de Alexandria, construído
no século III A.C. deve-se a Sóstrato de Cnidos, um dos grandes arquitectos e
engenheiros da Antiguidade.
Já no período romano, devemos indicar ainda Estrabão, na
Geografia, nos séculos I A.C-I D.C., Dioscórides, na Botânica, no século I,
Galeno, na Medicina, no século II, o já citado Ptolomeu de Alexandria, na
Astronomia e na Geografia, também no século II, cuja obra maior se tornou
conhecida por Megale Sýntaxis ou
"Grande Colecção" e que os árabes passaram a designar por Megiste, donde o nome árabe Almagesto e, finalmente, Diofanto, no
século III, autor de Aritmética, um
tratado de álgebra (um nome já árabe), a última grande criação da ciência
grega.
Regressando a Estrabão, verificamos que o Museu era uma
instituição autónoma, organizada em comunidade (synodos), dotada de meios que lhe asseguravam a subsistência. Além
do sacerdote, responsável pelo cumprimento das regras espirituais inerentes ao
culto das Musas e primeiro dignitário, havia no Museu um outro funcionário, o épistate, que era o encarregado da
administração geral e das finanças. Os membros do Museu usufruíam de
alimentação e alojamento gratuitos e estavam isentos de impostos. É ainda
provável que recebessem salários elevados pelo desempenho das suas funções. A
sua nomeação dependia da aprovação do rei e embora gozassem de grande liberdade
e dispusessem de meios consideráveis para o desenvolvimento das suas
investigações, tinham plena consciência de estar ao serviço do soberano e de
que a sua carreira dependia exclusivamente do favor real. Talvez por isso,
enquanto sob o reinado dos Ptolemeus a ciência conheceu um notável
desenvolvimento e a literatura floresceu, a filosofia foi claramente
negligenciada.
O Museu foi essencialmente um centro de investigação, não
sendo por isso ministrado qualquer tipo de ensino regular. No entanto,
referindo as biografias existentes que determinados sábios foram mestres ou
alunos de alguns membros eminentes do Museu, isso pode explicar-se pelo facto
deste recrutar jovens brilhantes que serviam de assistentes das figuras mais
reputadas da instituição. Só na medicina se terá verificado algo de semelhante
a lições, através do exercício da actividade clínica dos mestres. Há ainda
notícia da prática de um ensino público, através de conferências e colóquios a
que por vezes assistia o próprio rei. Também a realização das festas em honra
de Apolo e das Musas, inauguradas provavelmente por Ptolemeu IV, servia para
estabelecer uma ligação entre o Museu e a população. Estas festas compreendiam
jogos e concursos literários e os seus vencedores eram recompensados com
prémios e honrarias. Podiam participar concorrentes estrangeiros e constituíam
uma oportunidade para os jovens de talento divulgarem as suas obras.
Na época romana, o Museu dedicou-se mais ao ensino do que à
investigação, mas os imperadores conservaram-lhe os privilégios concedidos
pelos Ptolemeus, relativamente à habitação, alimentação e isenção de impostos.
Cláudio mandou-lhe acrescentar um novo edifício e Adriano participou nas suas
actividades durante o tempo em que esteve em Alexandria.
A Biblioteca
A Biblioteca ficava situada perto do Museu, no interior da
zona reservada dos palácios reais, o bairro de Bruquion, que dominava o porto.
A sua localização, de que não restam vestígios, seria próxima do sítio onde
hoje se ergue a nova Bibliotheca Alexandrina.
Quando os livros ultrapassaram a sua capacidade de armazenamento, foi
criado um anexo, a chamada Biblioteca Filha, no Serapeum reconstruído por Ptolemeu
III. Durante os primeiros séculos os documentos aludem exclusivamente a uma
única biblioteca, a Grande Biblioteca ou Biblioteca do rei, e só no fim do
século IV se faz menção de duas bibliotecas distintas; segundo Epifânio,
existiria "a primeira Biblioteca e uma outra, construída no Serapeum e
mais pequena do que a primeira, a que chamavam a Filha da primeira". No
século XII, Tzetzès alude também a duas bibliotecas distintas, uma fora do
palácio e outra no interior.
A Biblioteca e o Museu eram instituições administrativamente
distintas, sendo cada uma dirigida por uma pessoa diferente. A referência mais
antiga ao responsável da Biblioteca é feita, como vimos, na Carta de Aristeu, onde se menciona
Demétrio de Falero "que era encarregado da Biblioteca do rei". O
último bibliotecário cujo nome chegou até nós é Onasandro de Pafos que foi
nomeado "supervisor da Grande Biblioteca de Alexandria", por Ptolemeu
IX, quando este regressou do seu exílio em Chipre em 88 A.C. Em outros
documentos, o bibliotecário é designado como "chefe ou presidente da
Biblioteca" ou bibliophylax,
termo que, nos papiros, significa habitualmente "guarda dos
arquivos".
A relação completa dos bibliotecários de Alexandria não
chegou infelizmente até nós. Dispomos, como habitualmente, de algumas
referências dispersas e de duas listas incompletas, a primeira em Tzetzès e a
segunda num papiro de Oxyrhynchus. Da conjugação de ambas pode estabelecer-se a
lista seguinte:
1. Zenódoto de Éfeso 285-270 A.C.
2. Apolónio de Rodes 270-245 A.C.
3. Eratóstenes de Cirene 245-204/201 A.C.
4. Aristófanes de Bizâncio 204/201-189/186 A.C.
5. Apolónio Eidógrafo 189/186-175 A.C.
6. Aristarco de Samotrácia 175-145 A.C.
7. Kydas (um dos homens de armas) 145-116(?) A.C.
Estão ausentes desta lista dois dos nomes mais brilhantes da
Biblioteca, Demétrio de Falero e Calímaco. Segundo Aristeu, Demétrio é
designado como "encarregado da Biblioteca real"; segundo Tzetzès,
Calímaco é "um jovem da corte", não sendo feita a seu respeito
qualquer precisão especial. Tais ausências explicam-se facilmente. A lista que
aqui reconstituímos começa no reinado de Ptolemeu II Filadelfo, tendo sido ele,
muito provavelmente, que criou o lugar oficial de conservador em chefe.
Inicialmente, o cargo consistia em superintender e fiscalizar a progressão dos
trabalhos na biblioteca, e fora essa missão que Ptolemeu I confiara a Demétrio.
Quando Ptolemeu II sucedeu a seu pai, Demétrio foi imediatamente expulso e
exilado, pelas razões anteriormente referidas, e Zenódoto nomeado oficialmente
para o lugar recém-criado de Bibliotecário.
No que respeita a Calímaco, que era ainda "um
jovem", embora dotado de extraordinários talentos, foi-lhe confiada a
missão específica, que também já referimos, de organizar os célebres Catálogos da Biblioteca, os Pinakes. O último nome que figura na
lista, Kydas, é de algum modo surpreendente. Que faria um "homem de
armas" entre os sábios? A única explicação plausível para a sua nomeação
em 145 A.C., dever-se-á ao facto, muito provável, de ter sido ele o responsável
pela repressão dirigida por Ptolemeu VII Evergeta II contra a facção dos
membros do Museu que lhe era hostil. Foi precisamente em 145 A.C. que
Aristarco, o bibliotecário que o precedeu, fugiu do país acompanhado de muitos
outros sábios. Depois de Kydas o papiro menciona vagamente outros nomes, como Amónio
e Zeno-(?) e os gramáticos Dioklos e Apolodoro, no reinado de Ptolemeu IX, não
os classificando contudo como bibliotecários.
Zenódoto de Éfeso, o primeiro Bibliotecário foi um poeta
épico e um gramático e elaborou a primeira edição crítica dos poemas homéricos.
Foi ainda preceptor dos filhos de Ptolemeu I. Apolónio de Rodes, o segundo
Bibliotecário, é autor dos Argonáuticos.
Eratóstenes de Cirene, o terceiro Bibliotecário, poeta e crítico literário, é
antes de tudo um cientista, autor da Geometria,
a sua obra geográfica sobre a medida da terra. Escreveu também obras
filosóficas, poemas, histórias, una Astronomia,
Sobre as escolas de filosofia, Sobre a ausência do desgosto, e
numerosos tratados de gramática. Aristófanes de Bizâncio, o quarto Bibliotecário,
foi autor do Complemento às Tábuas de
Calímaco.
Como alguém escreveu, Demétrio de Falero, Zenódoto de Éfeso,
Calímaco e Eratóstenes, terão sido o primeiro "Quarteto de
Alexandria".
Demétrio de Falero, que recebera de Ptolemeu I o encargo de organizar
a Biblioteca, não se poupou esforços para corresponder ao desejo real. Aliás, o
soberano pôs à sua disposição elevadas quantias para que pudessem ser
adquiridas as obras existentes no mundo inteiro. Ptolemeu II terá comprado, por
uma soma elevada, a biblioteca de Aristóteles, na parte respeitante aos livros
que pertenciam à biblioteca da sua Escola, já que os manuscritos pessoais de
Aristóteles e do seu sucessor Teofrasto, que foram legados por este a Neleio,
acabaram mais tarde, após algumas vicissitudes, por ser confiscados por Sila
(86 A.C.) e levados para Roma. Durante a Idade Média existiu mesmo a convicção
de que o próprio Aristóteles ensinara em Alexandria, já que, segundo Estrabão,
ele "ensinou aos reis do Egipto a forma de organizar uma biblioteca".
Em qualquer caso, Aristóteles pode ser considerado como o pai espiritual da
Biblioteca de Alexandria. A ânsia dos Ptolemeus em reunir livros de todo o
mundo não conheceu limites. A esse respeito é ilustrativo o seguinte comentário
de Zeuxis (século II A.C), resumido por Galiano século II), a propósito de Ptolemeu III Evergeta: "era
tão ambicioso e faustoso (philotimos)
no que se referia aos livros, que ordenou que todos os livros daqueles que
desembarcassem em Alexandria lhe fossem trazidos, a fim de que se fizessem
imediatamente cópias e que se devolvessem aos visitantes não os originais mas
as cópias. [...] Foi assim que se constituiu na biblioteca de Alexandria um
fundo de «livros dos navios»". Segundo o mesmo Galiano, Ptolemeu III usava
ainda outros métodos. Assim, teria pedido aos atenienses, mediante uma caução
de quinze talentos de prata, "os livros de Sófocles, de Eurípides e de
Ésquilo, para os copiar". Mas não devolveu os originais, preferindo perder
o dinheiro. Estes livros dos três grandes trágicos não deveriam ser contudo os
manuscritos originais, nem mesmo as cópias da época, mas a edição oficial
mandada estabelecer por Licurgo no fim do século IV A.C., para evitar que os
actores ou os encenadores modificassem os textos quando as peças eram representadas.
Os livros eram adquiridos em diversos locais, nomeadamente em Atenas e em
Rodes, os grandes mercados de livros da época. Por vezes, a Biblioteca comprava
diversas versões duma mesma obra, como aconteceu no caso de Homero, da qual
foram adquiridos os textos em Quios, Sinope e Massalia.
Segundo a vontade de Ptolemeu I, prosseguida pelos seus
sucessores, a Biblioteca de Alexandria deveria congregar o saber universal, e
por isso dispor das obras escritas em todo o mundo. Assim, a par das obras
escritas em grego, foram traduzidos para grego os livros escritos noutras
línguas. Para isso, Ptolemeu recorreu a eruditos de todos os países conhecendo
tão bem o grego como a sua própria língua. Entre as traduções mais importantes
conta-se a dos "Anais Sagrados" egípcios, onde Hecateu de Abdera
recolheu informações para a sua Aegyptiaka
(c. 315 A.C.). Também Manéthon, sacerdote de Sebennytos, no Delta, a última
capital indígena do Egipto antes da conquista de Alexandre, foi encarregado de
escrever uma Aegyptiaka (História do
Egipto) em grego, que dedicou a Ptolemeu I. Pela mesma altura, Bérose, um
sacerdote de Bel-Marduk, em Babilónia, escreveu em grego uma história de
Babilónia em três volumes, a Babyloniaka,
que dedicou a Antíoco I, vizinho rival de Ptolemeu, que então procurava dotar
Antioquia de bibliotecas e bibliotecários, tomando por modelo Alexandria e
Pérgamo. Hermippe, discípulo de Calímaco, consagrou ao zoroastrismo uma
vastíssima obra e outros textos orientais foram igualmente vertidos para grego,
incluindo alguns sobre o budismo.
Contudo, uma das traduções mais famosas realizada na
Biblioteca de Alexandria foi a da Torah
hebraica (correspondente aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, o
Pentateuco), que é o livro sagrado dos judeus. Enquanto muitas traduções eram
motivadas pela curiosidade intelectual ou pelo interesse científico, a tradução
da Torah, correspondeu também a
razões de ordem prática. Estando a
comunidade judaica de Alexandria fortemente helenizada em finais do século III
A.C. , tornava-se necessário dispor de um texto grego do livro sagrado dos
judeus. As primeiras colónias judaicas no Egipto datam das perturbações que se
seguiram à tomada de Jerusalém por Nabucodonosor em 587 A.C. O "resto de
Judá" que não foi deportado para Babilónia escondeu-se no Egipto. Chegados
ao Delta, os judeus são acolhidos por mercenários gregos em Takhpankhés (a
Dafné do mundo grego). A partir do século VI A.C. existe uma colónia de
soldados judeus na ilha de Elefantina, em Assuão, atestada por arquivos
aramaicos de 494-400 A.C. Quando
Cambises conquista o Egipto em 525 A.C., encontra na ilha um templo de
"Yaho" e respeita-o. E aproveita-se da circunstância para integrar no
seu exército auxiliares judeus. É, porém, a partir de Alexandre, que a diáspora
judaica no Egipto se desenvolve consideravelmente, e em 300 A.C. está já bem
documentada a existência de uma comunidade judaica em Alexandria.
Segundo relata Aristeu na sua famosa Carta, cujo conteúdo é certamente fantasioso e a autoria discutível,
ele mesmo se teria deslocado a Jerusalém com a incumbência de solicitar ao
Sinédrio (o Supremo Conselho dos Hebreus) não só a autorização para traduzir o
texto sagrado para grego mas o envio de especialistas para procederem à
referida tradução. Note-se que até então fora interdito verter o texto hebraico
para uma língua profana, tal como só recentemente foi permitido traduzir o
texto árabe do Corão para outra língua; e até à Reforma a Bíblia Cristã foi
editada exclusivamente em latim, e a missa celebrada nessa língua até há poucos
anos. Contrariamente às expectativas, o Sinédrio aceitou sem dificuldades o
pedido de Ptolemeu I e os setenta e um sacerdotes bem como o sumo-sacerdote
Eléazar manifestaram-se dispostos a partir para Alexandria para realizarem esse
trabalho. Verificando-se contudo que a maioria não conhecia o grego, resolveram
designar os seus representantes: doze grupos de seis Anciãos, representando as
doze tribos de Israel. A tradição apelidou-os os Setenta, mas eram na realidade setenta e dois, chefes de clans e
perfeitos conhecedores da língua grega. Acolhidos pelo rei, que os recebeu com
um banquete e os interrogou sobre diversas matérias, colocaram como única
exigência para a realização do trabalho pretendido a de não ficarem instalados
no Museu, que consideravam um templo idólatra. O soberano, colocou-os então em
setenta e duas celas isoladas, construídas na ilha de Pharos, de onde não
poderiam sair até à conclusão da sua tradução. Os setenta e dois tradutores
terminaram ao mesmo tempo as respectivas traduções, ao fim de setenta e dois
dias, e afirma a crónica que estas eram todas rigorosamente iguais. Sabemos
hoje que a tradução dita dos Setenta,
foi realizada por partes ao longo dos séculos III e II A.C.; ao fim de dois mil
anos, permanece uma obra preciosa de toda a história das traduções e continua a
ser indispensável para a prossecução dos estudos bíblicos. A tradução dos Setenta abriu a Bíblia ao mundo e à
"palavra de Deus"; sem ela, as Escrituras Sagradas não seriam hoje
mais conhecidas que o Livro dos Mortos
do Antigo Egipto.
Sendo a Biblioteca de Alexandria a mais famosa do seu tempo
e uma das mais importantes de toda a
história, não resta hoje dela o mínimo vestígio. Esta questão tem intrigado os
historiadores e motivado discussões apaixonadas. Qual o destino das suas
fabulosas colecções de livros? Não restam hoje dúvidas de que foram destruídas.
Mas como e quando?
A Grande Biblioteca terá sido destruída, pelo menos
parcialmente, em 48 A.C., quando Júlio César chegado a Alexandria no encalço de
Pompeu, entretanto assassinado, se deparou com uma nova guerra civil egípcia,
entre Cleópatra VII e seu irmão Ptolemeu XIII. Tendo tomado o partido daquela
contra o irmão e sendo cercado pelos navios deste, mandou incendiar a frota
egípcia posicionada no porto, para ganhar tempo enquanto aguardava reforços. O
fogo propagou-se à cidade, que terá ardido em grande parte, incluindo a
Biblioteca, que estava situada próximo do mar. O próprio César se refere ao
incêndio dos navios, silenciando contudo o que pudesse ter ocorrido na cidade.
É Séneca, obrigado por Nero a suicidar-se em 65, que refere ter o fogo queimado
na altura 40.000 livros. No fim do século I, Plutarco comenta que o fogo ateado
por César destruiu a Grande Biblioteca e no século II Aulo Gélio escreve que
aquando do saque da cidade mais de 700.000 livros foram acidentalmente
queimados. Igual referência é feita por Amiano Marcelino no século IV, a
propósito da guerra de César. Por outro lado, Estrabão, que permaneceu em
Alexandria de 24 a 20 A.C., isto é, vinte anos depois da morte de César, e a
quem se deve a mais detalhada descrição da cidade antiga que possuímos
(refere-se pormenorizadamente ao Museu), não diz uma palavra sobre a
Biblioteca. Donde se poderá concluir que nessa data ela já não existia.
Sustentam, contudo, alguns críticos contemporâneos que o facto de Estrabão não
mencionar a Biblioteca na sua descrição se deve ao facto dele a ter considerado
parte integrante do Museu.
Sorte distinta teve o Museu. Embora ocupando presumivelmente
as duas instituições edifícios distintos, ainda que próximos, teria sido a
Biblioteca a mais fustigada pelo o incêndio. O Museu conseguiu sobreviver-lhe e
continuou a beneficiar da protecção dos imperadores durante os primeiros
séculos da dominação romana. O Museu possuía uma biblioteca na sua sala
principal, que foi poupada, tal como a biblioteca do Caesareum e a biblioteca do Serapeum,
(a Biblioteca Filha). Esta Biblioteca Filha tornou-se, depois do incêndio, a
principal biblioteca da cidade. Ainda segundo Plutarco, e para compensar
Cleópatra da perda da Biblioteca Real, Marco António ter-lhe-á oferecido
200.000 livros provenientes da biblioteca de Pérgamo. A partir do século III as
crises do Império reflectiram-se negativamente em Alexandria. Em 215, e como
represália contra uma rebelião, Caracala destruiu parcialmente o Museu e
expulsou os seus membros estrangeiros. Em 272, Aureliano atacou Alexandria para
expulsar Zenóbia, rainha de Palmira, que se havia apossado da cidade em 266. Os
membros do Museu procuraram então refúgio no Serapeum. No final do século, uma outra rebelião, em 297/298, foi
dominada pessoalmente por Diocleciano, que mandou massacrar numerosos cidadãos,
incluindo alguns sábios, cujos livros foram queimados, nomeadamente os que
tratavam de alquimia. Mesmo assim, e apesar de todos estes incidentes,
Alexandria permaneceu um centro cultural de relevo, dotado de uma vida
intelectual intensa. Sendo formalmente o Museu o templo das Musas, ele foi
considerado sagrado tanto quanto o foram os outros santuários pagãos durante a
vigência do Império Romano até ao reinado de Constantino. As últimas
referências à sua actividade devem-se a Sinésio de Cirene, no século IV e o
último sábio membro cujo nome chegou ao nosso conhecimento, foi o matemático
Théon, (c. 380), pai da filósofa Hipácia. Mas o Museu não deve ter sobrevivido
ao decreto de Teodósio (391), que mandou destruir todos os templos pagãos da
cidade.
O Serapeum,
juntamente com a Biblioteca Filha, foi destruído em 391 por uma multidão
furiosa de cristãos fanáticos, conduzidos pelo patriarca Teófilo e movidos pelo
zelo ardente de apagar os últimos vestígios de paganismo na cidade. Nessa
altura, já o cristianismo triunfava em todo o império romano. A filósofa
Hipácia, a última "bibliotecária" de Alexandria, foi arrastada pela
turba e assassinada. No lugar do Serapeum,
os cristãos construíram uma igreja.
O confronto final entre os representantes da civilização
helenística e os cristãos emergentes teve lugar no fim do século IV, e terminou
com a vitória dos segundos. Alexandria retomou a sua vida normal, mas agora
como centro intelectual do cristianismo e da sua Escola Catequética, fundada
pelo evangelista São Marcos e que contava entre os seus primeiros membros mais
ilustres o filósofo Orígenes e Clemente de Alexandria, considerado o primeiro
sábio cristão. Durante cerca de oito séculos não existe a mais pequena
referência quanto à existência ou destino do Museu, do Serapeum e das suas bibliotecas.
O historiador italiano Luciano Canfora sustenta que ficando
a Grande Biblioteca e o Museu no Distrito Real, e por isso devidamente
protegidos, o incêndio do porto mandado atear por Júlio César não pode ter sido
a causa da destruição da Biblioteca. Aliás, estando esta anexa ao Museu, se é
que não fazia parte do mesmo, a exemplo das "bibliotecas" dos templos
faraónicos, seria impossível que o fogo não tivesse devastado igualmente o
Museu, o que sabemos não aconteceu. Os livros queimados na ocasião, e a que
Séneca se refere, citando Tito-Lívio, teriam sido 40.000, que se encontravam na
zona do porto. Segundo Dion Cassius, o incêndio devastou "entre outros, o
arsenal e os depósitos de trigo e de livros", o que leva a supor que se
tratava de livros que, por qualquer razão, estavam armazenados naquela zona.
Segundo Canfora, o verdadeiro fim da Grande Biblioteca terá ocorrido durante o
conflito entre a rainha Zenóbia de Palmira, que se apoderara de Alexandria e o
imperador Aureliano, que procurava retomar a cidade, o que aconteceu em 272. Na
verdade, Amiano refere que nessa ocasião Alexandria "perdeu o bairro a que
chamavam Bruquion, morada habitual dos grandes espíritos". Ora Bruquion
era o Distrito Real.
É só no século XIII que dois grandes escritores árabes
narram um acontecimento que daria lugar à célebre lenda que persiste até aos
nossos dias. São eles Abdullatif de Baghdad, um médico que visitou o Egipto por
volta de 1200 e Ibn Al-Qifti, autor da História
dos sábios. Ambos referem que os livros existentes na Grande Biblioteca de
Alexandria teriam sido mandados queimar pelo general Amr Ibn Al-As, por ordem
do califa Omar, aquando da conquista da cidade pelos árabes em 642. O texto de
Abdullatif encontra-se eivado de erros e não merece, por isso, particular
confiança. Outro tanto não acontece com a descrição de Ibn Al-Qifti, cuja
verosimilhança de pormenores levou a considerá-la como autêntica até aos nossos
dias, apesar das objecções desde então levantadas por muitos historiadores.
Conta Al-Qifti que Amr Ibn Al-As, confrontado com a
existência da valiosíssima Biblioteca, escreveu ao califa Omar pedindo-lhe
instruções quanto ao destino a dar a tantos livros reputadamente célebres. A
resposta de Omar surgiu de forma dilemática: "A propósito dos livros que
mencionas, se o que neles se encontra está de acordo com o Livro de Deus (o Corão),
eles não são necessários; se não está de acordo, eles são inúteis. Portanto,
deves destruí-los."
Conforme a vontade do califa, Amr mandou distribuir os
livros pelos banhos da cidade para servirem de combustível de aquecimento.
Levaram seis meses até serem todos queimados.
A narração de Al-Qifti, repetida por vários historiadores
árabes, só foi conhecida na Europa no século XVII. Um dos principais críticos
foi o historiador britânico A.J. Butler, ainda que os seus argumentos não sejam
totalmente pacíficos. Por exemplo, quando refere que os livros a partir do
século IV eram escritos habitualmente em pergaminho, e que este não arde, tal
afirmação não é conclusiva, pois sabemos que não só o papiro foi o principal
suporte da escrita até ao século VIII como o pergaminho é susceptível de ser
queimado a uma temperatura à volta dos 400º, a qual não se pode qualificar de
extraordinariamente elevada. Assim, a controvérsia mantém-se até hoje. Mas se
admitirmos que a versão de Al-Qifti não é verdadeira, o que teria levado um
árabe ilustre do século XIII a registar uma afirmação que contribuiria para
denegrir a imagem atribuída ao povo árabe de protector da cultura?
São muitas as teses em confronto, e é impossível dar conta,
aqui, das razões aduzidas ao longo dos séculos. Parece, todavia, admissível
que, a ser este um episódio fantástico, Ibn Al-Qifti tenha pretendido
justificar alguns actos do seu novo soberano Saladino. De facto, ao conquistar
o Egipto e ao instalar um novo culto sunita em substituição do culto xiita dos Fatímidas,
Saladino encontrou-se sem dinheiro para prosseguir as suas campanhas contra os
cruzados. Assim, vendeu em leilão a célebre biblioteca fatímida do Cairo, que
possuía ainda mais de 120.000 volumes, parte dos dois milhões que contivera na
época áurea daquele califado, e de que uma importante parcela fora já vendida
por Al-Mustansir para pagar as suas dívidas. Saladino desfizera-se também da
biblioteca da cidade síria de Amed (no curso superior do Eufrates), avaliada em
mais de um milhão de volumes, também
para pagamento de serviços prestados. Portanto, a narração da História dos sábios, de Al-Qifti,
poderia servir para justificar os actos de Saladino a uma opinião pública
descontente, tentando demonstrar que era preferível vender livros em situações
de urgência de que mandar queimá-los para aquecer banhos públicos.
Independentemente da autenticidade da história dos livros
queimados, é um facto que o declínio cultural de Alexandria começa com a
conquista árabe, ainda que a cultura grega sobreviva alguns séculos. Os novos
centros do poder passam a ser primeiro Damasco e depois Baghdad. Os califas
omíadas mandaram proceder à tradução para árabe de numerosas obras científicas
gregas e dotaram-se de um corpo de intérpretes gregos, sírios e coptas. O
califa Abdel Malik Ibn Marwan criaria mesmo um serviço especial de traduções a
fim de arabizar a administração do país. Mas a grande revolução cultural é
empreendida pelos califas abássidas. Harun Al-Rachid, no século IX, cria em Baghdad a Bayt
Al-Hikma (Casa da Sabedoria), que de simples biblioteca se torna, com seu
filho Al-Ma'amun, um verdadeiro centro de estudos. Os abássidas, como outrora
os Ptolemeus, procuram por toda a parte livros para enriquecer as suas
bibliotecas. São feitas traduções do grego, do persa, do sânscrito, do siríaco,
do arménio ou até do etíope. A partir do século XII, o interesse dos árabes
pelas traduções da época clássica é substituído pelo gosto das compilações e
dos estudos do passado. Entre o século XV e o século XIX, os árabes deixam
progressivamente de se interessar pelo estudo e conservação das obras
clássicas. E só com o advento do século XX se regista um movimento de renovação
do pensamento em relação à cultura helenística.
Todavia, Alexandria, mesmo nos seus dias mais difíceis,
permaneceu no imaginário colectivo como o lugar por excelência onde se
acumulara o saber universal e donde ele irradiara para o resto do mundo. No
momento em que a nova Bibliotheca Alexandrina, sucessora da Grande Biblioteca
Ptolemaica, ensaia os primeiros passos, em torno do busto de Alexandre Magno e
à sombra tutelar da estátua de Ptolemeu II, possa ela ser, já não o farol que
ilumina urbi et orbi, mas pelo menos
a grande janela do Egipto sobre o mundo e deste sobre o Egipto.
NOTA: Este artigo era acompanhado de muitas imagens e mapas que agora não posso reproduzir.
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