terça-feira, 4 de julho de 2017

A ANTIGA BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA E O MUSEU


Museu e Biblioteca de Alexandria (reconstituição fantasiosa)


Por me ter sido agora solicitado, publico a versão provisória do capítulo "A Antiga Biblioteca e o Museu", que faz parte de um trabalho que iniciei há mais de dez anos, para o Ministério da Cultura, intitulado Alexandria, Ainda e Sempre (a história de Alexandria da fundação por Alexandre Magno até aos nossos dias), e que não teve continuidade devido a uma nova política de divulgação cultural, na sequência de uma substituição de Governo em Portugal.


A Antiga Biblioteca e o Museu


A Biblioteca de Alexandria foi a mais célebre biblioteca da Antiguidade e a sua fama chegou incólume aos nossos dias. Sendo a mais vasta do seu tempo, ela foi também um centro de investigação científica e um local de convívio dos estudiosos e eruditos de todo o Mediterrâneo. Durante mais de mil anos, os trabalhos dos sábios da antiga  Alexandria serviram de farol aos letrados muçulmanos e cristãos da Idade Média tal como aos humanistas europeus do Renascimento. Antes da era alexandrina o saber tivera, em larga medida, um carácter regional, mas com a criação da Biblioteca de Alexandria, que foi a primeira biblioteca universal da história da humanidade, ele adquiriu, em consequência, uma dimensão universal.

Contudo, a instituição primordial da cultura alexandrina foi o Museu (Mouseion) ou Templo das Musas, a primeira grande universidade dos tempos antigos, no qual a Biblioteca estava incorporada e, talvez por constituir a parte material do conjunto, foi esta que permaneceu na memória dos homens. Por uma invulgar coincidência, as fontes ptolemaicas à nossa disposição nunca mencionam
simultaneamente o Museu e a Biblioteca. No século III A.C., só o Museu é evocado nos versos de Tímon e de Herondas. No século II A.C., Aristeu, na sua Carta a Filócrates, apenas refere a Biblioteca e Estrabão, escrevendo sobre Alexandria após a queda dos Ptolemeus, limita-se a descrever o Museu. Durante o Império Romano, nos escritos de homens como Ateneu e Ireneu, as duas instituições aparecem ligadas, sendo geralmente admitido que foram criadas ao mesmo tempo e que se completavam na sua missão cultural.

A principal dificuldade com que nos deparamos para conhecer a vida e o destino da Biblioteca de Alexandria é a exiguidade das fontes disponíveis. Tudo o que nos resta são referências dispersas pelas obras de vários autores, o que torna impossível a reconstituição da sua história. Sabemos, por exemplo, que Calímaco de Cirene, por ordem de Ptolemeu II, escreveu uma "Tábua dos escritores que se ilustraram em todos os géneros e das obras que compuseram", as famosas Pinakes, que era um catálogo em 120 livros (rolos de papiro), que agrupava os autores por ordem alfabética, dentro de cada género (épica, lírica, drama, oratória, etc.), as primeiras palavras dos seus livros, o número de linhas, uma curta biografia, e, por vezes, discussões de autenticidade. Este trabalho, que infelizmente não chegou aos nossos dias, mais do que um catálogo poderia considerar-se como um antepassado das histórias da literatura. Também uma obra de Aristonico acerca do Museu, o Tratado sobre o Museu de Alexandria, da qual o patriarca Fócio, erudito bizantino, ainda pôde ler alguns fragmentos, desapareceu na voragem do tempo. Talvez a razão de uma informação tão escassa e fragmentária resida no facto dos autores coevos, perante a importância e o renome da Biblioteca, considerarem inútil ou temerária qualquer tentativa de descrição da mesma. Ateneu, que para a elaboração do seu livro recorreu à consulta de 1.500 obras da Biblioteca, pergunta-se: "No que se refere ao número dos livros e à organização das bibliotecas e da assembleia do Museu, que poderei dizer que não seja já conhecido de todos?".

As fontes relativas à fundação do Museu e da Biblioteca reflectem duas tradições distintas. Uma atribui o mérito a Ptolemeu I Sóter, a outra a Ptolemeu II Filadelfo. O documento mais antigo que possuímos sobre a matéria é referida Carta de Aristeu e data do século II A.C. Ao relatar a lendária tradução dos Setenta, Aristeu conta que o trabalho teve lugar durante o reinado de Ptolemeu II, de acordo com os conselhos de Demétrio de Falero, que era o "encarregado da Biblioteca do Rei". Esta afirmação influenciou bastante os autores posteriores que se referiram à tradução da Lei judaica, como Flávio Josefo, Ateneu ou Epifânio. Por outro lado, apenas um documento atribui explicitamente a Ptolemeu I a fundação da Biblioteca. Trata-se de um texto de Ireneu, escrito no século II, em que este diz que "Ptolemeu, filho de Lagos, tinha a ambição de dotar a biblioteca fundada por ele em Alexandria dos escritos de todos os homens desde que fossem dignos de interesse". No século III, Clemente de Alexandria produz uma afirmação ambígua e confusa: "Sob o reinado do rei Ptolemeu, filho de Lagos, ou, como alguns dizem, sob o reinado do rei cognominado Filadelfo". Seria então o pai ou o filho? É um facto que a glória de Ptolemeu II ofuscou a de seu pai e durante toda a Idade Média foi-lhe atribuída a fundação da Biblioteca, com a colaboração de Demétrio de Falero.

Apesar do peso da tradição em favor de Ptolemeu II, os historiadores modernos inclinam-se a atribuir o mérito da fundação do Museu e da Biblioteca a Ptolemeu I Sóter. A razão desta atitude provém do facto conhecido da incompatibilidade entre Filadelfo e Demétrio, que surgem associados naquela tradição.

Demétrio de Falero era um discípulo da escola peripatética e foi tirano de Atenas durante dez anos, até ao seu banimento em 307 A.C. Depois de uma curta permanência em Tebas (na Grécia) fugiu para o Egipto, o mais tardar em 297 A.C., onde se tornou conselheiro de Ptolemeu I, devido à sua vasta e variada experiência. Homem político brilhante, Demétrio foi também um autor prolífico, cuja "erudição e variedade dos talentos" era tida em grande estima por Diógenes Laércio, que estabeleceu uma lista dos seus escritos. Segundo este seu biógrafo, Demétrio foi autor de um número de obras impressionante e que revelam um saber efectivamente enciclopédico. Entre elas, um tratado sobre Leis de Atenas, escritos sobre a Retórica, a Arte Militar, a Demagogia, obras consagradas à Íliada e à Odisseia, um tratado sobre Homero, uma compilação das poesia de Esopo, obras de moral sobre o Casamento, a Grandeza da Alma, a Fortuna, etc. Encontram-se nesta enumeração as preocupações da escola peripatética, tal como haviam sido expressas por Aristóteles  e Teofrasto, ainda que o interesse de Demétrio se dirigisse mais para as obras políticas e morais do que para a ciência propriamente dita. Entre as suas obras de investigação, encontram-se novas preocupações, o que se poderia chamar a crítica literária, o cuidado de reflectir sobre as grandes obras do passado ou de as reunir, como o fez para as fábulas de Esopo. As suas obras são verdadeiramente a prefiguração do que será a escola de Alexandria. Demétrio de Falero é o último grande homem da história de Atenas e terá sido ele, plausivelmente, que inspirou a Ptolemeu I a ideia de fundar em Alexandria um grande centro de investigação que seria conhecido pelo nome de Museu e de lhe anexar uma biblioteca universal. Esta sugestão não poderia ser mais oportuna, pois correspondia ao desejo de Ptolemeu de tornar Alexandria não só a capital de um poderoso império como também um lugar de cultura e de civilização. A admiração de Ptolemeu Sóter pela escola peripatética devia-se possivelmente ao facto de ele ter recebido, ao mesmo tempo que Alexandre Magno, as lições de Aristóteles, em Pela, capital da Macedónia. Essa admiração é confirmada pelas diligências que efectuou junto de Teofrasto, o seu mestre depois de Aristóteles, para que este se tornasse preceptor do seu filho, o futuro Ptolemeu II. Não o conseguindo, aceitou os serviços de um discípulo daquele, Estratão, que foi um físico eminente. Assim, enquanto Ptolemeu I foi vivo, Demétrio gozou dos favores reais, sendo protegido e respeitado. Por morte do rei, em 285 A.C. (ou 283, segundo outras fontes) a sua situação modificou-se. Algum tempo antes de morrer, Ptolemeu I tinha solicitado a opinião de Demétrio quanto à nomeação de um dos seus filhos como co-regente. Este mostrara-se favorável à escolha de um dos filhos de Eurídice, mas Ptolemeu acabou por decidir-se pelo filho que tivera de Bérénice, o futuro Ptolemeu II, que nunca perdoou a preferência de Demétrio pelos seus meio-irmãos, mandando-o prender e exilar numa aldeia do Delta, onde morreu, tendo sido enterrado na região de Busiris, perto de Dióspolis. A biografia de Demétrio de Falero demonstra assim à evidência não só como teria sido impossível qualquer colaboração entre ele e Ptolemeu II, mas igualmente a fortíssima probabilidade dele poder concretizar, graças à confiança e amizade de Ptolomeu I, o seu projecto de criar em Alexandria um centro de estudos que rivalizasse com o próprio Liceu de Aristóteles, em Atenas

O Museu


O plano do Museu seguia o modelo conhecido das duas grandes escolas filosóficas de Atenas, a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles. Registam-se três testemunhos que confirmam as semelhanças.

Segundo Diógenes Laércio, Polémon, que foi director da Academia de 314 a 276 A.C. aproximadamente, "retirava-se do mundo para se isolar no Jardim da Academia e os seus discípulos, tendo feito construir perto pequenas celas, viviam não distante do santuário das Musas (mouseion) e da exédra".

Também Teofrasto, que esteve à frente do Liceu de 322 a 286 A.C., fornece, no seu testamento, informações precisas. Segundo ele, a escola, á face da lei, era uma fundação religiosa, que compreendia um santuário das Musas (mouseion) ornamentado com estátuas das deusas e um busto de Aristóteles, um pequeno claustro (stoidion), um claustro (stoa) onde estavam colocadas placas em que eram gravados os mapas dos países até então explorados, um altar, um jardim , um pórtico (o célebre peripatos) e habitações.

Por sua vez, Estrabão dá as seguintes indicações sobre o Museu de Alexandria: "Faz parte do palácio real, compreende o pórtico (peripatos), uma galeria (exédra) e uma grande habitação abrigando um refeitório onde os sábios que são membros do Museu tomam as refeições em conjunto. Nesta comunidade, mesmo o dinheiro é pertença de todos. Têm também um sacerdote que é o chefe do Museu, que antigamente era designado pelos soberanos e que hoje é por Augusto". A designação de um sacerdote para presidir aos destinos do Museu sublinha o carácter religioso da instituição.

As referências de Estrabão são a única indicação existente sobre a arquitectura do Museu, já que a obra de Aristonicus, que forneceria certamente elementos preciosos sobre a instituição, infelizmente, como já referimos, não chegou até nós.

A época helenística é a idade de ouro da ciência antiga e para tal contribuiu a munificência 

Graças à munificência dos primeiros Ptolemeus, o Museu de Alexandria proporcionou as condições materiais favoráveis ao florescimento da ciência antiga, que teve a sua idade de ouro no período helenístico. Quase todos os grandes sábios da época se lhe encontram ligados, embora alguns viessem a abrir escolas noutros lugares.

Se considerarmos separadamente cada uma das ciências, podemos traçar o seguinte quadro:

a)  Medicina: Os grandes médicos do século III A.C. são Herófilo de Calcedónia e Erasístrato. O primeiro fez estudos de frenologia, descobrindo a distinção entre cérebro e cerebelo, descreveu o duodeno e o pâncreas e efectuou a separação entre tendões e nervos. Além disso, retomou a teoria de Alcméon, impugnada por Aristóteles, de que o cérebro é o centro das sensações. Erasístrato, seu discípulo, considerado o fundador da fisiologia, como Herófilo o fora da anatomia, distinguiu entre nervos sensitivos e motores e dedicou-se ao estudo dos vasos sanguíneos.

b)  Matemática e Física: É também do século III A.C. a grande trindade dos matemáticos alexandrinos: Euclides de Alexandria, Apolónio de Perga e Arquimedes. Euclides lançou as bases da geometria com os treze livros dos seus Elementos, que foram dedicados a Ptolomeu I. Apolónio notabilizou-se pelos seus estudos sobre secções de cones. Arquimedes foi o matemático mais famoso da Antiguidade. Descobriu o princípio da impulsão dos corpos, quando se encontrava a tomar banho, tendo proferido a célebre exclamação: "Eureka" (Achei). A sua obra principal em geometria intitula-se Da esfera e do cilindro, tendo estudado também mecânica, especialmente nos seus Corpos flutuantes e Equilibrio de Planos.

c)  Astronomia: No século II A.C., Aristarco de Samos estudou os Tamanhos e Distâncias do Sol e da Lua e propôs, pela primeira vez, a teoria heliocêntrica, segundo a qual o sol está no centro do universo e os planetas, com excepção da lua, giram á volta dele. Este princípio fora já esboçado por Heraclides Pôntico no século IV A.C., mas é Aristarco quem lhe dá forma. No século II, Hiparco de Niceia, apesar de ter descoberta o fenómeno da precessão dos equinócios, refutou a teoria de Aristarco e Ptolemeu de Alexandria (Cláudio Ptolemeu), com a sua reconhecida autoridade de astrónomo, confirmou a teoria geocêntrica, que prevaleceria durante toda a Idade Média. Foi Copérnico, que em 1543, ano da sua morte, divulgou as novas bases da teoria heliocêntrica, novamente rejeitadas por Tycho Brahe, em 1585 e só definitivamente estabelecidas por Kepler em 1609. A confirmação final viria, no século XVII, com Galileu.

d)  Geografia: A grande figura da geografia é Eratóstenes, no século III A.C., que escreveu um tratado de Geometria, isto é, da medição da superfície da terra, executado por meio da determinação das latitudes.

e)  Engenharia: Considerada uma das sete maravilhas do mundo, o Farol de Alexandria, construído no século III A.C. deve-se a Sóstrato de Cnidos, um dos grandes arquitectos e engenheiros da Antiguidade.

Já no período romano, devemos indicar ainda Estrabão, na Geografia, nos séculos I A.C-I D.C., Dioscórides, na Botânica, no século I, Galeno, na Medicina, no século II, o já citado Ptolomeu de Alexandria, na Astronomia e na Geografia, também no século II, cuja obra maior se tornou conhecida por Megale Sýntaxis ou "Grande Colecção" e que os árabes passaram a designar por Megiste, donde o nome árabe Almagesto e, finalmente, Diofanto, no século III, autor de Aritmética, um tratado de álgebra (um nome já árabe), a última grande criação da ciência grega.

Regressando a Estrabão, verificamos que o Museu era uma instituição autónoma, organizada em comunidade (synodos), dotada de meios que lhe asseguravam a subsistência. Além do sacerdote, responsável pelo cumprimento das regras espirituais inerentes ao culto das Musas e primeiro dignitário, havia no Museu um outro funcionário, o épistate, que era o encarregado da administração geral e das finanças. Os membros do Museu usufruíam de alimentação e alojamento gratuitos e estavam isentos de impostos. É ainda provável que recebessem salários elevados pelo desempenho das suas funções. A sua nomeação dependia da aprovação do rei e embora gozassem de grande liberdade e dispusessem de meios consideráveis para o desenvolvimento das suas investigações, tinham plena consciência de estar ao serviço do soberano e de que a sua carreira dependia exclusivamente do favor real. Talvez por isso, enquanto sob o reinado dos Ptolemeus a ciência conheceu um notável desenvolvimento e a literatura floresceu, a filosofia foi claramente negligenciada.

O Museu foi essencialmente um centro de investigação, não sendo por isso ministrado qualquer tipo de ensino regular. No entanto, referindo as biografias existentes que determinados sábios foram mestres ou alunos de alguns membros eminentes do Museu, isso pode explicar-se pelo facto deste recrutar jovens brilhantes que serviam de assistentes das figuras mais reputadas da instituição. Só na medicina se terá verificado algo de semelhante a lições, através do exercício da actividade clínica dos mestres. Há ainda notícia da prática de um ensino público, através de conferências e colóquios a que por vezes assistia o próprio rei. Também a realização das festas em honra de Apolo e das Musas, inauguradas provavelmente por Ptolemeu IV, servia para estabelecer uma ligação entre o Museu e a população. Estas festas compreendiam jogos e concursos literários e os seus vencedores eram recompensados com prémios e honrarias. Podiam participar concorrentes estrangeiros e constituíam uma oportunidade para os jovens de talento divulgarem as suas obras.

Na época romana, o Museu dedicou-se mais ao ensino do que à investigação, mas os imperadores conservaram-lhe os privilégios concedidos pelos Ptolemeus, relativamente à habitação, alimentação e isenção de impostos. Cláudio mandou-lhe acrescentar um novo edifício e Adriano participou nas suas actividades durante o tempo em que esteve em Alexandria.

A Biblioteca


A Biblioteca ficava situada perto do Museu, no interior da zona reservada dos palácios reais, o bairro de Bruquion, que dominava o porto. A sua localização, de que não restam vestígios, seria próxima do sítio onde hoje se ergue a nova Bibliotheca Alexandrina.  Quando os livros ultrapassaram a sua capacidade de armazenamento, foi criado um anexo, a chamada Biblioteca Filha, no Serapeum reconstruído por Ptolemeu III. Durante os primeiros séculos os documentos aludem exclusivamente a uma única biblioteca, a Grande Biblioteca ou Biblioteca do rei, e só no fim do século IV se faz menção de duas bibliotecas distintas; segundo Epifânio, existiria "a primeira Biblioteca e uma outra, construída no Serapeum e mais pequena do que a primeira, a que chamavam a Filha da primeira". No século XII, Tzetzès alude também a duas bibliotecas distintas, uma fora do palácio e outra no interior.

A Biblioteca e o Museu eram instituições administrativamente distintas, sendo cada uma dirigida por uma pessoa diferente. A referência mais antiga ao responsável da Biblioteca é feita, como vimos, na Carta de Aristeu, onde se menciona Demétrio de Falero "que era encarregado da Biblioteca do rei". O último bibliotecário cujo nome chegou até nós é Onasandro de Pafos que foi nomeado "supervisor da Grande Biblioteca de Alexandria", por Ptolemeu IX, quando este regressou do seu exílio em Chipre em 88 A.C. Em outros documentos, o bibliotecário é designado como "chefe ou presidente da Biblioteca" ou bibliophylax, termo que, nos papiros, significa habitualmente "guarda dos arquivos".

A relação completa dos bibliotecários de Alexandria não chegou infelizmente até nós. Dispomos, como habitualmente, de algumas referências dispersas e de duas listas incompletas, a primeira em Tzetzès e a segunda num papiro de Oxyrhynchus. Da conjugação de ambas pode estabelecer-se a lista seguinte:

1. Zenódoto de Éfeso                       285-270 A.C.
2. Apolónio de Rodes                       270-245 A.C.
3. Eratóstenes de Cirene               245-204/201 A.C.
4. Aristófanes de Bizâncio         204/201-189/186 A.C.
5. Apolónio Eidógrafo                  189/186-175 A.C.
6. Aristarco de Samotrácia                 175-145 A.C.
7. Kydas (um dos homens de armas)       145-116(?) A.C.

Estão ausentes desta lista dois dos nomes mais brilhantes da Biblioteca, Demétrio de Falero e Calímaco. Segundo Aristeu, Demétrio é designado como "encarregado da Biblioteca real"; segundo Tzetzès, Calímaco é "um jovem da corte", não sendo feita a seu respeito qualquer precisão especial. Tais ausências explicam-se facilmente. A lista que aqui reconstituímos começa no reinado de Ptolemeu II Filadelfo, tendo sido ele, muito provavelmente, que criou o lugar oficial de conservador em chefe. Inicialmente, o cargo consistia em superintender e fiscalizar a progressão dos trabalhos na biblioteca, e fora essa missão que Ptolemeu I confiara a Demétrio. Quando Ptolemeu II sucedeu a seu pai, Demétrio foi imediatamente expulso e exilado, pelas razões anteriormente referidas, e Zenódoto nomeado oficialmente para o lugar recém-criado de Bibliotecário. 

No que respeita a Calímaco, que era ainda "um jovem", embora dotado de extraordinários talentos, foi-lhe confiada a missão específica, que também já referimos, de organizar os célebres Catálogos da Biblioteca, os Pinakes. O último nome que figura na lista, Kydas, é de algum modo surpreendente. Que faria um "homem de armas" entre os sábios? A única explicação plausível para a sua nomeação em 145 A.C., dever-se-á ao facto, muito provável, de ter sido ele o responsável pela repressão dirigida por Ptolemeu VII Evergeta II contra a facção dos membros do Museu que lhe era hostil. Foi precisamente em 145 A.C. que Aristarco, o bibliotecário que o precedeu, fugiu do país acompanhado de muitos outros sábios. Depois de Kydas o papiro menciona vagamente outros nomes, como Amónio e Zeno-(?) e os gramáticos Dioklos e Apolodoro, no reinado de Ptolemeu IX, não os classificando contudo como bibliotecários.

Zenódoto de Éfeso, o primeiro Bibliotecário foi um poeta épico e um gramático e elaborou a primeira edição crítica dos poemas homéricos. Foi ainda preceptor dos filhos de Ptolemeu I. Apolónio de Rodes, o segundo Bibliotecário, é autor dos Argonáuticos. Eratóstenes de Cirene, o terceiro Bibliotecário, poeta e crítico literário, é antes de tudo um cientista, autor da Geometria, a sua obra geográfica sobre a medida da terra. Escreveu também obras filosóficas, poemas, histórias, una Astronomia, Sobre as escolas de filosofia, Sobre a ausência do desgosto, e numerosos tratados de gramática. Aristófanes de Bizâncio, o quarto Bibliotecário, foi autor do Complemento às Tábuas de Calímaco.

Como alguém escreveu, Demétrio de Falero, Zenódoto de Éfeso, Calímaco e Eratóstenes, terão sido o primeiro "Quarteto de Alexandria".

Demétrio de Falero, que recebera de Ptolemeu I o encargo de organizar a Biblioteca, não se poupou esforços para corresponder ao desejo real. Aliás, o soberano pôs à sua disposição elevadas quantias para que pudessem ser adquiridas as obras existentes no mundo inteiro. Ptolemeu II terá comprado, por uma soma elevada, a biblioteca de Aristóteles, na parte respeitante aos livros que pertenciam à biblioteca da sua Escola, já que os manuscritos pessoais de Aristóteles e do seu sucessor Teofrasto, que foram legados por este a Neleio, acabaram mais tarde, após algumas vicissitudes, por ser confiscados por Sila (86 A.C.) e levados para Roma. Durante a Idade Média existiu mesmo a convicção de que o próprio Aristóteles ensinara em Alexandria, já que, segundo Estrabão, ele "ensinou aos reis do Egipto a forma de organizar uma biblioteca". Em qualquer caso, Aristóteles pode ser considerado como o pai espiritual da Biblioteca de Alexandria. A ânsia dos Ptolemeus em reunir livros de todo o mundo não conheceu limites. A esse respeito é ilustrativo o seguinte comentário de Zeuxis (século II A.C), resumido por Galiano século II), a propósito de Ptolemeu III Evergeta: "era tão ambicioso e faustoso (philotimos) no que se referia aos livros, que ordenou que todos os livros daqueles que desembarcassem em Alexandria lhe fossem trazidos, a fim de que se fizessem imediatamente cópias e que se devolvessem aos visitantes não os originais mas as cópias. [...] Foi assim que se constituiu na biblioteca de Alexandria um fundo de «livros dos navios»". Segundo o mesmo Galiano, Ptolemeu III usava ainda outros métodos. Assim, teria pedido aos atenienses, mediante uma caução de quinze talentos de prata, "os livros de Sófocles, de Eurípides e de Ésquilo, para os copiar". Mas não devolveu os originais, preferindo perder o dinheiro. Estes livros dos três grandes trágicos não deveriam ser contudo os manuscritos originais, nem mesmo as cópias da época, mas a edição oficial mandada estabelecer por Licurgo no fim do século IV A.C., para evitar que os actores ou os encenadores modificassem os textos quando as peças eram representadas. Os livros eram adquiridos em diversos locais, nomeadamente em Atenas e em Rodes, os grandes mercados de livros da época. Por vezes, a Biblioteca comprava diversas versões duma mesma obra, como aconteceu no caso de Homero, da qual foram adquiridos os textos em Quios, Sinope e Massalia.

Segundo a vontade de Ptolemeu I, prosseguida pelos seus sucessores, a Biblioteca de Alexandria deveria congregar o saber universal, e por isso dispor das obras escritas em todo o mundo. Assim, a par das obras escritas em grego, foram traduzidos para grego os livros escritos noutras línguas. Para isso, Ptolemeu recorreu a eruditos de todos os países conhecendo tão bem o grego como a sua própria língua. Entre as traduções mais importantes conta-se a dos "Anais Sagrados" egípcios, onde Hecateu de Abdera recolheu informações para a sua Aegyptiaka (c. 315 A.C.). Também Manéthon, sacerdote de Sebennytos, no Delta, a última capital indígena do Egipto antes da conquista de Alexandre, foi encarregado de escrever uma Aegyptiaka (História do Egipto) em grego, que dedicou a Ptolemeu I. Pela mesma altura, Bérose, um sacerdote de Bel-Marduk, em Babilónia, escreveu em grego uma história de Babilónia em três volumes, a Babyloniaka, que dedicou a Antíoco I, vizinho rival de Ptolemeu, que então procurava dotar Antioquia de bibliotecas e bibliotecários, tomando por modelo Alexandria e Pérgamo. Hermippe, discípulo de Calímaco, consagrou ao zoroastrismo uma vastíssima obra e outros textos orientais foram igualmente vertidos para grego, incluindo alguns sobre o budismo.  

Contudo, uma das traduções mais famosas realizada na Biblioteca de Alexandria foi a da Torah hebraica (correspondente aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, o Pentateuco), que é o livro sagrado dos judeus. Enquanto muitas traduções eram motivadas pela curiosidade intelectual ou pelo interesse científico, a tradução da Torah, correspondeu também a razões de ordem  prática. Estando a comunidade judaica de Alexandria fortemente helenizada em finais do século III A.C. , tornava-se necessário dispor de um texto grego do livro sagrado dos judeus. As primeiras colónias judaicas no Egipto datam das perturbações que se seguiram à tomada de Jerusalém por Nabucodonosor em 587 A.C. O "resto de Judá" que não foi deportado para Babilónia escondeu-se no Egipto. Chegados ao Delta, os judeus são acolhidos por mercenários gregos em Takhpankhés (a Dafné do mundo grego). A partir do século VI A.C. existe uma colónia de soldados judeus na ilha de Elefantina, em Assuão, atestada por arquivos aramaicos de 494-400 A.C.  Quando Cambises conquista o Egipto em 525 A.C., encontra na ilha um templo de "Yaho" e respeita-o. E aproveita-se da circunstância para integrar no seu exército auxiliares judeus. É, porém, a partir de Alexandre, que a diáspora judaica no Egipto se desenvolve consideravelmente, e em 300 A.C. está já bem documentada a existência de uma comunidade judaica em Alexandria.               

Segundo relata Aristeu na sua famosa Carta, cujo conteúdo é certamente fantasioso e a autoria discutível, ele mesmo se teria deslocado a Jerusalém com a incumbência de solicitar ao Sinédrio (o Supremo Conselho dos Hebreus) não só a autorização para traduzir o texto sagrado para grego mas o envio de especialistas para procederem à referida tradução. Note-se que até então fora interdito verter o texto hebraico para uma língua profana, tal como só recentemente foi permitido traduzir o texto árabe do Corão para outra língua; e até à Reforma a Bíblia Cristã foi editada exclusivamente em latim, e a missa celebrada nessa língua até há poucos anos. Contrariamente às expectativas, o Sinédrio aceitou sem dificuldades o pedido de Ptolemeu I e os setenta e um sacerdotes bem como o sumo-sacerdote Eléazar manifestaram-se dispostos a partir para Alexandria para realizarem esse trabalho. Verificando-se contudo que a maioria não conhecia o grego, resolveram designar os seus representantes: doze grupos de seis Anciãos, representando as doze tribos de Israel. A tradição apelidou-os os Setenta, mas eram na realidade setenta e dois, chefes de clans e perfeitos conhecedores da língua grega. Acolhidos pelo rei, que os recebeu com um banquete e os interrogou sobre diversas matérias, colocaram como única exigência para a realização do trabalho pretendido a de não ficarem instalados no Museu, que consideravam um templo idólatra. O soberano, colocou-os então em setenta e duas celas isoladas, construídas na ilha de Pharos, de onde não poderiam sair até à conclusão da sua tradução. Os setenta e dois tradutores terminaram ao mesmo tempo as respectivas traduções, ao fim de setenta e dois dias, e afirma a crónica que estas eram todas rigorosamente iguais. Sabemos hoje que a tradução dita dos Setenta, foi realizada por partes ao longo dos séculos III e II A.C.; ao fim de dois mil anos, permanece uma obra preciosa de toda a história das traduções e continua a ser indispensável para a prossecução dos estudos bíblicos. A tradução dos Setenta abriu a Bíblia ao mundo e à "palavra de Deus"; sem ela, as Escrituras Sagradas não seriam hoje mais conhecidas que o Livro dos Mortos do Antigo Egipto.

Sendo a Biblioteca de Alexandria a mais famosa do seu tempo e uma das mais importantes de toda  a história, não resta hoje dela o mínimo vestígio. Esta questão tem intrigado os historiadores e motivado discussões apaixonadas. Qual o destino das suas fabulosas colecções de livros? Não restam hoje dúvidas de que foram destruídas. Mas como e quando?

A Grande Biblioteca terá sido destruída, pelo menos parcialmente, em 48 A.C., quando Júlio César chegado a Alexandria no encalço de Pompeu, entretanto assassinado, se deparou com uma nova guerra civil egípcia, entre Cleópatra VII e seu irmão Ptolemeu XIII. Tendo tomado o partido daquela contra o irmão e sendo cercado pelos navios deste, mandou incendiar a frota egípcia posicionada no porto, para ganhar tempo enquanto aguardava reforços. O fogo propagou-se à cidade, que terá ardido em grande parte, incluindo a Biblioteca, que estava situada próximo do mar. O próprio César se refere ao incêndio dos navios, silenciando contudo o que pudesse ter ocorrido na cidade. É Séneca, obrigado por Nero a suicidar-se em 65, que refere ter o fogo queimado na altura 40.000 livros. No fim do século I, Plutarco comenta que o fogo ateado por César destruiu a Grande Biblioteca e no século II Aulo Gélio escreve que aquando do saque da cidade mais de 700.000 livros foram acidentalmente queimados. Igual referência é feita por Amiano Marcelino no século IV, a propósito da guerra de César. Por outro lado, Estrabão, que permaneceu em Alexandria de 24 a 20 A.C., isto é, vinte anos depois da morte de César, e a quem se deve a mais detalhada descrição da cidade antiga que possuímos (refere-se pormenorizadamente ao Museu), não diz uma palavra sobre a Biblioteca. Donde se poderá concluir que nessa data ela já não existia. Sustentam, contudo, alguns críticos contemporâneos que o facto de Estrabão não mencionar a Biblioteca na sua descrição se deve ao facto dele a ter considerado parte integrante do Museu.

Sorte distinta teve o Museu. Embora ocupando presumivelmente as duas instituições edifícios distintos, ainda que próximos, teria sido a Biblioteca a mais fustigada pelo o incêndio. O Museu conseguiu sobreviver-lhe e continuou a beneficiar da protecção dos imperadores durante os primeiros séculos da dominação romana. O Museu possuía uma biblioteca na sua sala principal, que foi poupada, tal como a biblioteca do Caesareum e a biblioteca do Serapeum, (a Biblioteca Filha). Esta Biblioteca Filha tornou-se, depois do incêndio, a principal biblioteca da cidade. Ainda segundo Plutarco, e para compensar Cleópatra da perda da Biblioteca Real, Marco António ter-lhe-á oferecido 200.000 livros provenientes da biblioteca de Pérgamo. A partir do século III as crises do Império reflectiram-se negativamente em Alexandria. Em 215, e como represália contra uma rebelião, Caracala destruiu parcialmente o Museu e expulsou os seus membros estrangeiros. Em 272, Aureliano atacou Alexandria para expulsar Zenóbia, rainha de Palmira, que se havia apossado da cidade em 266. Os membros do Museu procuraram então refúgio no Serapeum. No final do século, uma outra rebelião, em 297/298, foi dominada pessoalmente por Diocleciano, que mandou massacrar numerosos cidadãos, incluindo alguns sábios, cujos livros foram queimados, nomeadamente os que tratavam de alquimia. Mesmo assim, e apesar de todos estes incidentes, Alexandria permaneceu um centro cultural de relevo, dotado de uma vida intelectual intensa. Sendo formalmente o Museu o templo das Musas, ele foi considerado sagrado tanto quanto o foram os outros santuários pagãos durante a vigência do Império Romano até ao reinado de Constantino. As últimas referências à sua actividade devem-se a Sinésio de Cirene, no século IV e o último sábio membro cujo nome chegou ao nosso conhecimento, foi o matemático Théon, (c. 380), pai da filósofa Hipácia. Mas o Museu não deve ter sobrevivido ao decreto de Teodósio (391), que mandou destruir todos os templos pagãos da cidade.

O Serapeum, juntamente com a Biblioteca Filha, foi destruído em 391 por uma multidão furiosa de cristãos fanáticos, conduzidos pelo patriarca Teófilo e movidos pelo zelo ardente de apagar os últimos vestígios de paganismo na cidade. Nessa altura, já o cristianismo triunfava em todo o império romano. A filósofa Hipácia, a última "bibliotecária" de Alexandria, foi arrastada pela turba e assassinada. No lugar do Serapeum, os cristãos construíram uma igreja.

O confronto final entre os representantes da civilização helenística e os cristãos emergentes teve lugar no fim do século IV, e terminou com a vitória dos segundos. Alexandria retomou a sua vida normal, mas agora como centro intelectual do cristianismo e da sua Escola Catequética, fundada pelo evangelista São Marcos e que contava entre os seus primeiros membros mais ilustres o filósofo Orígenes e Clemente de Alexandria, considerado o primeiro sábio cristão. Durante cerca de oito séculos não existe a mais pequena referência quanto à existência ou destino do Museu, do Serapeum e das suas bibliotecas.

O historiador italiano Luciano Canfora sustenta que ficando a Grande Biblioteca e o Museu no Distrito Real, e por isso devidamente protegidos, o incêndio do porto mandado atear por Júlio César não pode ter sido a causa da destruição da Biblioteca. Aliás, estando esta anexa ao Museu, se é que não fazia parte do mesmo, a exemplo das "bibliotecas" dos templos faraónicos, seria impossível que o fogo não tivesse devastado igualmente o Museu, o que sabemos não aconteceu. Os livros queimados na ocasião, e a que Séneca se refere, citando Tito-Lívio, teriam sido 40.000, que se encontravam na zona do porto. Segundo Dion Cassius, o incêndio devastou "entre outros, o arsenal e os depósitos de trigo e de livros", o que leva a supor que se tratava de livros que, por qualquer razão, estavam armazenados naquela zona. Segundo Canfora, o verdadeiro fim da Grande Biblioteca terá ocorrido durante o conflito entre a rainha Zenóbia de Palmira, que se apoderara de Alexandria e o imperador Aureliano, que procurava retomar a cidade, o que aconteceu em 272. Na verdade, Amiano refere que nessa ocasião Alexandria "perdeu o bairro a que chamavam Bruquion, morada habitual dos grandes espíritos". Ora Bruquion era o Distrito Real.

É só no século XIII que dois grandes escritores árabes narram um acontecimento que daria lugar à célebre lenda que persiste até aos nossos dias. São eles Abdullatif de Baghdad, um médico que visitou o Egipto por volta de 1200 e Ibn Al-Qifti, autor da História dos sábios. Ambos referem que os livros existentes na Grande Biblioteca de Alexandria teriam sido mandados queimar pelo general Amr Ibn Al-As, por ordem do califa Omar, aquando da conquista da cidade pelos árabes em 642. O texto de Abdullatif encontra-se eivado de erros e não merece, por isso, particular confiança. Outro tanto não acontece com a descrição de Ibn Al-Qifti, cuja verosimilhança de pormenores levou a considerá-la como autêntica até aos nossos dias, apesar das objecções desde então levantadas por muitos historiadores.

Conta Al-Qifti que Amr Ibn Al-As, confrontado com a existência da valiosíssima Biblioteca, escreveu ao califa Omar pedindo-lhe instruções quanto ao destino a dar a tantos livros reputadamente célebres. A resposta de Omar surgiu de forma dilemática: "A propósito dos livros que mencionas, se o que neles se encontra está de acordo com o Livro de Deus (o Corão), eles não são necessários; se não está de acordo, eles são inúteis. Portanto, deves destruí-los."

Conforme a vontade do califa, Amr mandou distribuir os livros pelos banhos da cidade para servirem de combustível de aquecimento. Levaram seis meses até serem todos queimados.

A narração de Al-Qifti, repetida por vários historiadores árabes, só foi conhecida na Europa no século XVII. Um dos principais críticos foi o historiador britânico A.J. Butler, ainda que os seus argumentos não sejam totalmente pacíficos. Por exemplo, quando refere que os livros a partir do século IV eram escritos habitualmente em pergaminho, e que este não arde, tal afirmação não é conclusiva, pois sabemos que não só o papiro foi o principal suporte da escrita até ao século VIII como o pergaminho é susceptível de ser queimado a uma temperatura à volta dos 400º, a qual não se pode qualificar de extraordinariamente elevada. Assim, a controvérsia mantém-se até hoje. Mas se admitirmos que a versão de Al-Qifti não é verdadeira, o que teria levado um árabe ilustre do século XIII a registar uma afirmação que contribuiria para denegrir a imagem atribuída ao povo árabe de protector da cultura?

São muitas as teses em confronto, e é impossível dar conta, aqui, das razões aduzidas ao longo dos séculos. Parece, todavia, admissível que, a ser este um episódio fantástico, Ibn Al-Qifti tenha pretendido justificar alguns actos do seu novo soberano Saladino. De facto, ao conquistar o Egipto e ao instalar um novo culto sunita em substituição do culto xiita dos Fatímidas, Saladino encontrou-se sem dinheiro para prosseguir as suas campanhas contra os cruzados. Assim, vendeu em leilão a célebre biblioteca fatímida do Cairo, que possuía ainda mais de 120.000 volumes, parte dos dois milhões que contivera na época áurea daquele califado, e de que uma importante parcela fora já vendida por Al-Mustansir para pagar as suas dívidas. Saladino desfizera-se também da biblioteca da cidade síria de Amed (no curso superior do Eufrates), avaliada em mais de um  milhão de volumes, também para pagamento de serviços prestados. Portanto, a narração da História dos sábios, de Al-Qifti, poderia servir para justificar os actos de Saladino a uma opinião pública descontente, tentando demonstrar que era preferível vender livros em situações de urgência de que mandar queimá-los para aquecer banhos públicos.

Independentemente da autenticidade da história dos livros queimados, é um facto que o declínio cultural de Alexandria começa com a conquista árabe, ainda que a cultura grega sobreviva alguns séculos. Os novos centros do poder passam a ser primeiro Damasco e depois Baghdad. Os califas omíadas mandaram proceder à tradução para árabe de numerosas obras científicas gregas e dotaram-se de um corpo de intérpretes gregos, sírios e coptas. O califa Abdel Malik Ibn Marwan criaria mesmo um serviço especial de traduções a fim de arabizar a administração do país. Mas a grande revolução cultural é empreendida pelos califas abássidas. Harun Al-Rachid, no século IX, cria em Baghdad  a Bayt Al-Hikma (Casa da Sabedoria), que de simples biblioteca se torna, com seu filho Al-Ma'amun, um verdadeiro centro de estudos. Os abássidas, como outrora os Ptolemeus, procuram por toda a parte livros para enriquecer as suas bibliotecas. São feitas traduções do grego, do persa, do sânscrito, do siríaco, do arménio ou até do etíope. A partir do século XII, o interesse dos árabes pelas traduções da época clássica é substituído pelo gosto das compilações e dos estudos do passado. Entre o século XV e o século XIX, os árabes deixam progressivamente de se interessar pelo estudo e conservação das obras clássicas. E só com o advento do século XX se regista um movimento de renovação do pensamento em relação à cultura helenística.

Todavia, Alexandria, mesmo nos seus dias mais difíceis, permaneceu no imaginário colectivo como o lugar por excelência onde se acumulara o saber universal e donde ele irradiara para o resto do mundo. No momento em que a nova Bibliotheca Alexandrina, sucessora da Grande Biblioteca Ptolemaica, ensaia os primeiros passos, em torno do busto de Alexandre Magno e à sombra tutelar da estátua de Ptolemeu II, possa ela ser, já não o farol que ilumina urbi et orbi, mas pelo menos a grande janela do Egipto sobre o mundo e deste sobre o Egipto.


NOTA: Este artigo era acompanhado de muitas imagens e mapas que agora não posso reproduzir.



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