terça-feira, 4 de julho de 2017

OS IRMÃOS KARAMAZOV (VERSÃO INTEGRAL)







Tendo sido estreado ontem, no Teatro Experimental de Cascais, o espectáculo "Os Irmãos Karamazov", peça de Jacques Copeau e Jean Croué, a partir do romance homónimo de Dostoyevsky, e sendo eu o tradutor da peça, esclareço que, ao contrário das minhas anteriores colaborações com Carlos Avilez, não tive conhecimento dos cortes realizados no meu texto. Também não sou responsável por eventuais alterações ao mesmo ou acrescentes à peça efectuados a partir de uma versão portuguesa do romance.


Publico, a seguir, a versão integral da peça.




* * * * *





Fyodor Mikhailovitch Dostoyevsky








OS IRMÃOS KARAMAZOV

Adaptação de Jacques Copeau e Jean Croué






Tradução
de
Júlio de Magalhães



Março de 2017







O tradutor escreve segundo a verdadeira ortografia portuguesa a que, agora, se convencionou chamar a "antiga ortografia".



* * * * *



PERSONAGENS


Aleksey Fyodorovitch Karamazov (Alyocha)
Padre Zocima
Dmitry Fyodorovitch Karamazov
Smerdiakov
Ivan Fyodorovitch Karamazov
Fyodor Pavlovitch Karamazov
Padre Paisius
Padre Iosif
Katerina Ivanovna Verkhovtseva
Criada
Agrafena Aleksandrovna Svetlova (Gruchenka)
Grigory Vassiliev
Mussialovitch
Vrublesky
Trifon
Cocheiro Andrey
Aldeões de Mokroye
Boris Vassilievitch
Anton Ilitch
Balalaikista
Acordeonista
Arina
Stepanida
Chefe da polícia
Primeiro soldado
Segundo soldado


 



PRIMEIRO ACTO



Eremitério de um mosteiro nos arredores de Moscovo. A cena representa um parlatório contíguo à cela do Starets Zocima. Ao fundo há uma galeria aberta que permite ver os jardins floridos do mosteiro, para os quais se desce por uma escada de madeira. À esquerda, a entrada de uma capela. À direita, uma porta que conduz à cela do padre Zocima. Fim do mês de Agosto; manhã quente e clara.


CENA I
Padre Zocima, Alyocha

Ao subir o pano, o palco está vazio. Mas o padre Zocima surge no jardim. É um velho, de pequena estatura, magro e ligeiramente curvado. Caminha muito lentamente, com dificuldade e apoiado no ombro de Alyocha. Sobem ambos a escada. Chegado ao último degrau, o padre Zocima pára para retomar fôlego. Ouvem-se ao longe vozes que entoam um cântico.

ALYOCHA (escutando os cânticos) - Todos os que vêm até vós, cheios de problemas, regressam apaziguados, satisfeitos.
ZOCIMA - Se é permitido a um homem, a um pecador, alegrar assim o coração dos seus irmãos, o que não haveremos de esperar do próprio Deus!
ALYOCHA - Padre! Como podeis fazer essas coisas maravilhosas?
ZOCIMA - Tudo vem de Deus, meu filho. (Dá alguns passos em direcção à sua cela e volta a parar) Alyocha, meu rapaz, não peso muito sobre o teu ombro? Estás a ver, de dia para dia as forças abandonam-me. Morrerei em breve. (Alyocha encosta silenciosamente a cabeça ao peito do velho) Está bem... não chores. A morte deve alegrar-nos!
ALYOCHA - Deixar-me-ias sozinho no mundo?
ZOCIMA - A vida começará para ti. É tempo...
ALYOCHA - Julgava que hoje estivésseis melhor. Tendes o rosto sorridente.
ZOCIMA (voltando a caminhar) - Aquela  mulher, que fez seis verstas a pé com o filho nos braços para me trazer a sua oferta, fez isso por prazer! O homem foi criado para a felicidade, Alyocha. Sê alegre, alegre como as crianças, como as aves do céu. Basta amar sempre, amar toda a gente...
Chegaram ao limiar da cela. Alyocha levanta os olhos que mantivera baixos.
ALYOCHA - Junto a vós, tudo me era fácil. Sem vós, é a angústia e as trevas!
ZOCIMA (sorrindo) - Pois bem, então irás para as trevas, depois da minha morte...
Alyocha inclina-se e beija a mão do Starets que o abençoa e entra depois na cela.
CENA II
Alyocha, Dmitry

Alyocha, sozinho, permanece um instante de pé à porta da cela. Depois, dirige-se em passos lentos para a escada, desce alguns degraus, mas volta a subi-los precipitadamente ao aperceber-se de Dmitry.
DMITRY - Alyocha! Assustei-te?
ALYOCHA (tornando a descer um degrau e estendendo-lhe a mão) - Dmitry...
DMITRY (agarrando-lhe os ombros) - Meu pequeno!
Os cânticos dos peregrinos voltam a ouvir-se, mais longe.
ALYOCHA (com exaltação crescente) - Escuta... São os peregrinos que regressam. Vieram de toda a Rússia. Esta manhã tivemos dois milagres! Primeiro, uma possessa... Vi o padre Zocima pôr-lhe a estola sobre a cabeça. Ficou imediatamente sossegada. Ah! irmão, é o mais notável dos homens sobre a terra, e eu habito a sua casa e assisto à sua glória...
DMITRY - Há tantos humilhados, Lyocha, entre os homens. Sim, na humilhação, o homem sofre muito nesta terra. E eu apenas penso nisso!
ALYOCHA - Eu gosto dos homens.
DMITRY - Mas foges deles!
ALYOCHA - Acredito neles. Fujo das tentações e da degradação.
DMITRY - Sim, a degradação da tua família.
ALYOCHA - Não troces, Mitya. Podia assustar-me de mim mesmo.
DMITRY (com dureza) - Tu estás ocupado com a tua própria salvação, pequeno monge!
ALYOCHA - Está escrito: «Partilha tudo e segue-me se desejas a perfeição.» Eu quero viver para a imortalidade.
DMITRY - É justo! Precisávamos de um santo para resgatar os Karamazov.
ALYOCHA (baixando os olhos) - Sou, como tu, um Karamazov.
DMITRY- E ainda és virgem, aos vinte anos! (Alyocha afasta-se) Lyocha, meu pombo, não te afastes. Deixa-me apertar-te nos meus braços, porque, no mundo inteiro, não gosto verdadeiramente senão de ti! (Abraça Alyocha, depois ergue a cabeça e encara-o) Gosto de ti porque és perfeitamente puro e dizes sempre a verdade... Aleksey, homem de Deus, tu a quem todos amamos, não sabes que temos todos necessidade de ti?
ALYOCHA - Ivan não necessita de ninguém. Ele procura alguma coisa... A minha juventude e a minha ignorância fazem-no sorrir. E de ti, irmão, eu dizia para mim: «Está salvo!» Quando soube do teu noivado com Katerina Ivanovna...
DMITRY - Sim, ao deixar o exército pensava voltar a casa com a minha noiva, para rodear de cuidados a velhice do meu pai... mas só encontrei um velho debochado, um histrião ignóbil!
ALYOCHA - Mitya... é o pai!
DMITRY - Um pai sem entranhas e sem pudor, que fez morrer a minha mãe, e depois a tua, de vergonha e de desgosto; um Esopo, um palhaço, um mulherengo...
ALYOCHA - Devemos lamentá-lo, e perdoar.
DMITRY - Não podemos perdoar a semelhante criatura. O próprio Ivan me disse: «Não tens de perdoar.»
ALYOCHA - Não oiças Ivan.
DMITRY - Porquê?
ALYOCHA - Ivan é um enigma.
DMITRY - Um enigma, sim...
ALYOCHA - O espírito sempre ocupado com pensamentos difíceis, sabemos lá com que pensamentos...
DMITRY - Ele devia arranjar as coisas entre o pai e eu. Mas agora incita-me a odiá-lo, o que não impede que ambos se entendam muito bem.
ALYOCHA - Isso é estranho.
DMITRY - Tudo é obscuro, assustador, incompreensível, Lyocha, tu vais esclarecer-me; quero confessar-me a ti. Olha: não estás espantado com a minha cara?
ALYOCHA - Vejo nela terror... e alegria.
DMITRY - Queria começar a minha confissão pelo hino de Schiller: À alegria! E contudo nunca estive mais baixo. Mas, que eu seja ignóbil e maldito, sou ainda teu filho, Senhor! Eu amo-te e a alegria está em mim!
ALYOCHA - Glória ao Eterno no Céu...
DMITRY - Glória ao Eterno em mim!
Vem... Senta-te aqui, para que eu te veja! Não digas nada. Sou eu que vou falar. Mas muito baixo, é preciso que eu fale muito baixo... que ninguém me possa ouvir. Ah! Lyocha, porque será que desde esta manhã e nos últimos dias eu desejava ver-te? É que tenho necessidade de ti. É preciso que uma alma sublime me perdoe... Apenas a ti eu quero dizer tudo, e tu ouvir-me-ás sem rir. Amanhã, uma vida nova vai começar para mim...
ALYOCHA - Sim, irmão, Katerina Ivanovna...
DMITRY - Conheces esses sonhos em que nos sentimos cair num precipício? Neste momento é assim que eu caio sem sonhar. Oh! Não tenho medo... Quer dizer, sim, tenho medo. Mas esse medo é suave... Ou melhor, não, não é suave, é embriaguez. É isso a Beleza, o Ideal? Que enigmas! Tenho reflectido muito nisso, sabes: para um Karamazov, há beleza mesmo na vergonha. Deus, só a ideia de Deus me faz sofrer... E depois, que importa! Vê o belo sol, o céu puro, as árvores verdes. Estamos em pleno Verão. O tempo é calmo... O que é que eu queria dizer? Já não sei.
ALYOCHA - A tua noiva...
DMITRY (suavemente, com angústia) - Ah sim, Katerina... Ela atormenta-me, Alyocha. Quero acabar com ela.
ALYOCHA - Queres abandonar Katerina Ivanovna?
DMITRY - Não a lamentes! Ela faz o que ela quer. Outro casará com ela, alguém melhor do que eu.
ALYOCHA - Outro?
DMITRY  Ivan, talvez.
ALYOCHA - Estás louco!
DMITRY - Creio que ele gosta dela... Tanto melhor. Que ele me liberte!
ALYOCHA - Oh! Irmão...
DMITRY - Bom! Ainda não sabes nada e já estás a desprezar-me! Julgas que me separei dela sem sofrimento?... Eu quis, também eu, elevar-me. Toda a minha vida sofri dessa sede de nobreza. Eu tinha, como tu, meu inocente, um coração ávido de beleza! Se visses o meu coração...
ALYOCHA - Dmitry, sei que me dirás toda a verdade.
DMITRY - Quere-la toda? Muito bem! Não vou poupar-me... Sabes que eu era tenente num batalhão de linha. Acolheram-me extraordinariamente bem na pequena cidade da minha guarnição. Semeei dinheiro por toda a parte. Julgavam-me rico; aliás, julgava sê-lo... Quando entrei no batalhão, só se falava na cidade da próxima chegada da segunda filha do coronel. Ela tinha acabado os seus estudos num pensionato aristocrático da capital... Sim: Katerina Ivanovna. Passava por ser uma beleza perfeita... Uma noite, em casa do comandante da bateria, como me aproximasse dela, olhou-me desdenhosamente. Oh... não pude suportar o desprezo do seu rosto!
ALYOCHA - Já gostavas dela?
DMITRY - Juro-te que a sentia de tal forma acima de mim! Compreendi que Katerina não era uma rapariga qualquer; tinha carácter, orgulho, uma sólida virtude, especialmente muita inteligência e instrução... Por causa disso, talvez, queria puni-la por não ter compreendido o homem que eu sou.
ALYOCHA - Portanto, odiava-la?
DMITRY - Não sabia como tocar, inquietar essa mulher demasiado pura e demasiado altiva. Pressenti imediatamente o mal que lhe ia fazer; e não podia impedir-me de fazê-lo... Ora, nessa altura, recebera do pai seis mil rublos. E, quase ao mesmo tempo, soube, por indiscrição de um amigo, que o nosso coronel, o pai de Katerina Ivanovna, era suspeito de peculato... Arranjei forma de encontrar a irmã de Katerina Ivanovna, para lhe dizer no meio da conversa: «Se, por acaso, pedirem contas ao seu pai e ele não as puder prestar, em vez de o fazer passar perante o conselho de guerra e para lhe poupar a degradação, basta mandar-me a sua irmã: tenho dinheiro, dar-lhe-ei a quantia e ninguém saberá...» Tratava-se de quatro mil e quinhentos rublos... A rapariga insultou-me, mas transmitiu a minha proposta a Katerina. Era tudo o que eu queria... Vindo de cima, chegou um novo major para assumir o comando do destacamento. Eu, eu esperava... (Silêncio) Lyocha, dois dias depois, em minha casa, ao cair da noite. Ia sair quando, de repente, a porta se abriu e, à minha frente, no meu quarto, apareceu Katerina Ivanovna... Ninguém se cruzara com ela. Isto podia continuar secreto entre nós. Entrou; o seu olhar brilhava de determinação, mas vi que os seus lábios tremiam... «A minha irmã disse-me que daríeis quatro mil e quinhentos rublos se eu mesma os viesse buscar... Eis-me aqui; dai-mos.» Não pôde dizer mais; a sua voz extinguiu-se bruscamente... Alyocha, estás a ouvir? dir-se-ia que adormeceste.
ALYOCHA - Escuto.
DMITRY -O meu primeiro pensamento foi o de um Karamazov. Eu observava Katerina... Ela é bela, mas nesse momento havia nela alguma coisa que ultrapassava a sua beleza... Vinha sacrificar-se pelo seu pai... e a mim! Era corpo e alma entre as minhas mãos. Compreendes? Desafiava-me!... Quase não pude dominar-me. A maldade fervia em mim. Quanto mais me sentia indigno dela, mais tinha o desejo de realizar a acção mais vil de que fosse capaz. Durante alguns minutos examinei-a com um ódio assustador!
ALYOCHA - Acaba, acaba...
DMITRY - Aproximei-me da janela, encostei a cabeça ao vidro gelado. Parecia que o frio me queimava... Depois, voltei-me, tirei da gaveta cinco mil rublos, mostrei-lhos em silêncio, dobrei-os, entreguei-lhos, ... eu mesmo abri a porta e saudei-a em voz baixa... Ela estremeceu, olhou-me fixamente, empalideceu, empalideceu... e de repente, sem dizer uma palavra, num ímpeto, prostrou-se à minha frente, com a cabeça no chão.
ALYOCHA (não contendo já a sua emoção) - Irmão, irmão...
DMITRY - Depois levantou-se rapidamente e fugiu... E eu, quando ela desapareceu, tirei o sabre da bainha para me matar, sem mesmo saber porquê... por entusiasmo! Compreendes, diz-me, que alguém se possa matar por entusiasmo?
ALYOCHA - Irmão, nesse instante elevaste-te mais alto do que ela, e venceste-a!
DMITRY - Não está mal, noviço! Disseste a palavra: sim, naquele momento, eu, um oficial ordinário, tinha vencido a donsela! E é isso, estás a ver, que ela nunca me perdoará, porque é orgulhosa. Depois, o seu pai morreu e ela pagou-me a dívida. Mas não era o suficiente. Ela decidiu, por reconhecimento, sacrificar-me a sua vida. O que ela chama reconhecimento, é uma necessidade de dominar, é uma sede de infinito de que ela está sedenta. Ela parece-se comigo, Alyocha; nada poderá detê-la!
ALYOCHA - Quando ela te deixou, nesse dia, amava-la?
DMITRY - Amei principalmente a minha bela acção. E ela, ela ficou humilhada.
ALYOCHA - Contudo ficaram noivos?
DMITRY - Três anos mais tarde, perante as santas imagens... Ah! Que eu não possa apagar esse dia da minha vida. O dia, Alyocha, o dia em que ela disse que me amava, em que ela o escreveu... Guardei a sua carta; nunca a deixarei; quero ser enterrado com ela. Vais lê-la. Sou indigno, com a minha voz impura, de repetir as suas palavras. Deixaram-me uma ferida incurável!
Inclina a cabeça e chora.
ALYOCHA (com ternura) - Mitya, és infeliz mas não deves desesperar.
DMITRY - Porque voltei a meter o sabre na bainha? Devia ter-me matado nesse dia, pois iria cair de novo...Tentei explicar-lhe isso numa carta, na altura do nosso noivado... Isso, e muitas outras coisas... Mas ela não quis compreender. Foi então que lhe enviei Ivan. Acreditei que, melhor do que eu, ele saberia persuadi-la que era uma loucura envolvermo-nos um com o outro...
ALYOCHA - Mas disseste-me...
DMITRY - Sim. Ivan está apaixonado por ela. Ela também gosta dele, estou certo, ainda que não diga nada. Sucumbiu ao seu encanto. Como não gostariam um do outro? Ela é tão pura, ele é tão inteligente. É preciso que assim seja!
ALYOCHA - Mas tu, que vais fazer?
DMITRY (com cólera) - Regressarei à minha indignidade!
Silêncio
ALYOCHA - Meu pobre irmão...
DMITRY - Cala-te. Não me lamentes!
ALYOCHA (com autoridade) - Tu amas Katerina... Ao renunciares a ela, ao sacrificares-te, estou certo que te castigas por uma falta que talvez não seja irreparável. Deixa de te defenderes perante mim. Ainda não me disseste tudo.
DMITRY - Quero afastar-me dela; é tudo.
ALYOCHA - Ainda agora choravas.
DMITRY - Tolices. Sou forte, porque tomei uma decisão.
ALYOCHA (com angústia) - Mitya?...
DMITRY - Oh! Não receies nada, meu pequeno; não vou matar-me. Agora, não tenho forças para isso. Mais tarde, talvez. Mas não antes de ter... Basta! Não direi mais nada. Vou partir. Que horas são?
ALYOCHA - Onze horas, creio.
DMITRY - Adeus... Não rezes por mim. É inútil. (Dmitry dá alguns passos para sair, mas pára, volta para trás, segura as mãos do irmão entre as suas e olha-o em silêncio) Ainda poderás gostar de mim, Aleksey? ... Tenho paixões ferozes; sou violento, sensual, gosto do deboche e da sua crueldade. Mas o que quer que tenha feito ou possa ainda fazer, nada iguala a infâmia que trago agora no meu peito... Diz-me, acreditavas que Dmitry Karamazov pudesse ser um ladrão, um miserável ladrão?... Anteontem, Katerina Ivanovna pediu-me misteriosamente, não sei porquê, de enviar à sua irmã Agafia, em Moscovo, três mil rublos que me entregou... Eu estava sem um kopeck. Katerina sabia-o. Contudo, confiou-me esse maldito dinheiro. Sorria quando mo entregou. Porque sorria ela?... Fiquei com ele! Fui até à estação dos correios. Mas não entrei...
ALYOCHA (sem fôlego) - O que aconteceu ao dinheiro?... Dmitry! O que aconteceu ao dinheiro?
DMITRY (a meia-voz, batendo no peito) - Está aqui. Trago-o comigo, cosido numa saqueta, sobre o peito. Não lhe toquei. Ainda não. É isso que me atormenta, Lyocha; ainda não sou um ladrão, porque ainda não gastei o dinheiro. Mas não poderei impedir-me de o fazer. Não poderei, a não ser por um milagre!
ALYOCHA (com violência) - Dá-me esse dinheiro!
DMITRY - O meu pai lesou-me em mais de seis mil rublos relativos à herança da minha mãe. Que ele me dê três mil e estamos quites. É preciso que ele mos dê! Senão, estou perdido. Não tenho outra saída. Farei o que for preciso!... Dmitry Karamazov concebeu este cálculo: três mil rublos, custe o que custar. Se o velho mos der, muito bem! Continuo um homem honesto. Se os recusar, fico com o dinheiro de Katerina e serei um ladrão. Eis-me suspenso sobre o abismo... Precipitar-me-ei na noite da vergonha ou ascenderei à alegria e à luz? É interessante, hein? Bah! Já estou amaldiçoado, porque tive este pensamento...
ALYOCHA - Porque tiveste esse pensamento? Porque ficaste com os três mil rublos?
DMITRY - Porquê! Porquê!... Era preciso. Não sou eu um miserável parasita, o digno filho do meu pai? Na nossa família, a sensualidade vai até à loucura... Adeus. Saberás tudo mais tarde. O abismo, a noite, inútil explicar-te... A lama e o inferno! Não me perguntes mais, adeus! Nada mais à minha frente. Sai do meu caminho... (Dirige-se para o jardim mas vê Smerdiakov ao fundo da escada) Eh! O lacaio... Smerdiakov! O que é?
Precipita-se ao seu encontro.


CENA III
Dmitry, Alyocha, Smerdiakov

SMERDIAKOV (curvado) - Senhor, saúdo-vos.
DMITRY - Que aconteceu? Porque deixaste o teu lugar?
SMERDIAKOV - Senhor, perdoai-me. Sabia que vos encontrava aqui.
DMITRY - Chega de cerimónias! As notícias?
SMERDIAKOV - Posso falar-vos um instante em particular?
DMITRY - Fala diante do meu irmão.
SMERDIAKOV - Não sei se deva. São notícias confidenciais.
DMITRY - Fica, Alyocha.
SMERDIAKOV - Notícias de grande importância.
DMITRY - Fala, lacaio mal-cheiroso!
SMERDIAKOV - Oh! O senhor não se zangue...
DMITRY (agarrando-o pelos ombros) - Quebro-te os ossos!
SMERDIAKOV - Ai! Ai! Não me façais mal; não me meteis medo. É que...
DMITRY - Fazes de propósito para me irritar.
SMERDIAKOV - Muito bem, senhor, eu creio, infelizmente tenho fortes razões para acreditar, que o senhor vosso pai está prestes a levar a melhor... (Gesto violento de Dmitry) Esperai ao menos até ao fim do meu relato, Dmitry Fyodorovitch, e não me lanceis esses olhares assustadores... Digo que um perigo vos ameaça. Gruchenka que, ainda ontem, parecia ter as melhores disposições a vosso respeito, voltou-se bruscamente a favor de Fyodor Pavlovitch.
DMITRY - Foi ela que te disse?
SMERDIAKOV - Esta manhã, o meu patrão recebeu uma carta de Gruchenka... Era preciso ver o sangue subir à cabeça do senhor vosso pai enquanto lia a carta.
DMITRY (cuspindo) - Que nojo!
SMERDIAKOV - Não sei porque meios ele conseguiu vencer a sua resistência e ultrapassar as suas hesitações, mas é certo que, sem lhe dar uma garantia formal, Gruchenka, por essa carta, permite ao vosso pai esperar que ela vá esta noite a sua casa.
DMITRY - A que horas?
SMERDIAKOV - Meia-noite.
DMITRY - Leste a carta?
SMERDIAKOV - Li.
DMITRY - Foste tu que me traíste, verme!
SMERDIAKOV - E viria a seguir avisar-vos?
DMITRY - O que faz o velho?
SMERDIAKOV - Fyodor Pavlovitch dispõe-se a receber a menina. Ouvi-o suplicar ao vosso irmão Ivan que partisse esta noite para a sua propriedade de Tchermachnia fim de lá efectuar uma venda de madeira. Na realidade, é para não ser incomodado pela sua presença... E mais: preparou agora mesmo um maço de trinta notas de cem rublos, atadas por uma fita vermelha e selada, na qual escreveu: «Ao meu anjo Gruchenka, se ela se dignar vir.»
DMITRY - Viste o dinheiro?
SMERDIAKOV - Três mil rublos. O senhor vosso pai mostrou-mos antes de os esconder debaixo do colchão.
DMITRY - O velho devasso seduz raparigas com o dinheiro que me pertence! (Voltando-se para Alyocha) Ah! Ah! Estás aqui, com os olhos esbugalhados! Compreendes, agora?... É Gruchenka que o meu pai tenta surripiar-me, é com ela que eu quero partir, é por causa dela que eu quero o dinheiro...No meu regresso do regimento, tinham-me contado que o meu pai, apaixonado por essa rapariga, queria fazê-la sua herdeira e que me recusava, por causa dela, o dinheiro que me deve. Corri a casa de Gruchenka... Ia lá para bater-lhe!
ALYOCHA - Tu gostas dela?
DMITRY - Julgas que obtive alguma coisa dela? Nada!... E o velho também não. Ainda não a possuiu. Ela é deslizante como uma cobra.
ALYOCHA - Contudo... Se Gruchenka vai a casa do pai esta noite?...
DMITRY - Entrarei à força e impedirei!
ALYOCHA - E, se?...
DMITRY - Se?... Eu... Eu não suportaria isso!
ALYOCHA - Mitya
DMITRY - Não sei... Não sei o que farei! Receio o seu rosto maldito. O seu duplo queixo, o seu nariz, o seu sorriso atrevido são tão repugnantes que não poderei conter-me!
SMERDIAKOV - Ah! Senhor, que dizeis?
DMITRY - Se a deixares entrar em casa de meu pai sem me prevenir, és o primeiro a morrer!
SMERDIAKOV (esquivando-se) - Não há perigo de momento. O senhor vosso pai e o vosso irmão Ivan chegaram ao convento atrás de mim.
DMITRY - Ao convento? Fazer o quê?
SMERDIAKOV - Fyodor Pavlovitch meteu-se-lhe na cabeça submeter ao reverendo padre Zocima a disputa que vos divide em relação à herança de vossa falecida mãe Adelaïda Miussov. Ele pretende que a situação e a personalidade do religioso são de natureza a permitir um acordo.
DMITRY - O que é essa nova palhaçada?
ALYOCHA - Irmão, tenho receio de um escândalo!
Smerdiakov sai.


CENA IV
Dmitry, Alyocha

DMITRY - Ele quer intimidar-me: seja! Vou falar-lhe em frente do religioso. Será preciso que ele ceda. Depois, correrei a casa de Gruchenka: vou raptá-la. Seremos felizes, longe de tudo. E tu, irmão, irás a casa de Katerina...
ALYOCHA - Vai lá tu mesmo e devolve-lhe o dinheiro.
DMITRY - E se Gruchenka me disser: «Leva-me, sou tua.»?
ALYOCHA - Precisas de confessar tudo a Katerina. É a tua salvação...
DMITRY - Para que ela me perdoe, não é? Para ficar sob o seu pé? Não quero os seus sacrifícios! Que Ivan case com ela! Estão bem um para o outro, e tudo entrará em ordem. Eu os abençoo... Mas Gruchenka! A minha Gruchenka tornar-se a presa desse velho bode!... Eu amo Gruchenka. É uma mulher verdadeira. Ela não se importa com os meus vícios. Lutaremos mas amar-nos-emos. É a única mulher que eu posso amar. Quero casar com Grucha. Não posso viver sem ela.
ALYOCHA - Perdes-te, Mitya! Mas Deus conhece o teu coração; e vê o teu desespero. Ele não permitirá que se cumpram coisa atrozes. Tu não trairás os teus compromissos sagrados...
No início da última réplica, Ivan, seguido por Smerdiakov, surge no cimo da escada.


CENA V
Dmitry, Alyocha, Ivan, Smerdiakov

IVAN (interrompendo Alyocha) - Bravo, noviço! Pregas bem.
ALYOCHA (ruborizando-se) - Fazes sempre troça, Vanya.
IVAN - Sem ressentimento, irmãozinho. Gosto de te arreliar. Diverte-me ver os teus olhos a brilhar... Bom dia, Mitya. Sempre arisco?
DMITRY - Bom dia, Ivan, querido irmão. Sê feliz.
ALYOCHA - Ivan, sabes tudo e não me disseste nada.
DMITRY - Ele é secreto como um túmulo!
ALYOCHA (a Ivan) - Estás a afastar-te de  nós?
IVAN - Deixo-vos conversar.
DMITRY - Escuta... Se dois seres conseguem elevar-se acima das coisas terrestres... se não dois, pelo menos um deles, o que vai desaparecer vem ter com o outro e diz-lhe: «Faz por mim isto ou aquilo...», coisas que só se pedem à hora da morte. O que fica poderá recusar obedecer, se for um amigo, um irmão?
IVAN - Que linguagem! Aonde queres chegar? Fala mais claramente.
DMITRY (lutando contra a emoção) - Agora mesmo, ao saíres daqui, vai ter com Katerina Ivanovna, saúda-a da minha parte e diz-lhe que não voltará a ver-me.
IVAN - Perdeste a razão?
DMITRY - Não sejas duro. Falo solenemente. Conheces Katerina. Sabes o que ela vale. Sabes o que eu sei. Ela estima-te pela tua inteligência, respeita-te pela pureza da tua vida. Tem confiança em ti, tu tens ascendente sobre ela... Fá-la compreender, de uma vez por todas, que ela não tem o direito de estragar toda a sua existência com o pretexto de um reconhecimento, que isso é absurdo!
IVAN - Leva-lhe tu a mensagem. Ou manda Alyocha como teu embaixador.
DMITRY - É a ti que eu designo, Ivan... Vais dizer-lhe: «Dmitry enviou-me»... Ela compreenderá.
IVAN (desviando-se) - Que comédia!
Ouve-se Fyodor falar e rir no jardim.
ALYOCHA - Chegou o pai.
DMITRY - Ouviste-lo rir? Vem, Alyocha.
ALYOCHA - Entremos na capela. Agora, Ivan.
Alyocha e Dmitry saem pela esquerda.


CENA VI
Ivan, Smerdiakov

Smerdiakov, durante toda a cena precedente, manteve-se afastado, mas ouvindo.
IVAN - Eh! Que estás aí a fazer?
SMERDIAKOV - Nada, senhor. Estou a pensar.
IVAN - A pensar em quê?
SMERDIAKOV - Mas... nisto tudo.
IVAN - E o que é que pensas?
SMERDIAKOV - Ah! O senhor vosso pai e o senhor vosso irmão preocupam-me. Ei-los, cara a cara nesta vereda. Conseguirão conter-se?
IVAN (entre os dentes) - Veremos.
SMERDIAKOV - É uma pena que alguém tão gentil como o vosso irmão Dmitry abandone assim a sua noiva... Sem contar que Katerina Ivanovna agora é rica. A sua tia de Moscovo deu-lhe um dote.
IVAN (olhando de soslaio) - Também sabes isso?
SMERDIAKOV - Sessenta mil rublos. Senhor, nada mau para um rapaz que não tem nada. É um bom partido, sabeis isso! (Baixando um pouco a voz) E a um sinal de Gruchenka o vosso irmão renunciaria a tudo...
IVAN - E isso diz-me respeito?
SMERDIAKOV - Ele corre para a sua ruína!
IVAN - E tu importas-te com isso, bom cristão?
SMERDIAKOV - Não ficaríeis também preocupado?
IVAN - Dmitry é meu irmão.
SMERDIAKOV - Acho que pertenço um pouco à família... Sabeis que na semana passada, estando embriagado, Dmitry Fyodorovitch proclamou-se indigno da sua noiva Katerina em plena taverna? (Em confidência) Ela já hesita...


CENA VII
Ivan, Smerdiakov, Fyodor, Padre Paisius, Padre Iosif
FYODOR (ao fundo, dirigindo-se aos dois monges) - Outro sinal da cruz, senhores, ao acaso! (Com grande afectação, faz grandes sinais da cruz em frente dos ícones, e depois volta-se) - Eh! Querido Ivan! Estes monges habitam num vale de rosas!
IVAN (a meia-voz) - Meu pai, previno-vos que se não vos comportardes de forma correcta, deixo-vos imediatamente!
FYODOR - O que é que eu disse de mal? Para um livre pensador, tens um ar lindamente atormentado pelos teus pecados. Tens medo que o santo leitor dos pensamentos veja nos teus olhos o que se passa na tua cabeça?
Ri. Ivan encolhe os ombros.
SMERDIAKOV (aproximando-se de Fyodor) - Senhor... O vosso filho Dmitry está aqui. Chut!... Não sei como ele ficou a saber desta reunião. Devemos temer um escândalo. Calma, senhor, peço-vos... dignidade!
FYODOR - Não me deixes.
SMERDIAKOV - Ficai tranquilo.
Os dois monges saem pela direita para anunciar os visitantes. Alyocha entra pela esquerda, vindo da capela.


CENA VIII
Ivan, Fyodor, Smerdiakov, Alyocha

Fyodor - Ah! ei-lo, ei-lo! (Corre a abraçar Alyocha) Meu querido filho, vem aos meus braços! Meu pombinho, quero dar-te a minha bênção paternal... Não: vou apenas persignar-te...! Meu Alyocha! És feliz aqui? Divertes-te? Aqui não há mulheres, suponho. Oh! Oh! Oh! Estou a escandalizar-te, pobre pombo? Pensas que queria aborrecer-te? Vai, vai, meu filho, continua no teu convento. Estarás melhor aqui do que com um velho bêbedo e um bando de mulheres; ainda que a ti nada te macule: tu és um anjo!... E como tal, não és estúpido, escolheste a melhor parte! Diz-me por isso se alguma vez encontraste aqui a verdade? A partida para o outro mundo ser-me-á mais fácil quando eu souber de certeza o que lá se passa. Ainda não encontrei ninguém que me informasse... Vamos, vais arder, vais extinguir-te, vais curar-te, e um dia voltarás para o velho desgraçado de que ninguém gosta... (Choramingando) E eu ficarei à espera, porque tu és a única pessoa no mundo que não me censurou, meu querido rapaz...
ALYOCHA - Meu pai...
FYODOR (engolindo as lágrimas) - Bom, acabou-se... Onde está ele, o teu reverendo padre? Viemos todos prostrar-nos diante dele... incluindo Smerdiakov! Reconheceste o nosso delicioso Smerdiakov? Continua a ter uma linda figura e uma distinção de eunuco, eh? E que elegância: botas envernizadas!... Sabias que está agora a estudar filosofia? Sim, o Ivan dá-lhe lições. Ele é discípulo de Ivan!(Mais baixo, apontando ao fundo, Ivan e Smerdiakov que conversam) Olha, fazem um lindo par. E este Ivan, os olhares que me lança! Alyocha, não deves gostar de Ivan...
ALYOCHA - Deixe de injuriar o meu irmão...
IVAN - Ivan não é dos nossos. Não tem a nossa alma.
ALYOCHA - Acabei de ver Dmitry.
FYODOR - O teu Dmitry! Vou esmagá-lo com o meu sapato como uma barata!... Sei que gostas dele. Mas isso não me preocupa. Se Ivan gostasse dele, então teria medo. Felizmente, Ivan não gosta de ninguém. Ivan não é um homem como nós...
Os dois monges reaparecem. à direita, no limiar da cela.
ALYOCHA (muito perturbado) - Meu pai, meu pai, o padre Zocima está a chegar... Queria pedir-vos... suplicar-vos... É preciso atender à sua idade avançada e à sua frágil saúde, à santidade do lugar, à gravidade das circunstâncias...
FYODOR - Mas com certeza! A santidade... Evidentemente que a terei em consideração... Achas que sou um vilão?
ALYOCHA - Não penso que sejais um vilão, mas não conseguis dominar-vos. (O padre Zocima aparece. Ivan e Smerdiakov aproximam-se. Alyocha a Ivan) Irmão, tenho confiança em ti.
Aproxima-se do padre Zocima.


CENA IX
Os mesmos, o padre Zocima, o padre Paisius, o padre Iosif

Os dois monges saúdam o padre Zocima que lhes retribui a saudação. Apoiado em Alyocha, o religioso avança. Ivan, Fyodor e Smerdiakov atrás deles, à distância, inclinam-se.
FYODOR (depois de um silêncio, inclinando-se de novo e  balbuciando) - Santo velho! Que emoção...
ZOCIMA - Sentais-vos, senhores.
FYODOR (saudando e murmurando) - Obrigado...Obrigado... Um grande pecador, certamente! Muito indigno...
ZOCIMA - Não vos preocupeis com isso.
FYODOR - Não, não, calo-me... reconhecido... (Num sobressalto) - Não sem ter, previamente, não obstante, esclarecido uma certa dúvida: é verdade, venerável padre, que o hábito de confessar os homens vos deu o poder extraordinário de adivinhar à primeira vista as torturas morais que os afligem?... Não, não é?...Exagerado? Muito exagerado!... Meu filho Ivan, mesmo agora, parecia levar a sério essa lenda e, por minha fé, amedrontar-se!... (Para Ivan que acaba de lhe dizer por cima do ombro qualquer coisa que não ouviu) O quê? Não? Não é verdade?... Bem. Bom. Assim seja! Não disse nada... (Com ardor) Ai de mim, mestre! Tendes perante vós um tagarela, um verdadeiro bobo: é assim que eu me apresento!
ZOCIMA - Não tenhais vergonha de vós: o perigo vem daí.
FYODOR - Justamente! Parece-me sempre, quando entro em qualquer parte, que sou mais esperto que todos os outros e que devem achar que sou um bobo. Então, faço como um bobo!... Precisamente! Mas, com este temperamento, tenho muito medo de nunca alcançar a vida eterna...
ZOCIMA - Chegareis lá, a pouco e pouco. É preciso largar as garrafas, ter tento na língua, ser casto e não...
FYODOR (ajoelhando-se e batendo no peito) - Eu sou a mentira e o pai da mentira, e o filho da mentira... Mas vós iluminastes-me!
ZOCIMA - Levantai-vos. Isso é ainda um gesto mentiroso.
FYODOR (apanhado de surpresa) - Perdoai-me, santo pai, peço desculpa da minha perturbação... É que, como vedes, duvidei um pouco nestes últimos tempos. O meu querido filho Ivan, desde que me deu a honra de habitar em minha casa, gosta de agitar certas questões à minha frente...
IVAN - Nunca agitei questões à vossa frente.
FYODOR - Seja! Direi então que não as agita mas que as coloca, questões como charadas, enigmas. E depois recusa-se e faz de filósofo, brinca com o meu pobre espírito...
ZOCIMA (a Ivan) - Lamento-vos, senhor.
IVAN (sorrindo, com delicadeza) - Porque me lamentais?
ZOCIMA - Porque ainda não resolveste o problema e ele precisa de ser resolvido.
IVAN (mesmo jogo) - Há uma solução?
ZOCIMA - Possa Deus ditá-la a tempo! Que ele vos ajude e abençoe os vossos nobres sofrimentos...
FYODOR - Enquanto esperamos... com todas essas ideias que circulam... Tenho de confessá-lo, a fé tranquila já não habita o meu lar (Indicando Alyocha) desde que este anjo o deixou! Pensa-se demais, à minha volta, e isso perturba-me... Sim, até o meu lacaio! Este jesuíta que não venha perguntar-me como é que a luz só foi criada ao quarto dia, quando as estrelas datam do primeiro?... Então, a minha fé, que não era muito sólida, periclita de hora a hora. Juro-o! Esta pergunta de lacaio foi a origem e a causa de todo a minha degradação moral... (Para Ivan que, fora de si, se dirige para a saída) Eh! Meu querido filho, que vais fazer? Não te vás embora! Terminei... Volto à questão que nos trouxe aqui... Ah... ei-la: santo padre, sede o juiz... Dmitry Fyodorovitch, o meu filho irreverente, a vergonha da minha velhice, reclama de mim três mil rublos. Acusa-se de ter escondido o dinheiro dos meus filhos nas minhas botas e de lhe recusar o que lhe é devido. Mas eu tenho como responder. Possuo todos os documentos que estabelecem o que possuía este jovem, o que ele despendeu e o que lhe resta... Toda a gente está contra mim, mas Dmitry não é menos meu devedor, e não de uma insignificância!
Dmitry, saindo da capela, está em cena desde há um instante. Dirige-se, calmamente, de chapéu na mão, em direcção do padre Zocima.

CENA X
Os mesmos, Dmitry

DMITRY (ao padre Zocima, respeitosamente) - Eu nunca percebi as contas que o meu pai me fornecia. Mas afirmo...
FYODOR - Quem acreditará na palavra deste patife? Em toda a cidade, só falam da sua devassidão. No regimento, gastava mil ou dois mil rublos para seduzir raparigas honestas!
DMITRY (contendo-se) - Está a proceder mal comigo, pai. Eu sei o que o leva a isso...
FYODOR - Não foi ele que enfeitiçou uma menina de boa família, a filha do seu antigo coronel? Desonrou-a. E agora...
DMITRY - Não vos deixarei caluniar na minha presença a mulher mais nobre do mundo... E não quero participar no escândalo que estais a provocar num lugar e perante pessoas tão veneráveis. Acho melhor retirar-me...
FYODOR - Ah! Mitya, Mitya, que farás se eu te amaldiçoar?
DMITRY (do limiar, elevando a voz) - Sou eu que vos amaldiçoo!
FYODOR - Ao teu pai! Ao teu pai!
DMITRY (dirigindo-se a Fyodor) - Todo o mal nos veio de vós. Infestastes a nossa alma e a nossa vida... Juro, senhores, que não diria uma só palavra contra ele. Mas, já que ele me insultou, vou revelar as suas infâmias, apesar dele ser meu pai!
FYODOR - Dmitry Fyodorovitch, se não fosses meu filho, desafiava-te para um duelo, a três passos, com um lenço!
ALYOCHA (a Ivan) - Irmão, impede-os...
DMITRY - Vosso filho! Alguma vez me tratastes como filho? Mal a minha mãe morreu - ainda não tinha dois anos - "esquecestes-vos" de mim na porteira, onde era devorado pelos piolhos. E depois... Ivan, Aleksey, se o ignoram, eu vi este homem levar prostitutas para sua casa, e organizar orgias sob os olhos de Sofia Ivanovna, a vossa mãe!
ALYOCHA (agarrado ao braço de Ivan) -Ivan... Ivan...
DMITRY - Olhem... (Avistando Smerdiakov, agarra-o por um braço e trá-lo horrorizado à boca de cena) - Esta galinha doente, esta rã epiléptica... Apresento-vos Smerdiakov, meu irmão, sim: o próprio filho de Fyodor Pavlovitch, de que ele fez o seu lacaio. Houve uma mal-cheirosa, uma mendiga idiota de quem ele abusou enquanto ela dormia, numa vala à beira do caminho!
OS MONGES (murmurando) - Basta, basta...É intolerável!
DMITRY - Pois que ele seja meu irmão. Eu não valho nada. Mas tu, Ivan, que tens grandes aspirações... tu Alyocha, que procuras Deus: Smerdiakov é vosso irmão: olhem para ele!
Larga Smerdiakov que, a tremer, volta para o fundo do palco.
FYODOR (de punho erguido para Dmitry) - Expulsem-no! Expulsem-no!
DMITRY - Ah! Coroais bem a vossa existência, meu pai. Mais do que despender um kopeck, teríeis preferido que o vosso filho se tornasse um ladrão.
FYODOR - Não te devo nada, nada.
DMITRY - E com os vossos desejos ultrajais a mulher que eu amo. Tendes orgulho em me roubar Gruchenka, não é? Esperais por ela esta noite?
FYODOR (recuando) - Fui eu que a escolhi. Casarei com ela, se me apetecer.
DMITRY - Calai-vos!
FYODOR - Fica com Katerina! Achá-la-ás dócil aos teus caprichos: essas jovens ternas e pálidas só amam os devassos e os patifes. (Dmitry, sem responder, atira-se sobre o pai, de punho levantado) Defendam-me, defendam-me! Ele vai matar-me!
Fyodor escapa-se, gritando. Dmitry corre atrás dele.
IVAN (intervindo e travando o caminho a Dmitry) - Pára, louco!
DMITRY (tremendo, sob a mão do irmão) - Para que serve a vida de um tal ser? (Estão todos de pé. O gesto de Dmitry foi seguido de grande estupefacção. O próprio Dmitry ficou atordoado. O padre Zocima avança lentamente para ele e, subitamente, prostra-se a seus pés, com a cabeça em terra. Dmitry, espantado, cobre a cara com as mãos, e depois olha à sua volta) Porquê? Porquê?... Agora, tudo está acabado... vamos, tudo está acabado! (Recua em direcção à escada, depois retorna e interpela Ivan) Ivan! Não esqueças Katerina. Hoje mesmo, vais cumprimentá-la... vais cumprimentá-la...
Desce a escada a correr
FYODOR - (ao fundo, parlamentando com os monges) - Está bem, senhores, está bem, vou-me embora, retiro-me... Talvez seja um bobo, mas sou um cavalheiro...
Sai. Os monges seguem-no.

CENA XI
Padre Zocima, Alyocha, Ivan, Smerdiakov

O padre Zocima continua ajoelhado. Alyocha inclina-se sobre ele. Ivan mantém-se à direita. Smerdiakov aproxima-se dele.
SMERDIAKOV - Senhor, que significa esta prostração?
IVAN - Não quebrarei a cabeça a adivinhar enigmas.
SMERDIAKOV - Se não o tivésseis segurado, tê-lo-ia morto.
IVAN (subindo) - Que importa! Um canalha comerá o outro. Terão o que merecem.
ALYOCHA (que ergueu a cabeça às últimas palavras de Ivan, travando-o com um gesto) - Irmão, julgas que um homem tem o direito de decidir se outro homem é digno de viver ou não?
IVAN (com altivez) - Como num interrogatório!
ALYOCHA - Deves responder, Ivan.
IVAN - Para quê mentir? Se o homem foi assim criado, que posso eu fazer? Se todos os desejos são permitidos?
ALYOCHA - Todos os desejos...
IVAN - Sim, Quem não tem o direito de desejar?
ALYOCHA - Mesmo a morte de outrem?
IVAN (com impaciência) - Achas-me capaz, como Dmitry, de matar o velho, hein?
ALYOCHA - Que dizes, Ivan? Nem tu, nem Dmitry! Nunca acreditei...
IVAN - Então, porque coraste? (Acariciando-lhe o rosto) - Acalma-te, pequeno. Defenderei sempre o pai, como acabei de o fazer.
ALYOCHA - Ah...
IVAN - Quanto aos meus desejos... deixo-lhes toda a liberdade.
Sai, precedido por Smerdiakov.


CENA XII
Padre Zocima, Alyocha

Durante as últimas réplicas da cena precedente, o padre Zocima levantou-se. Encara Alyocha com uma profunda emoção que o impede de falar. Depois, aperta-o contra o peito, em silêncio.
ZOCIMA - O teu lugar já não é aqui, meu filho... É tempo de ires para junto dos teus irmãos... não de um deles, mas dos dois... Porque tremes?
ALYOCHA - Tenho medo. Essa saudação... perante Dmitry?
ZOCIMA - Saudei o seu grande sofrimento, que está para chegar... Apressa-te!
ALYOCHA (com receio) - Gostava da calma deste mosteiro. Eu amo-vos, meu pai...
ZOCIMA - Alyocha, o teu coração já se consumiu bastante no êxtase. Adeus... porque não apenas os meus dias mas também as minhas horas estão contadas.
Enquanto fala, o padre Zocima conduz Alyocha em direcção da escada. Depois, separa-se dele.
ALYOCHA -(beijando as mãos do religioso) - Adeus, adeus...
Alyocha começa a descer os degraus, a cara voltada para o padre Zocima, que se inclina.
ZOCIMA (no último momento, descendo um degrau, com as mãos estendidas para Alyocha, e em voz baixa, confidencialmente) - Alyocha... se alguma vez puderes carregar sobre ti o crime de outrem... sofre por ele e deixa-o partir sem reprovação... Vai, meu filho, Cristo está contigo. Vai, meu filho, vai...
Alyocha, desfeito em lágrimas, afasta-se. O padre Zocima abençoa-o e, quando ele já está no jardim, segue-o muito tempo com os olhos, apoiado à balaustrada.











SEGUNDO ACTO



Na tarde do mesmo dia, ao anoitecer. Em casa de Katerina Ivanovna. Uma sala elegantemente mobilada. Janela à esquerda. Porta ao fundo, dando para o vestíbulo; portas à direita, para um salão e à esquerda, para o quarto de Katerina.


CENA I
Ivan, Katerina

Estão em cena ao subir do pano. Katerina, vestida de preto, está sentada junto de uma mesa, com os cotovelos em cima e a cara entre as mãos, muito pálida e com ar teimoso. Ivan vai e vem. Adivinha-se que uma conversa entre ambos, acaba de ser interrompida pela violência de Ivan. Este pára e olha para Katerina. Aproxima-se dela e inclina-se sobre a mesa que os separa.
IVAN (em voz baixa e trémula) - É triste, Katerina, que não sinta a necessidade de ser feliz.
KATERINA (abanando a cabeça) - Conheço uma coisa mais imperiosa do que a felicidade.
IVAN (reerguendo-se, com um sorriso) - O dever!
KATERINA - Superior ao dever e que me atrai...
IVAN - O amor do perigo, a curiosidade do acaso!... Tudo o que fere o seu coração parece exaltar a sua vontade. Não se sente viver senão desafiando a vida.
KATERINA - Porque a vida não é muito bela.
IVAN (voltando-se para ela) - Ainda não pode saber como ela poderosa. Ela encarregar-se-á disso.
KATERINA - Rezarei a Deus para que me assista.
IVAN - O seu Deus!... Não podemos fazer o que ele nos pede, a menos que possuíssemos dons extraordinários.
KATERINA - Todas as provas me encontrarão pronta e só terei de me regozijar.
IVAN - Enquanto está à espera não sei de que recompensa! E se não houver recompensa? Se não houver objectivo. Não sabemos nada.
KATERINA - Podemos acreditar.
IVAN - Sim. Acreditar, admito...E enquanto esperamos? É a sua vida que passa, a sua vida...a felicidade e a alegria sobre a terra!
KATERINA (quase com dureza) - Você não sabe sofrer.
IVAN - Sabê-lo-á você ainda muito tempo?... E se forem precisos dez anos, quinze anos, para esgotar a sua resistência inumana, para aceitar os seus verdadeiros sentimentos; se reconhecer - demasiado tarde! - que mais vale a vida tal como ela é. Ah! Katerina, terá consumido a sua juventude, o tempo mais belo, quando tudo era ainda possível! Tê-lo-á gasto... numa luta defensiva, com esse fanfarrão, com esse louco!
KATERINA (levantando-se) - Vencerei Dmitry, em breve.
IVAN - Irá perder-se com ele.
KATERINA - Tomarei conta dele, pela constância do meu amor.
IVAN - É um devasso. Ao contrariar os seus desejos só vai irritá-lo.
KATERINA - Há nele algo de nobre a que saberei apelar.
IVAN - Vai envenenar as feridas da sua alma, vai provocar na sua alma um combate terrível onde o que ele tem de nobre não conseguirá porventura vencer o que ele tem de infame.
KATERINA - Nunca me falou assim.
IVAN - Poupe-me de fazer à sua frente a figura de acusador do meu irmão.
KATERINA - Não me avisa de nada que eu não tenha antecipadamente perdoado... Desde há três dias que o espero. Onde quer que ele esteja, sei que pensa em mim. O que quer que ele tenha feito, é preciso que volte. Quando se acusar, dir-lhe-ei: «Já sabia». Por mais tempo que ele demore, não o esperarei com menos confiança...
IVAN (cortando súbito) - Katerina... foi Dmitry que me enviou.
KATERINA (cujo rosto se alterou) - Porque é que ele o enviou? Que é que ele lhe disse? Quero saber exactamente...
IVAN (observando-a bem de frente) - Ordenou-me que a cumprimentasse... e que lhe dissesse que não voltará mais.
KATERINA (aparentando calma) - E depois?
IVAN - É tudo.
KATERINA - Sempre o mesmo. Cumprimentar-me... Foi essa a palavra que ele empregou?
IVAN - Insistiu mesmo nessa palavra.
KATERINA - Estava certamente exaltado, talvez fora de si?
IVAN - Não sei mais nada.
KATERINA - Estava assustado com a sua decisão. Ao sublinhar a palavra, quis sublinhar a bravata.
IVAN - É possível.
KATERINA - Pensa ele deixar-me sem réplica, com o seu cumprimento?
IVAN - Espero, pelo contrário, que dareis a esta bravata a vossa mais gloriosa réplica!
KATERINA - Não acredita na minha sinceridade?
IVAN - Oh! Mesmo nos piores excessos; sincera até na mentira.
Entra uma criada.


CENA II
Os mesmos, uma Criada

A CRIADA - Aleksey Fyodorovitch Karamazov pergunta se a menina o pode receber?
KATERINA - É o seu irmão, Ivan. Fico radiante que ele tenha vindo (Para a criada) Mande-o entrar.
A CRIADA - Há também essa senhora que a menina...
KATERINA - Está bem... Que ela entre para o salão. Já vou ter com ela. (A criada sai. Katerina reaproximando-se de Ivan) Ivan Fyodorovitch, se vê no fundo de mim - com os seus olhos penetrantes - suplico-lhe... se é verdadeiramente aquele em que acreditei, aquele que admiro e que tantas vezes me socorreu... suplico-lhe que continue a apoiar-me no caminho que tracei. Tenho sofrido muito. Estou preparada para continuar a sofrer. Pode ser que um dia me arrependa de lhe ter desobedecido. Mas quero ir até ao fim. Preciso de todas as minhas forças. E, sem o seu apoio, o que será de mim?
Ivan e Katerina estão de pé à direita, próximos um do outro. Ivan baixa a cabeça e apoia a mão numa pequena mesa. Katerina, continuando a falar, colocou a sua  mão em cima da de Ivan. Alyocha, entrando, envolve-os num olhar.


CENA III
Ivan, Katerina, Alyocha

ALYOCHA (a meia-voz, saudando) - Deus seja convosco.
KATERINA (dirigindo-se-lhe com vivacidade) - Aleksey Fyodorovitch... Alyocha, - posso chamar-lhe assim? Fico muito feliz em vê-lo!
ALYOCHA (olhando alternadamente para Ivan e para Katerina) - Perdoe-me, menina. Acho que a minha visita é inoportuna. Mas estou de tal forma inquieto com o meu irmão Dmitry, ele corre um grande perigo... Com certeza que o meu irmão Ivan já lhe disse...
KATERINA - Que Dmitry não me quer ver mais, sim.
ALYOCHA - Corri para junto de si porque julgo que é a única pessoa que o pode salvar.
KATERINA - Sente-se, Alyocha... Vai dizer-me francamente, sem cuidado de me poupar, o que é que pensa das suas intenções, depois... de tudo o que se passou nos últimos dias.
ALYOCHA - Oh! ... Não percebo grande coisa acerca desse tipo de assuntos.
KATERINA - A sua palavra é a mais pura que posso recolher.
ALYOCHA - O meu irmão cometeu muitos erros. Mas sabe que pecou. Ele não é mau. Ele ama a Deus... Ele gosta de si. Entrou no seu coração, profundamente, como um dardo que já não poderá arrancar. Ele gosta de si... e contudo eu penso que lhe mete medo. Você é o seu melhor pensamento... e esse pensamento atormenta-o.
KATERINA - Vejamos. Ele falou-lhe de uma importância em dinheiro, de três mil rublos?
ALYOCHA - Ah! Você sabe?
KATERINA - Adivinhei que ele não a iria conseguir! Ao confiar-lha, eu pu-lo à prova...
IVAN - É esse o seu jogo!
ALYOCHA - É assim que procura humilhá-lo?
KATERINA - Queria envergonhá-lo, que ele viesse para mim, como para Deus, e que compreendesse finalmente que sou capaz de todos os perdões.
IVAN - Pois bem, ele não veio!
KATERINA - Portanto, ele ainda não me conhece?
ALYOCHA - E agora, que perdeu a honra, tudo lhe é indiferente.
KATERINA - Que ele venha! Eu o acolherei, eu o consolarei.
ALYOCHA - Mesmo sabendo... porque ficou ele com o dinheiro?
KATERINA - Para me enganar com essa Gruchenka, para fugir com ela, não é verdade? E você acredita que vou abandonar a luta porque Dmitry sofreu um arrebatamento passageiro? Porque não é amor, está a entender? Ele não pode gostar dela!
IVAN - Contudo...
KATERINA - Gruchenka é uma sereia! É o que me vai dizer. Uma mulher irresistível; e que eu não suportaria mesmo o seu olhar?
ALYOCHA - Ela é pérfida e perigosa.
KATERINA - Vamos ver se essa rapariguinha leviana tem mais firmeza e mais força do que eu, se os seus encantos, mais do que o meu amor, conseguirão prender um coração nobre, ou se não serei eu a fazê-lo largar esse coração... (Indicando a porta à direita) Gruchenka está aqui. Ireis conhecê-la.
IVAN - Katerina Ivanovna, não assistirei a essa cena. Permita-me que me despeça.
KATERINA (imperiosa) - Fique, Ivan Fyodorovitch. Quero que fique.
IVAN (trocista) - De facto, você vai domar essa fera!
KATERINA - Já fiz coisas mais difíceis, pode crer. (Abre a porta à direita) Agrafena Aleksandrovna, estamos impacientes por vê-la.
GRUCHENKA (antes de entrar, com voz arrastada) - Estou aqui, menina. Estava à espera que me chamassem.


CENA IV
Os mesmos, Gruchenka

Gruchenka está elegantemente vestida. O seu rosto sorridente tem uma expressão ingénua e quase infantil. Mais do que andar, desliza, com tímidos movimentos de cabeça.
KATERINA (apresentando) - Ivan Fyodorovitch... (Gruchenka faz uma reverência, Ivan mal a cumprimenta) Aleksey Fyodorovitch... (Gruchenka olha-o com curiosidade e acena com a cabeça. Alyocha inclina-se. Katerina, que fez um gesto para convidar Gruchenka a sentar-se, olha-o um momento, e depois, um pouco constrangida, mas com dignidade) Espero que não tenha interpretado mal a minha atitude estranha: queria conhecê-la... Agradeço-lhe que tenha vindo.
GRUCHENKA (com afectação) - Oh! Agradecer-me... Oh! Sou eu, menina, que lhe estou grata por não me ter desdenhado.
KATERINA (esforçando-se) - Não creio que com essa cara seja desdenhada muitas vezes... (Para Ivan) Viu que lindos cabelos?
GRUCHENKA (sorrindo) - Fico confusa. Mas cuidado: se me lisonjeiam assim, vou desconfiar.
KATERINA (cuja voz treme ligeiramente) - Apenas desejo que haja entre nós uma explicação leal.
GRUCHENKA (com um gesto brusco) - Chut!... (Indicando a porta à esquerda) Está ali alguém...
Levanta-se de repente.
KATERINA - É a criada.
GRUCHENKA - Tem a certeza? Não escutam atrás da porta?
KATERINA - Mas o que tem?
GRUCHENKA - Chut!... (Encostou o ouvido à porta e pôs-se à escuta) Sou estúpida! Julguei que era Dmitry Fyodorovitch... Ao vir aqui, julgo que o avistei duas vezes. Não posso dar um passo sem que ele me espie. Oh! Tenho medo! Prometem-me que não virá?
KATERINA - Vejamos...
GRUCHENKA - Então, fico contente... Não quero que ele me veja! Há três dias que fujo dele. Se ele soubesse agora que menti... Ah! Estava tudo perdido! Passaram-se tantas coisas que ele não deve saber... É por isso que estou nervosa. Podiam fazer-me uma armadilha...
A  criada entra. Traz uma travessa com chocolate, bolos e compotas.
KATERINA - Aceita uma chávena de chocolate... bolos? A menos que prefira champagne? Champagne... sim?
GRUCHENKA - Gosto de chocolate.
A criada sai. Katerina enche as chávenas.
KATERINA - E de compotas, também gosta?... Eu mesmo vou servi-las.
GRUCHENKA (rindo alegremente) - É muito, é muito!
KATERINA - Cigarros?... (Acendem os cigarros) E... poderei perguntar quais são as... coisas de que faz tanto mistério a Dmitry?
GRUCHENKA (voltando-se na cadeira e aplaudindo) - Ah! Pois...Pois... É curiosa! Sabia bem como intrigá-la. E se eu me divertisse agora a deixá-la na expectativa?... (Para Alyocha) Isto também lhe interessa? Mas não são coisas para contar diante de um noviço!
KATERINA - Está a fazê-lo corar...
GRUCHENKA - É bem feito! Ele desviou os olhos, ainda agora, ao passar por mim na escada. Adivinhei que era ele, e fiquei furiosa porque pensei que ele me desprezava... (Para Alyocha, que olha para ela sorrindo) Não ficou zangado? (Alyocha abana a cabeça negativamente) Quer estender-me a mão? (Alyocha estende-lhe a mão) Meto-lhe medo?
ALYOCHA - Não, minha irmã.
GRUCHENKA - Como ele disse isto!... Nemo sei porque mesmo eu estou tão contente de o ver...
KATERINA (aproximando-se de Gruchenka) - Estamos aqui entre amigos.
GRUCHENKA (continuando a olhar para Alyocha) - O seu irmão falou-me muitas vezes de si. Eu que sou indigna, pensava: «Como um tal homem me deve desprezar!» Mas nunca vi um olhar tão bondoso como o seu... (Alegremente) Também eu sou boa hoje. (Para Katerina) Aproveite, querida menina; e apresse-se porque estou pronta para voar para longe!
KATERINA (agarrando-lhe a mão, desajeitadamente) - O meu coração tinha-me dito que nós as duas arranjaríamos tudo.
GRUCHENKA - Não quero fazer mais mal a ninguém. Se o fiz, prometo repará-lo.
KATERINA (beijando-lhe a mão) - Ah! Como é generosa!
GRUCHENKA - Quer confundir-me, querida menina, ao beijar-me a mão diante de Aleksey Fyodorovitch?
KATERINA - Confundi-la? Eu!
GRUCHENKA - Não se assuste... Antigamente, eu era má porque sofria.
KATERINA - Sofreu?
GRUCHENKA - Isso foi há cinco anos! Tudo está esquecido, porque ele voltou.
KATERINA - Voltou, quem?
GRUCHENKA - Mussialovitch... É verdade! Não sabe quem é Mussialovitch?... É o meu apaixonado... sim, o primeiro, um oficial polaco. Eu tinha dezassete anos, não mais, quando ele me abandonou para se casar. Ah! Que miséria! Ter-me-ia lançado à água se, nessa altura, o velho mercador Samsonov não me tivesse recolhido.
KATERINA - Ele salvou-a!
GRUCHENKA - É demasiado indulgente.
KATERINA - Consolou-a, protegeu-a...
GRUCHENKA - Eu não o enganava, sabe. Pensava muito nisso!... Durante cinco anos, alimentei-me do meu amor, do meu rancor. Escondia-me de toda a gente e soluçava noites inteiras a pensar: «Onde estará ele agora? Sem dúvida ele troça de mim com outra mulher. Vingar-me-ei!» E chorava até ao nascer do sol.
KATERINA (beijando-lhe a mão) - Compreendo-a... Como eu a compreendo!
GRUCHENKA - E depois pus-me a juntar dinheiro; fui implacável. Tornei-me forte... Contudo, não me tornei mais razoável e, muitas vezes, durante a noite,  cerrando os dentes, choro como chorava, há cinco anos, a pequena abandonada.
KATERINA - Continua a amá-lo, ao belo oficial, nunca amou outro a não ser ele!
GRUCHENKA - Está a defendê-lo exageradamente, querida menina, está a ir muito depressa... Talvez eu só ame o meu rancor... Mas, de repente, recebi uma notícia, uma notícia abençoada! Mussialovitch enviuvou. Não terei esperado, chorado, enraivecido em vão durante cinco anos! Ele está viúvo. Vai chegar. Quer ver-me: «Senhor, pensei eu, vou rastejar até ele? Serei tão covarde?» E odiei-me por isso!... Foi então que me servi de Dmitry...
KATERINA - Serviu-se de Dmitry?
GRUCHENLA - Por maldade... Para me distrair, para impedir de me precipitar para o outro. (Katerina troca um olhar com Ivan. Gruchenka surpreende-a mas continua) O velho Fyodor também me perseguia. E eu divertia-me com eles... Era preciso escutar os conselhos de Samsonov: «Se tiveres de escolher entre os dois, disse-me ele, escolhe o velho, na condição que ele case contigo e que te dê dinheiro. Não te ligues a Dmitry, ele não tem nada para tirar!» Era verdade. Mas, o dinheiro, eu não me importo. Eu tenho-o. E Dmitry agradava-me muitas vezes... É bonito, é bravio, é um coração ardente. Ah! Vou ter saudades dele!... Mussialovitch está à minha espera na estalagem de Mokroye...
KATERINA - Parte mesmo esta noite?
GRUCHENKA - Já está na hora?... Ah! Quem pode saber o que se passa em mim? Pus o meu melhor vestido para ir ter com ele... Mas Dmitry, se ele soubesse que parto... Pobre ingénuo Mitya! Que vai ser dele quando o deixar, quando o tiver abandonado... E porquê?... Será que eu amo esse polaco, Alyocha? É preciso perdoar?
ALYOCHA - Já perdoou...
GRUCHENKA - Então, vou?... Se não for por amor, será por vingança. Vou seduzi-lo, enlouquecê-lo, e depois abandoná-lo para que seja ele desta vez a chorar!
Deixa-se cair sobre um sofá e chora, com a cabeça entre as almofadas.
KATERINA (vindo sentar-se ao lado dela e tomando-a nos braços) Não, pequena Gruchenka. Vai esquecer o mal e será ainda feliz... Aqui, aqui... enxuguemos os nossos lindos olhos... Aqui, dê-me as suas mãos doces, as suas lindas mãos que eu quero beijar outra vez, porque elas me trouxeram alegria... Não Grucha, meu pássaro, não voltaremos a ouvir a nossa cabeça fantasiosa, seguiremos o caminho certo, isto é: ser boa e generosa.
GRUCHENKA - Eu sou má, eu não sou boa. Fiz com que Dmitry ficasse apaixonado por mim para me rir dele. Levei-o ao desespero...
KATERINA - Mas agora vai salvá-lo.
GRUCHENKA - Porque desapareço?
KATERINA - Vai desenganá-lo, fazer-lhe compreender...
GRUCHENKA - Que ele gosta de si?
KATERINA (com paciência) - Que você gosta doutro, que tudo isto era apenas um jogo.
GRUCHENKA - Oh! Querida menina, seria provocar-lhe um grande sofrimento! Quer que ele sofra, o seu Mitya? Julga-me tão cruel?...
KATERINA - Contudo, prometeu-me...
GRUCHENKA - Ah! Não, não, não prometi nada. Não diga que lhe prometi. Foi você, Katerina Ivanovna, que congeminou isto tudo...
KATERINA - Quer dizer que não a compreendi? Ainda agora disse...
GRUCHENKA - Que é que eu disse?
KATERINA - Que iria remediar...
GRUCHENKA - Bem, bem... Posso ter prometido ainda agora qualquer coisa, mas não sei o quê... Não me lembro, neste momento, que Dmitry me agradasse. O gosto que se tem de um homem como ele não passa tão facilmente. Ele agradou-me, certa noite, durante uma hora inteira. E se ele ainda me agradar?... Sou tão inconstante, tão caprichosa. (Katerina afasta-se, com despeito. Gruchenka vai ter com ela, com doçura) O meu coração é terno, sabe isso. Quando penso em tudo o que o pobre rapaz já suportou por minha causa... E se eu tiver piedade dele, que fazer?
KATERINA (não aguentando mais) - Espera que eu me humilhe mais?
GRUCHENKA - Ah! Acho que você, que é tão boa, já não vai gostar de mim! Peço-lhe perdão... (Agarra-lhe a mão. Katerina, completamente desconcertada, deixa-se ir) Dê-me a sua querida mãozinha. Beijou a minha três vezes; seria preciso que eu beijasse a sua trezentas vezes para ficar desobrigada para consigo... Então, queremos que se cumpra a nossa vontade, sem promessas nem condições? Ficaria muito feliz se deixássemos o nosso Dmitry e nos fôssemos embora, hein? Querida menina! Que mãozinha encantadora!... Pois bem, sabe, meu anjo, sabe?... Não quero beijar a sua mão!
Deixa cair bruscamente a mão de Katerina.
KATERINA (subindo, para Alyocha) - Aleksey, leve-a...
GRUCHENKA - Conservareis esta recordação, Katerina Ivanovna: beijou a minha mão e eu não beijei a sua.
KATERINA - Insolente!
GRUCHENKA - Ah! Pensava controlar-me! Arranjou tudo. Pretendia seduzir-me com o seu chocolate! (Desatando a rir) Contarei a aventura a Dmitry. Ele vai rir-se às gargalhadas!
KATERINA - Saia, criatura venal!
GRUCHENKA - Venal? Diga minha mãezinha, você que faz de rapariga virtuosa, se não foi, uma noite, sozinha, a casa de um bonito oficial, oferecer a sua virgindade por quatro mil rublos? (Katerina faz um gesto violento na direcção de Gruchenka. Ivan segura-a. Gruchenka, rindo) Num cabaret, uma noite em que estava bêbedo, Dmitry contou-me os vossos amores!
ALYOCHA (agarrando-a) - Saia daqui, imediatamente!
GRUCHENKA (para Alyocha) - Hein, meu menino? Desempenhei bem o meu papel. Ela queria uma representação, a menina; pois teve-a! E agora, parto para Mokroye! Ah! Numa embriaguez! Adeus, a todos... Alyochetchka, cumprimentos a Dmitry... Não esquecerei que me chamaste: minha irmã... Diz ao tenente que Gruchenka o amou apenas uma hora, mas que se recordará dele a vida inteira!
Sai.

CENA V
Katerina, Ivan, Alyocha

IVAN (para Katerina) - Aqui está o resultado da sua imaginação de pensionista colegial, das suas aventuras sentimentais! Pois bem, já viu a rapariga? Ela insultou-a e você ficou ciumenta!
KATERINA (com a cabeça entre as mãos, sem lágrimas, num grunhido) - Tenho vergonha... (Ivan e Alyocha observam-na em silêncio. Um tempo) Vão-se embora, meus amigos. Estou terrivelmente envergonhada... (Ivan e Alyocha recuam para o fundo) - Não, fiquem... (Levanta-se) Já nem sei mesmo se gosto dele... (Alyocha faz um movimento para falar) Mas tomei uma decisão. O que quer que aconteça, mesmo se ele casar com essa criatura, não o abandonarei, nunca, nunca! Segui-lo-ei com os olhos, velarei por ele. Ficará finalmente a saber o que eu valho. É tudo. E isso será toda a minha vida... (Sem olhar para Ivan, e com a voz entrecortada) Meu caro Ivan, espero... que me aprove?
O queixo abate-se-lhe sobre o peito e soluça silenciosamente. Ivan desviou-se.
ALYOCHA - Katerina Ivanovna, ao dizer-lhe ainda agora que devia salvá-lo... enganava-me, não sabia... Sofre demasiado... Isso não é possível!
KATERINA (dominando-se) -Não é nada, não é nada... Um pouco de fadiga... Noites sem sono... Mas vai passar... Com dois bons amigos como você e o seu irmão, sinto-me forte...
IVAN (com a voz embargada) - Infelizmente, parto para Moscovo esta noite.
KATERINA (chocada, mas contendo-se) - Esta noite, para Moscovo?
IVAN - É inevitável.
KATERINA - Não me tinha dito... É um tanto inesperado...
IVAN - Não posso ficar mais tempo...
KATERINA - Não me deve explicações, meu amigo... Uma vez que a sua decisão está tomada... Mas quando pensa regressar?
IVAN - Não sei.
KATERINA - Então... adeus.
Há um silêncio. Alyocha observa Ivan e Katerina, sem ousar dizer alguma coisa. Katerina está imóvel, à esquerda. Ivan aproxima-se lentamente dela.
IVAN - Adeus, Katerina... Deixo-a entregue aos seus deveres difíceis, aos seus exercícios de consciência. (Com mais aspereza) Use a sua existência na contemplação das suas virtudes. Possa tirar delas uma glória suficientemente bela para se sentir finalmente consolada... de tudo o resto.
KATERINA (rígida, com os lábios trémulos) - Boa sorte, Ivan Fyodorovitch... Espero alcançar, sem si, o objectivo da minha existência... Porque eu tenho, também eu, uma vontade que não se dobra.
Ivan dá alguns passos para sair.
ALYOCHA - Ivan, não te vás embora! Tudo isto é falso... Não deves partir!
IVAN - Não tenho mais nada a fazer aqui.
ALYOCHA - Dá a Katerina tempo para recuperar.
IVAN - Não ouviste que ela tomou uma decisão?
ALYOCHA - Foi uma reacção passageira.
IVAN - As suas mínimas reacções comprometem-na para sempre.
ALYOCHA - Fala-lhe...
IVAN - Já disse tudo e parto para sempre...
ALYOCHA (desesperadamente, para Katerina) - Vai deixá-lo partir assim?... Ivan, Katerina, conjuro-vos... Querem usar as vossas forças para um combate sem piedade? Não aceitam a verdade?
KATERINA (revoltada) - A verdade?
ALYOCHA - Desde que aqui cheguei, procuro-a nas vossas caras. Debatem-se contra ela. É preciso que alguém a diga, finalmente! Oiçam... Eu sei que me exprimo mal... Sou incapaz de decidir em semelhante caso e de determinar o vosso comportamento...Sei que vos vou magoar... Mas não seria melhor que Dmitry tomasse a mão de Ivan, depois a sua e que os unisse?... Parece-me, Katerina, que você não gosta de Dmitry, e aquele a quem ama... é ele!
KATERINA (com cólera) - Está doido!
ALYOCHA - Está a violentar-se, a torturar-se, para amar Dmitry. E a fazer sofrer Ivan, porque é dele que você gosta...
IVAN - Estás enganado. Katerina nunca gostou de mim. Ela nem sequer se importa com a minha amizade que ainda agora implorava. Tinha-me debaixo da mão, estás a ver, para se vingar em mim dos ultrajes que Dmitry lhe infligiu desde o seu primeiro encontro. Ela não deixava de me falar desse amor!
KATERINA (torturada, estendendo as mãos a Ivan) - Ivan!
IVAN - Não, não apertarei a sua mão porque neste momento não poderia perdoar-lhe; atormentou-me muito, conscientemente... Porque amava Dmitry! Necessita dele como uma prova do seu espírito de sacrifício, da sua força moral. Quanto mais ele for humilhado, mais se sentirá grande. Cada um dos seus crimes é um ganho para si. É assim que gosta dele, ou melhor, o seu orgulho!
KATERINA (num queixume) - Ivan...
IVAN - Mas passará a medida das suas forças e das dele. E isso será a minha vingança!
ALYOCHA - Oh! Irmão...
IVAN - Nem mais uma palavra! Vem...
Sai.


CENA VI
Katerina, Alyocha

ALYOCHA - Ah! Agora, não voltará por nada deste mundo! A culpa é minha. Provoquei a sua cólera. Perdoe-me. Ele foi injusto e cruel. Perdoe-lhe Katerina. Perdoe aos meus dois irmãos. Eles possuem como que um instinto frenético e selvagem, donde o espírito de Deus está porventura ausente: é a alma dos Karamazov!... Não se vingue. Não faça nada contra eles. Vou encontrá-los, falar-lhes. Impedirei que o desespero entre no seu coração!... Coragem, Katerina, coragem. Que Deus a guarde!
Sai.

CENA VII
Katerina.Uma Criada

Katerina permaneceu imóvel durante toda a cena anterior. Quando Alyocha saiu, levou as mãos ao rosto e ficou assim durante algum tempo. Depois dirigiu-se lentamente para um sofá e sentou-se, os cotovelos sobre os joelhos, o queixo sobre a palma das mãos. A Criada entra. Levanta a mesa, sai, regressa com candeeiros, corre as cortinas e torna a sair, não voltando a reaparecer. Ouve-se tocar. Katerina estremece, sem se mexer. Uma porta bate. Passos precipitados na antecâmara. Dmitry, quase a correr, aparece. Katerina levanta-se. Na penumbra, Dmitry não se apercebe dela. Procura à volta. Atravessa a sala para passar à outra divisão e encontra-se diante da noiva. Então recua, baixando a cabeça.


CENA VIII
Katerina, Dmitry

DMITRY (com voz surda) - Onde está Gruchenka?
KATERINA - Miserável! Eis o mais hediondo dos teus crimes... Num cabaret, disseste tudo a essa rapariga, todos os nossos segredos!
DMITRY (com profunda contrição) - Estava embriagado... As ciganas cantavam... Mas, ao falar, eu soluçava... Gruchenka também chorava...
KATERINA - Manchaste as recordações... do dia mais belo. Oh! Como eu amaldiçoo esse dia!
DMITRY - Também eu o amaldiçoo.
KATERINA - Portanto, sempre me desprezaste por eu ter ido buscar o dinheiro a tua casa... Não compreendeste nada, não podes compreender nada de nobre... Eu queria suportar as tuas traições. Ainda esta manhã, estava resolvida a perdoar-te tudo... Mas não o teu desprezo, não o teu desprezo, isso é superior às minhas forças!
DMITRY (com uma alegria selvagem) - Enfim! Sede a minha inimiga!
KATERINA - Tem cuidado... Não sabes o que eu te sacrifiquei...
DMITRY - Que fizeste a Gruchenka?
KATERINA - Mitya, escolhe - enquanto é tempo - escolhe por nós os dois... o bem ou o mal...
DMITRY - Não posso escolher. Chega de lutas! Quero repousar na vergonha... Tem piedade de mim, Katya, estou exausto... Desde esta manhã corri os prestamistas em busca de dinheiro... Todos me recusaram... Mas devolver-te-ei os teus três mil rublos, nem que tivesse de ir para a Sibéria. Prefiro a prisão ao teu amor. Vou devolver-tos... E depois adeus, mulher irascível; adeus também, meu amor! Ter-me-ei perdido para não ter de suportar o teu orgulho e por já  não te amar... Não desprezes Dmitry. Lamenta-o. Estás a ver, beijo os teus pés... Diz-me onde está Gruchenka. Enquanto corria, ela escapou-se. Procuro-a por toda a parte. Todos me enganam. Sei que ela veio aqui. O que é que tramaram ambas contra mim?
KATERINA (rangendo os dentes) - Ela insultou-me, troçou de mim.
DMITRY - Ah! Ah! A feiticeira, a rainha da insolência! Tanto pior para ti: afectavas grandes ares!... Ela ainda aqui está? Responde! (Katerina cala-se) Onde está ela? Suplico-te, em nome do Senhor, diz-me onde ela está? (Silêncio) Partiu? (Katerina sacode a cabeça afirmativamente) - Em casa do meu pai? Foi a casa do velho buscar os três mil rublos? Sim? Ela disse-te? Gabou-se disso? Sei que ele esperava por ela esta noite... (Katerina cala-se obstinadamente. Dmitry, com a voz alterada, numa angústia terrível) Ah! Implacável!... Mas tu não és falsa... Diz-me só uma palavra... Ainda que sejas minha inimiga, tenho fé em ti, Katerina, tenho confiança na tua palavra... Diz-me, achas Gruchenka capaz de ir a casa do velho para ganhar três mil rublos?
KATERINA (depois de uma luta interior, com esforço, mas firmemente) - Acho-a capaz de tudo...
DMITRY (pulando) - Obrigado. Vou lá!
Sai a correr e fecha a porta atrás de si.
KATERINA (tomando bruscamente consciência do que acabou de fazer) - Dmitry!... (Abre a porta e precipita-se para o exterior. Ouvimo-la gritar: «Dmitry! Dmitry!» Depois volta a entrar, o rosto transtornado, torcendo as mãos) Oh!... Ele quer matar! Ele quer matar!





 


TERCEIRO ACTO








Noite do mesmo dia. Em casa de Fyodor Pavlovitch Karamazov. Um grande salão branco e dourado. Mistura de luxo e decadência. Uma pequena lamparina ilumina um ícone. À esquerda, em primeiro plano, uma janela; em segundo plano, uma porta dando para o jardim. Ao fundo, uma porta que conduz ao escritório. Porta à direita, em segundo plano, sob o vão de uma escada que dá acesso a uma galeria de madeira, para a qual se abrem os quartos.

CENA I
Dmitry, Smerdiakov

Ao subir o pano a cena está vazia. A porta da esquerda abre-se bruscamente. Dmitry atravessa o salão a correr e desaparece pela porta da direita. Ouvimo-lo falar alto e depressa com Smerdiakov antes que ambos entrem em cena.
DMITRY - Queres dizer-me onde ela se escondeu?
SMERDIAKOV - Juro-vos, senhor, que Gruchenka não se encontra aqui. Pode verificar.
DMITRY - Mas veio?
SMERDIAKOV - Não.
DMITRY - A que horas virá?
SMERDIAKOV - Não antes da meia-noite. O senhor tem de se ir embora...
DMITRY - Onde é que ele vai recebê-la?
SMERDIAKOV - Aqui... Fyodor Pavlovitch não deve tardar. Se ele o encontrasse...
DMITRY - Ela entra pela grade?
SMERDIAKOV - Sim.
DMITRY - E baterá na vidraça?
SMERDIAKOV - Já vos disse que sim. Por favor, senhor, ide-vos embora!
DMITRY - Duas pancadas espaçadas, seguidas de três rápidas? É isso?
SMERDIAKOV - É isso, sim. Passe pela cozinha, e fuja pela porta pequena.
DMITRY (saindo pelo fundo) - Até à meia-noite eu espreito!
Smerdiakov empurra-o à sua frente. Reaparece no momento em que Ivan entra pela esquerda.


CENA II
Smerdiakov, Ivan
Ivan atravessa o palco sem dizer nada. Evita Smerdiakov e vai subir a escada.
SMERDIAKOV - Estou numa situação horrível, Ivan Fyodorovitch! Eu já não vivo. O vosso irmão é capaz de tudo. Acaba de entrar aqui, como um louco, empurrando os móveis, rebuscando nos quartos, e ameaçando-me com uma pistola.
IVAN - Porque te meteste nisto?
SMERDIAKOV - Foi ele que me meteu. Guardei silêncio, não ousando contradizê-lo. Ele fez de mim o seu confidente.
IVAN - Tanto pior para ti.
SMERDIAKOV - Nem toda a gente tem a vossa prudência.
IVAN - Eu defendo-te!
SMERDIAKOV - E o vosso pai atormenta-me de manhã à noite. Se Gruchenka não vier esta noite...
IVAN - Ela não virá.
SMERDIAKOV - Como sabeis?
IVAN - Eu sei. Boa noite. Não vou jantar.
SMERDIAKOV - Amanhã de manhã tudo vai recomeçar: «Porque é que ela não veio? Quando é que ela virá?» Como se fosse culpa minha... Ah! Vão os dois irritar-se ambos de dia para dia e tornar-me a vida de tal maneira insuportável que, às vezes, penso matar-me, para acabar com isto tudo.
IVAN (desaparecendo no seu quarto) - E que tenho eu com isso?
Mal Ivan fechou a porta, ouve-se a voz de Fyodor.

CENA III
Smerdiakov, Fyodor

FYODOR (de fora) - Smerdiakov! (Entra pecipitadamente) Smerdiakov... ele está aqui... Dmitry!... atrás da sebe... Vi a sua cabeça entre os ramos... está à espreita...
SMERDIAKOV - Sentai-vos, senhor, estais sem fôlego.
FYODOR (deixando-se cair numa poltrona) - Fecha a porta... Corre a procurar Grigory. Chama-o! Vai!
Smerdiakov sai. Fyodor enxuga-se e geme na poltrona.


CENA IV
Smerdiakov, Grigory, Fyodor

FYODOR (em voz baixa) - Ah...ah... eis-te aqui meu velho Grigory, meu bom Grigory! Aproxima-te.
GRIGORY - Não receeis nada, mestre.
FYODOR - Dá-me a mão, meu bravo Grigory, meu firme Grigory, meu guarda-costas, eh! eh! Não tenho medo quando estás aqui, cão fiel... (Grigory ri, silenciosamente) Olha para mim...
GRIGORY - Sim, mestre.
FYODOR - Como é que me achas, tu que conheces o meu aspecto?... Não tenho vermelho o olho direito?
GRIGORY - Não, mestre!
FYODOR - Então, nada de anormal?
GRIGORY - Nada, mestre.
FYODOR (tranquilizado, mostrando a Smerdiakov os pacotes que trazia quando entrou e que não largou) Estás a ver, são pequenos presentes para a minha gatinha. Chocolates, caramelos, bombons... (retomado pela ansiedade, para Grigory) Ah! Não me senti bem, a noite passada, paizinho. Acordei de repente. Não sei o que tinha. A minha alma tremia-me na garganta. Tive medo. É que eu quero viver, tu sabes!
GRIGORY - Talvez tenha comido demais. Seria melhor purgar-vos. Eu faço isso algumas vezes...
SMERDIAKOV - Grigory Vassiliev, purgar-se é uma impiedade. A oração é suficiente a um bom cristão para curar todos os males. Ou não acredita?
Fyodor reprime dificilmente o riso.
GRIGORY - É preciso sovar este malandro. Não respeita nada.
FYODOR - Está bem... Por Deus, não percebes nada de espíritos cultos! É como o outro velho, no mosteiro: «Não minta», disse ele!... Credo! Seria preciso destruir esses conventos e o seu misticismo para devolver a inteligência aos tolos. Tudo isto é uma porcaria... Vou mergulhar a cabeça na água... Prepara a ceia, Smerdiakov... Quanto a Dmitry, o pulha! Vou mandá-lo prender. Estou no meu direito... ele ameaçou-me em público... existem leis...
Continuando a resmungar, subiu a escada e entrou no seu quarto.

CENA V
Grigory, Smerdiakov

GRIGORY - O que é que se passou, esta manhã, no mosteiro?
SMERDIAKOV - Uf... maluqueiras, escândalo.
GRIGORY - Portanto, o santo velho não os reconciliou!
SMERDIAKOV - Fyodor não cederá. E nada reterá Dmitry. Cheira a crime, aqui, Grigory Vassiliev... Ivan só espera isso. Troça deles e vai regalar-se à sua custa. Esse não é parvo.
Enquanto falava, tirou da algibeira um estojo e passa um pente pelos cabelos.
GRIGORY (persignando-se) - Cala-te, canalha!
SMERDIAKOV (entre dentes) - Trata-me como um lacaio... Conheço-o melhor do que ele a mim.
GRIGORY - Porque estudaste em Moscovo, tomas-te por alguém. Fazes de senhor, com pomada e roupa branca. Um covarde, é o que tu és...
SMERDIAKOV (começando a pôr a mesa) - Seria um outro homem, se tivesse sido educado de outra forma.
GRIGORY - Educado de outra forma!...O filho de uma mal-cheirosa!
SMERDIAKOV (estremecendo) - Contou-o a toda a gente, não foi?... Sei muito bem que sou filho de uma mal-cheirosa. Deitaram-mo à cara muitas vezes em Moscovo! E aqui, no mercado, contam, à minha frente, que a minha mãe tinha metro e meio de altura e que os seus cabelos estavam sempre coalhados de lama.
GRIGORY - Isso incomoda-te?
SMERDIAKOV - Não me incomoda, mas envergonha-me... Sei muito bem que sou um Smerdiakov... Bateram-me toda a minha infância.
GRIGORY - O teu único prazer era pendurar gatos para a seguir os enterrares com grande cerimonial...
SMERDIAKOV - E você, Grigory Vassiliev, dava-me estalos...
GRIGORY - Tu discutias o evangelho!
SMERDIAKOV - Eu levantava objecções razoáveis a que você era incapaz de responder... Foi a seguir a uma dessas correcções que tive a minha primeira crise de epilepsia... Sei muito bem que não passo de um epiléptico, de um lavador de louça... (Brinca com uma faca que espeta na mesa. E soltando um profundo suspiro) Ah! Se eu tivesse no bolso uma certa quantia...
GRIGORY - Que farias?
SMERDIAKOV - Há muito tempo que me tinha ido embora.
GRIGORY - E depois?
SMERDIAKOV - Abriria um café-restaurante em Moscovo, e ninguém seria capaz de cozinhar como eu.
FYODOR (do seu quarto) - A ceia está pronta?
SMERDIAKOV (para Grigory) - Vá-se embora. O mestre quer que seja eu a servi-lo.
Sai pela esquerda.
FYODOR (descendo, para Grigory) - Ainda estás aí, a lamentar-te, meu velho? Bateremos nesse Smerdiakov, prometo-te!
Grigory sai, resmungando. Smerdiakov entra trazendo um "pâté".


CENA VI
Fyodor, Smerdiakov

FYODOR (aproximando-se da mesa) - Oh! Oh! Um "pâté" de peixe! Eis o que me provoca o cúmulo da alegria e duplica o meu apetite. Porque tu és um verdadeiro artista, Smerdiakov, no que toca ao "pâté" de peixe...Bem, e o outro... Ivan? Vai descer?
SMERDIAKOV - Não. Ele não vai descer.
FYODOR - Tanto melhor... Vai lá acima, e vê pelo buraco da fechadura o que está ele a fazer no quarto. (Smerdiakov sobe suavemente e espreita pela fechadura) Eh!
SMERDIAKOV (voltando a descer) - Nada. Está sentado numa cadeira a olhar em frente.
FYODOR - Ele medita, faz cálculos, atormenta-se... porque nada acontece à sua vontade. Será que ele vai a Tchermachnia?
SMERDIAKOV - Ignoro.
FYODOR - Estou a morrer de fome. Corta!... (Admirando o "pâté") Como está dourado! Como está suculento!  (Começa a comer) Nuito bem: à meia-noite, como ela dizia na carta, a minha Grucha? Sim?... Quero beber... Estás a olhar para mim?... Estou decrépito, hein?... Bah! Com o meu nariz adunco e o meu duplo queixo, pareço-me com um velho romano da decadência... E depois, comprei para mim um lenço novo... Eu mesmo vou abri-lo. Ela vai entrar, assim, um pouco confusa... «Eis-me aqui, Fyodor Pavlovitch... estava à minha espera?» Sim, estava à sua espera! Estou apaixonado como um gato!...
SMERDIAKOV - A propósito, senhor... os três mil rublos? O envelope com os três mil rublos? Onde está?
FYODOR - Debaixo do meu colchão.
SMERDIAKOV - Mau esconderijo!
FYODOR - Achas?... Sobe e traz-me o pacote. (Smerdiakov obedece. Fyodor, indicando-lhe a porta de Ivan) Chut... suavemente... (Smerdiakov desce e entrega o envelope a Fyodor) Isso... E agora, aonde? Nesta poltrona?
SMERDIAKOV - Porque não atrás do ícone?
FYODOR - Bravo! Ah! Aí, por exemplo, é admirável. Por detrás do ícone! Ah! Ah! Dmitry nunca os irá procurar lá... E Gruchenka vai rir-se a bom rir quando eu retirar o pequeno presente de trás do ícone! Vamos... sopra as velas. Voltaremos a acendê-las esta noite. É para se ver bem que eu queimo óleo, e não é para honrar os deuses... Ah! Ah! Ah!
Bebe e sufoca-se ruidosamente.
SMERDIAKOV -Que tendes, senhor? Estais aflito...
FYODOR  (por entre soluços) Nada... engasguei-me... que engraçado... Ah! Ah! Ah! Atrás do ícone! (Ri tão alto e durante tanto tempo que Ivan, atraído pelo barulho, aparece à porta do quarto. Fyodor, estupefacto, deixa de rir.) O que é? Que é que desejas, hein?
IVAN - Nada. Ouvi-o rir. É tudo.


CENA VII
Fyodor, Ivan, Smerdiakov
FYODOR - Queres cear?
IVAN - Não tenho fome, obrigado. Mas faço-lhe companhia, se não lhe desagrada.
FYODOR (entre dentes) - Como queiras. (Ivan senta-se em frente de Fyodor que, silenciosamente, se empanturra) Não dizes nada.
IVAN - Admiro o seu apetite.
FYODOR - Smerdiakov! Terminei!... (Para Ivan, enquanto Smerdiakov levanta a mesa) Achas que Alyocha está zangado? Lamento não me ter portado muito bem esta manhã diante do seu religioso.
IVAN - A sério?
FYODOR - Não me acreditas? Vejo isso na tua cara. Tomas-me por um bobo... Olha, aqui está o burro de Balaam que regressa carregado de licores. (Smerdiakov coloca na mesa frascos e copos, depois afasta-se pensativo) Bebes um copo do meu velho cognac? Sei que gostas dele. Tu não fazes parte dos tolos que só bebem água. Para gostar de cognac, é preciso ter espírito. E nós somos gente de espírito, somos não somos, Ivan? E toda a nossa vida continuaremos a aquecer as costas, a encher a barriga e a beber cognac. Foi o próprio Deus que assim dispôs...
IVAN - Por Deus!
FYODOR (inclinando-se) - Ivan!...tudo isto me apoquenta, todos estes problemas... Não troces do velho inválido. Tu não gostas de mim e não tens qualquer razão para gostares de mim... Mas, vejamos, diz-me lá, entre nós, seriamente: Ivan, Deus existe, sim ou não? (Ivan esvazia o copo sem responder) Preciso de saber, meu filho...
IVAN (inclinando-se e olhando de frente para o pai) - Não, Deus não existe.
FYODOR - De verdade? Alyocha pretende que ele existe... (Dando-se conta de Smerdiakov que, imóvel, não perde uma palavra da conversa) Vi dar uma volta, jesuíta! (Smerdiakov retira-se para o fundo do palco, mas não sai) Vai ficar ali a escutar-nos. És tu provavelmente quem lhe interessa. Que é que lhe fizeste?
IVAN - Nada. São as maneiras dele.
FYODOR - E então... a imortalidade? Ela existe?
IVAN - Não.
FYODOR (com uma alegria surda, mas contida) - Estás certo disso, meu pequeno Ivan? Não estarás a gozar comigo? Não quererás enganar um pobre homem, que já não tem muito tempo para viver? E que quer viver segundo a verdade, hein?... Não há imortalidade, nem sequer um pedacinho de imortalidade?
IVAN - Nada.
FYODOR - Quer dizer... um zero absoluto, ou uma pequena fracção de unidade? Nem mesmo uma fracção de fracção?
IVAN - O zero absoluto.
FYODOR (não se contendo mais) - Mas então,,, mas então... Ivan, tudo é permitido?
IVAN - Sim, tudo é permitido, meu pai.
FYODOR - Chut!... Não o digamos. Guardemos isso para nós, meu filho... À tua saúde! (Brindam) Querido Ivan, fico contente de te ver aqui sentado, à minha frente, a bebermos os dois, como dois amigos.
IVAN - Sim.
FYODOR (com um pé sobre a mesa) - Podíamos ser tão felizes na terra!...
IVAN (com esforço) - Sim.
FYODOR - Sou ainda um homem, sabes, meu companheiro, e pretendo continuar a sê-lo durante uma vintena de anos. Só que envelhecerei, tornar-me-ei cada vez mais repugnante, e elas já não vão querer vir a minha casa com tanta vontade, as gatinhas... Então, terei necessidade de todos os meus kopecks.
IVAN - Naturalmente.
FYODOR (completamente embriagado) - É por isso que quero que saibas, meu querido filho Ivan, que não juntei dinheiro nem continuo a juntar a não ser para mim. Quero viver na meu lodo, e o mais tempo possível. Está-se muito bem no lodo... Não quero ir para o paraíso de Alyocha, supondo que ele existe; não é o lugar para um homem inteligente...
Leva a mão à garrafa.
IVAN - Já bebeu demais.
FYODOR - Psst! Deixa lá. Mais um copito, só um. Não vou morrer por mais um copito. (Estende o seu copo que o próprio Ivan enche) Conheces a história de von Zohn, que foi assassinado em casa das filhas?
IVAN - Não tenho de conhecê-la.
FYODOR - Bom. Então vou contar-te a estranha aventura de Elisabeth Smerdiatchaïa, a mal-cheirosa!... Imagina que ela percorria os caminhos sem outra roupa que não fosse uma simples camisa, o que não deixava de ter um certo... apesar dela ser nojenta... Estás a ver, meu porquinho, em toda a minha vida não encontrei uma mulher feia. Todas têm o seu encanto: esta é a minha regra. E só o facto do sexo é já imenso... Quando fores a Tchermachnia, vou indicar-te uma rapariga: ela anda descalça, mas... Ora, uma noite de verão, voltava de um jantar com alguns companheiros divertidos, e aconteceu que, junto a uma sebe, deitada nas urtigas, e completamente adormecida, nós vimos Elisabeth Smerdiat...
Completamente embriagado, Fyodor não tomou cuidado até pronunciar o nome de Elisabeth Smerdiatchaïa. Smerdiakov arrebitou as orelhas e começou a descer furtivamente em direcção à mesa. Ivan observa o lacaio. Seguindo o seu olhar, Fyodor volta-se lentamente com medo, e vê Smerdiakov inclinado atrás de si, com espuma nos lábios e os membros agitados, com um tremor de epiléptico. Pára de repente com um sorriso idiota no rosto. Ivan olha para o tecto, baloiçando-se na cadeira. Silêncio.
SMERDIAKOV (cuja expressão de ódio degenera num zombar lamentoso)- São onze horas, senhor...
FYODOR - Está bem, mas... meu rapaz... sim...
Smerdiakov sai lentamente pelo fundo.


CENA VIII
Ivan, Fyodor

FYODOR (com fúria, para Ivan) - Porque é que não me interrompeste?
IVAN - Queria ver até onde era capaz de chegar.
FYODOR - Por maldade! Vens desprezar-me na minha própria casa.
IVAN - Vou-me embora. É o cognac que fala.
FYODOR - Não preciso de mais. Podes levá-lo já!... Os teus olhos maus observam-me. Eles espiam-me, suspeitam de mim. Tens um pensamento reservado... Diz lá! (Ivan encolhe os ombros com desprezo) Sim, calas-te, como sempre. Só sabes calar-te e escarnecer dos outros em silêncio. É assim que te dás ares de sábio. Ou, se falas, fazes caretas... Não tens o direito de me julgar! Não vales mais do que eu, camarada...
Ivan é possuído por uma repugnância inexprimível. Nesse momento, Alyocha surge à esquerda.
IVAN - Alyocha...


CENA IX
Ivan, Fyodor, Alyocha, Smerdiakov

FYODOR (para Alyocha) - Porque vieste? Não convido ninguém.
ALYOCHA (dirigindo-se-lhe) - Como estava irritado, meu pai...
FYODOR (baixo, aparte) - O meu querido filho único! Sede o meu anjo. Levai-o... Mete-me medo, ainda mais do que o outro.
ALYOCHA - Ele sofre. Cuidem dele.
FYODOR (dando um salto) - Pff! ... Smerdiakov, vem vestir-me! (Sobe a escada seguido por Smerdiakov. Fyodor, para Ivan, suavemente) Peço-te... Ivan, parte esta noite para Tchermachnia... Peço-te isso... (Ivan, que caminha febrilmente de um lado para o outro, faz que não com a cabeça) - Não? Recusas?... Queres ficar aqui de guarda? Queres saber quanto vou dar a Gruchenka quando ela vier ver-me?... E incitas Dmitry a fugir com ela para te apoderares de Katerina Ivanovna, que é rica. Eis os teus pensamentos e o teu cálculo, patife!... Pois bem, fica a saber que casarei agora mesmo com Gruchenka se me apetecer. Quanto a Katerina, não a terás, entendes? Não a terás... Desafio-te!
Entra no quarto, seguido por Smerdiakov.


CENA X
Ivan, Alyocha, Smerdiakov

Quando Fyodor desaparece, Alyocha dirige o seu olhar para Ivan, que continua a andar em silêncio de um lado para o outro. Depois, baixa os olhos, incomodado, envergonhado, receoso. Vai falar mas, de longe, Ivan acena-lhe para que se cale.
IVAN (como para si-mesmo) - Fiquei uma hora a mais. Não devia ter entrado aqui, neste cheiro... voltado a ver este velho... Não o deveria ter feito! O ódio vai estragar-me a alegria da partida.
ALYOCHA - Então, vais partir?
IVAN - Dentro de uma hora, estarei longe daqui.
ALYOCHA - Que vais fazer, Ivan?
IVAN - Viver para mim-mesmo e que o resto vá para o diabo!... Viver como um homem inteligente, como diz o meu pai... (Detendo-se e batendo com o punho sobre a mesa) Se soubesses o que tenho aturado, aqui!... Ele piscava-me o olho, batia-me no ombro. Ele tem cinquenta e sete anos, eu tenho vinte e três. É essa a diferença entre nós? Entregar-se assim à luxúria, é ignóbil!... Ah! Lyocha, com trinta anos, largarei os copos, enjoado de beber. Mas, até aos trinta, que escutar se não os nossos desejos?... A menos que se seja um homem seguro como tu, que conheces o teu objectivo e sabes manter-te firme. Gosto dos homens seguros. E tu, Lyocha, gostas de mim?
ALYOCHA - Sim, eu gosto de ti. Há uma coisa que compreendi em ti: é que és um jovem tão ingénuo como os outros jovens de vinte e três anos.
IVAN - Sim.
ALYOCHA (sorrindo) - Um homem jovem e fresco.
IVAN - Sim, Alyocha. Tornar-se homem é terrível. Eu não quero amadurecer. Gostaria de permanecer um adolescente como tu... e que se sente virtuoso tanto quanto se julga insatisfeito... às vezes, ao sair de casa dela, dizia para mim: a minha juventude vencerá todos os obstáculos; quando todos os horrores da desilusão, da traição me vierem atingir, quererei viver. Para extinguir em mim a paixão de viver, não existe desespero que baste.
ALYOCHA - De que desespero é que falas?
IVAN - Não procures saber. Desprendi-me de tudo, juro-te. Ah! Não acreditava que fosse tão fácil. Num minuto, apaguei seis meses da minha vida. Na nossa idade, somos ricos. E qualquer coisa é melhor do que aceitar uma injúria.
ALYOCHA - Então, tu não gostavas de Katerina.
IVAN - Talvez... Estás a ver, nada exerce sobre mim uma influência tirânica. Sou vigoroso. Não tenho tempo para esperar e para me atormentar... Tanto pior! Eu recomeço...
ALYOCHA - Katerina gosta de ti.
IVAN - É possível.
ALYOCHA - Porque é que lhe disseste que ela nunca te amara?
IVAN - Disse-lhe, de propósito.
ALYOCHA - Para a fazer sofrer?
IVAN - Pois que sofra!
ALYOCHA - Irmão, pensaste que louca de dor Katerina poderia vingar-se em Dmitry?
IVAN - Acaso sou eu o guarda do meu irmão?
ALYOCHA - É a resposta...
Smerdiakov, levando para o escritório a roupa e os sapatos de Fyodor, atravessa o palco da direita para a esquerda e sai. Os dois irmãos calam-se para o deixar passar.
IVAN - A resposta de Caim, não é?... Mas poderei eu passar a vida inteira a vigiar esses loucos? Não quero voltar a olhar para trás de mim. Quero agir só à minha maneira e não depender de ninguém... Rompi, larguei. Compreendes? Posso fazer seja o que for...
ALYOCHA (com tristeza) - Ah! Sim... todos os desejos são permitidos, não é?
IVAN - Seja, não vou desdizer-me: tudo é permitido...Alyocha, sou livre... Quero festejar a minha liberdade, beber à minha liberdade!
ALYOCHA - Não, irmão, não bebamos! Estou tão triste. (Silêncio) O padre Zocima morreu.
IVAN (com um sorriso estranho) - Eis que nos foste devolvido, pequeno Karamazov.
ALYOCHA - Ele enviou-me ao mundo.
IVAN - E é para mim, em primeiro lugar, que tu vens...
ALYOCHA - Foi isso que ele me recomendou.
IVAN - Com os teus belos olhos cinzentos que, desde há três meses me interrogam. Querias saber... Vejo que me tens observado, desde há três meses, com toda a atenção... Também eu, meu querido, antes de partir para sempre, gostaria de te ter conhecido melhor. Agora é tarde. Porque não fizeste um sinal, dito a primeira palavra?
ALYOCHA - Porque não ousei? Tudo isto, talvez, não acontecesse.
IVAN - Nada aconteceu, Lyocha... Pensamentos... Maus sonhos, no máximo.
ALYOCHA - Ainda queres desaparecer! Não voltarei a deixar o teu segredo em repouso, Vanya... De que estás desgostoso? Diz-me, diz-me. Não há nada que eu possa fazer por ti, meu irmão? De que sofres? Gostaria de carregar o teu sofrimento sobre mim.
IVAN (encolhendo os ombros) - Noviço! Vou mostrar-te o meu sofrimento, que não conhecerás ainda. E, conhecendo-o, que farias? Não podemos amar... Apesar de todo o amor que temos dentro de nós, não podemos. Há uma impossibilidade física, um impedimento. Quanto a compreender o sofrimento dos outros!
ALYOCHA - Qualquer que seja  teu sofrimento, Ivan, eu sei que ele não pôde corromper-te. E se alguma coisa permanece visível em ti, é a nobreza da tua alma...
IVAN - Para sempre atormentada, no embaraço, na luta; e contudo tão nova!... Não me peças para explicar. Compreendi que todas as razões apenas servem para mascarar em mim um terrível instinto. Todas as razões são covardes. Estou farto... Que esteja vivo! Isso basta-me! O céu azul, a primavera e as suas flores novas enchem-me de contentamento. Temos a vida à nossa frente. Ela acabará por nos levar a algum lado, aonde chegaremos... Compreendes?
ALYOCHA (baixando os olhos) - Sim...
IVAN - Afasta-te de mim, vá; já não sou um homem bom para interrogar. Já não posso mostrar todos os meus pensamentos.
ALYOCHA - Irmão, não tenho medo! Não penses que receio o espírito que está em ti, mesmo que seja... a revolta.
IVAN - Não é revolta! Não podemos viver na revolta. E, apesar de tudo, eu vivo! Não é revolta, oh! Não... Mas o desespero, ou antes... a indignação, sim: uma recusa! Ei-la: eu não aceito o mundo!
ALYOCHA (suavemente) - Contudo, tu gostas dela, Vanya...
IVAN - Não pude deixar de gostar dela.
ALYOCHA - O céu azul, a primavera e as suas flores novas...
IVAN - Até aos trinta anos.
ALYOCHA - Mesmo até aos trinta anos, como é possível viver com tal inferno no coração e na cabeça?
IVAN - Essa é a minha queixa, esse o meu rancor contra Deus: Que ele tenha posto em mim um tal fervor, um tal arrojo que me lançam na vida e que me opõem a ela; que me tenha infligido esta sede de viver, esta impaciência invencível... mais forte, mais invencível do que o meu desespero... Não, não, não é revolta, mas uma maldade feroz. Não quero viver segundo os princípios da minha natureza, e vivo... mas com a raiva no coração. Preciso de uma vingança!
ALYOCHA - Desejo-ta, Ivan, desejo-ta para muito breve, e que ela te consuma, como a semente morre na terra e se desfaz, a fim de dar todos os seus frutos... Tinhas razão, irmão: eu sou demasiado fraco, ai de mim! para aliviar os teus males. Deus se encarregará disso!...
Ivan baixa um pouco a cabeça ao ouvir as palavras de Alyocha. Smerdiakov atravessa lentamente o palco da esquerda para a direita.
IVAN (para Smerdiakov, subitamente enfurecido) - Deixarás de andar a espiar? (Para Alyocha) Estava outra vez a escutar à porta. (Empurrando Smerdiakov) - Vai-te embora! (Para Alyocha) Ele segue-me por toda a parte como a minha sombra.
ALYOCHA - Acalma-te.
IVAN - Já não posso suportar a sua familiaridade abjecta. Que tenho eu a ver com ele? Ah! Que semelhante patife possa inquietar-me a este ponto!... Dói-me a cabeça, Lyocha. Estou triste. Queria estar tão alegre, esta noite! Estou triste. Isto pesa-me. Esperava, ao ir-me embora, deixar ao menos um amigo. E afinal deste último encontro vais guardar uma recordação amarga. Não me tomes por um celerado...
Alyocha levantou-se e, inclinando-se sobre o irmão, abraça-o
ALYOCHA - Ivan, lembras-te da nossa infância?
IVAN - Lembro-me de tudo, Alyocha... E, agora, é preciso que nos separemos.
ALYOCHA - E os outros?... E Katerina?... Que vai ser deles?
IVAN - Faz com eu; não penses nisso.
ALYOCHA - Que é que tens? Parece que respiras com dificuldade?
IVAN - Isto passa já, ao ar livre.
ALYOCHA (abanando a cabeça) - Julgas-te desembaraçado dos teus pensamentos...
IVAN - Vou-te esclarecer, irmãozito.
Pega no candeeiro e conduz Alyocha até à porta.
ALYOCHA - Como o teu rosto está endurecido... e como eu o amo!
IVAN - Abracemo-nos mais uma vez... Aqui... Adeus.
Separam-se.




CENA XI
Ivan, Smerdiakov

Smerdiakov sentou-se num degrau da escada, acabrunhado, a cabeça entre as mãos e aí ficou enquanto decorria a parte final do diálogo entre os dois irmãos, ao fundo do teatro. Depois de deixar Alyocha, Ivan dispõe-se a subir novamente a escada, mas ao começar, na penumbra, encontra Smerdiakov à frente, obstruindo a passagem. Detém-se, parece hesitar, esperando que o lacaio se afaste. Este olha-o de cima com um sorriso vago.
IVAN - Deixa-me passar.
Sem se levantar, Smerdiakov desvia-se um pouco de forma que ao passar, Ivan, roça-se por ele. Ivan sobe mais dois degraus, depois, como involuntariamente, volta-se para Smerdiakov que o seguia com os olhos com o mesmo sorriso.
SMERDIAKOV (desviando os olhos, a meia-voz) - O senhor espanta-me.
IVAN (franzindo o sobrolho) - O que é que te espanta?
SMERDIAKOV - Porque não vai a Tchermachnia?
IVAN - Também tu me vais interrogar?
SMERDIAKOV - O próprio Fyodor Pavlovitch vos suplicou...
IVAN - Vai para o diabo! Sê mais claro.
SMERDIAKOV - Oh! Não é nada muito importante; foi só para dizer qualquer coisa. (Cala-se, suspira, põe-se a tremer) Estou certo, senhor, que terei em breve, talvez esta noite, uma longa, muito longa crise de epilepsia.
IVAN (voltando-se para ele) - Porquê, muita longa?
SMERDIAKOV - Sim, isto dura mais ou menos tempo, várias horas, um ou dois dias.
IVAN - Como podes tu prever que vais ter uma crise... esta noite? Quando tiveste a tua grande crise, tinhas caído do sótão?
SMERDIAKOV - Vou todos os dias ao sótão. E se não cair do sótão, cairei na cave aonde o meu serviço me obriga a ir a toda a hora.
IVAN (fazendo descê-lo à sua frente) - Vamos ver se te compreendo? Propões-te fingir esta noite um ataque de epilepsia e de fazer durá-lo três dias, hein? Estás a rir?
SMERDIAKOV - Admitamos que eu podia fingir um ataque... Não teria esse direito para proteger a minha existência ameaçada? Se Gruchenka vier a casa de Fyodor Pavlovitch, o vosso irmão não poderá mesmo assim acusar um homem doente de não o ter avisado.
IVAN - E porque me falas tu disso, a mim?
SMERDIAKOV - Para me aconselhar convosco, Ivan Fyodorovitch.
IVAN - Já te disse que Gruchenka não viria!
SMERDIAKOV - Mas se acontecer que Dmitry Fyodorovitch cometa alguma loucura contra o vosso pai, eu não quero passar por seu cúmplice!
IVAN - Mas porque é que te tomariam por seu cúmplice?
SMERDIAKOV - Por causa dos sinais.
IVAN - Quais sinais?
SMERDIAKOV - Uma vez que a situação vos interessa, vou confessar-vos, senhor, que no caso dela se decidir a uma visita nocturna, Gruchenka deverá bater nesta janela duas pancadas espaçadas, seguidas de três pancadas rápidas. Fyodor Pavlovitch julga que só nós conhecemos esses sinais. Gruchenka, ele e eu. Pois bem, também o vosso irmão os conhece!
IVAN - Como ousaste dizer-lhos?
SMERDIAKOV - Por medo, para o convencer da minha fidelidade.
IVAN - Se o vires utilizá-los, não o deixes.
SMERDIAKOV  E se tiver a minha crise?
IVAN - Previne Grigory. Que ele vigie!
SMERDIAKOV - Desde há três dias que ele dorme no pavilhão dos criados. Se Dmitry saltar a paliçada ou passar através da sebe, pode andar à volta da casa sem que Grigory dê por isso.
IVAN - Então, porque me aconselhas a ir a Tchermachnia?... Quero conhecer o teu pensamento...
SMERDIAKOV (sem fôlego) - Que importa para aqui o meu pensamento?
VOZ DE FYODOR (chamando, do quarto) - Smerdiakov!
SMERDIAKOV (levando Ivan para o fundo do teatro, e falando mais baixo, apressadamente) - Falo no vosso interesse. Sabeis bem como vos sou inteiramente dedicado... No vosso lugar, não correria o risco de ser metido em tal história... Compreendeis bastante bem as coisas para não compreenderdes isto, Ivan Fyodorovitch...
Ivan, sem poder impedir-se de ouvir até ao fim, tenta libertar-se várias vezes do lacaio, que o agarrava pelo braço. Agora, sobe a escada, automaticamente. Todo ele é agitado por uma espécie de riso que não ousa explodir. Chegado ao primeiro patamar, debruça-se sobre a balaustrada.
IVAN - Se queres saber, parto para Moscovo dentro de uma hora.
SMERDIAKOV (pálido) - É o melhor que podeis fazer...
VOZ DE FYODOR (chamando do quarto) - Smerdiakov!
IVAN (que puxou a sua mala para o patamar) Ajuda-me.
SMERDIAKOV - O senhor vosso pai chama-me.
IVAN (colocando-lhe a mala às costas) - Vamos! Leva-a para o jardim. Vou enviar o cocheiro...
Smerdiakov obedece. Ivan volta a entrar no quarto para buscar o sobretudo, depois desce. Ao pé da escada, parece hesitar um instante.
SMERDIAKOV (regressando) - Não ides despedir-vos do senhor vosso pai?
IVAN (olhando para o seu relógio e dirigindo-se para a porta) - O comboio de Moscovo parte à meia-noite e cinquenta. A estação fica longe. Mal tenho tempo para o apanhar... (Escutando) É ele que está a andar lá em cima?
SMERDIAKOV - Sim... Não tendes mais nada a dizer-me, senhor?
IVAN - E tu?
SMERDIAKOV - Já falei mais do que vós.
IVAN - Não acreditavas que eu partisse?...
SMERDIAKOV - Há razão para dizer que é sempre bom falar com um homem inteligente... Devo acompanhar-vos, senhor?
IVAN - Deixa-me!
Empurra-o e fecha a porta. Smerdiakov permanece encostado à porta, à escuta. Depois, olha para os vidros. Ouve-se Fyodor chamar de cima. Então, sem barulho, Smerdiakov apaga o candeeiro e sai furtivamente pela direita, fechando a porta atrás de si.


CENA XII
Fyodor

FYODOR (sai do seu quarto, com um castiçal aceso na mão. Fez a sua "toilette": roupão claro, lenço vermelho e peitilho de renda. Continua a chamar) Smerdiakov! (Consulta o relógio e diz) Eh! Eh! Meia-noite menos um quarto!... Estás aí, meu pequeno Smerdiakov? (Desde a escada. O seus gestos, à medida que o silêncio permanece, tornam-se mais febris. Anda da direita para a esquerda. Visivelmente, está possuído de inquietação. Abre a porta da esquerda, depois a da direita, chamando, praguejando. Finalmente, sobe vigorosamente ao quarto de Ivan, bate à porta, abre-a, entra, sai e murmura ao descer a escada.) Partiu... partiu?... Será que vão deixar-me? (Vai sair à procura de Smerdiakov quando, no silêncio, ouve nitidamente na janela da esquerda, soar o sinal: duas pancadas espaçadas, seguidas de três pancadas rápidas. Fyodor detém-se, altera a fisionomia, pousa o castiçal e aproxima-se da janela. A emoção estrangula-lhe a voz. Diz.) Gruchenka, és tu? (O sinal é repetido. Abre lentamente a janela e debruça-se para ver para fora, dizendo.) És tu? Aproxima-te! Onde estás, minha querida, meu anjo? (Há um silêncio de chumbo. Entre o primeiro e o segundo sinal, Smerdiakov entrou furtivamente pela direita, dissimulando-se atrás dos móveis. Observa Fyodor, espera, está torturado pela impaciência. Fyodor, à janela, continua a falar.) Grucha...Porque não queres responder-me? Estou só... Ah! Minha feiticeira, sei bem como te descobrir.  
Fyodor sai pela esquerda. Então, Smerdiakov, que estava acocorado atrás de uma poltrona, ergue-se e envolto na sombra atravessa rapidamente o salão e vai esconder-se atrás do pilar onde está pendurado o ícone.






 


QUARTO ACTO







Em Mokroye, de noite. O primeiro andar de uma estalagem. Um vasto gabinete, com as paredes forradas por um papel azul desbotado. Alcova, cujos cortinados, meio corridos, deixam ver uma cama baixa. Ao fundo, uma grande janela envidraçada, dando para uma varanda de madeira, que domina o pátio da estalagem. Em primeiro plano, à direita, encostado à parede, um divã baixo encimado por um espelho; uma mesa em frente ao divã; uma poltrona junto da mesa.


CENA I
Mussialovitch, Vrublenski, Gruchenka

Mussialovitch, meio estendido sobre o divã, fuma o seu cachimbo, largando espessas baforadas. Vrubleski, do outro lado da mesa, joga às cartas. Gruchenka está sentada ao lado de Mussialovitch, com um ar ausente. A mesa está iluminada por duas tochas. Pesado silêncio de tédio.

GRUCHENKA (desviando-se de Mussialovitch, que se inclina para ela) - Não poderia largar o seu cachimbo?
MUSSIALOVITCH (pousando o cachimbo) - Estava a admirar...
GRUCHENKA - Estou bela, não estou? É em sua honra.
MUSSIALOVITCH - Essa jóia não vale menos de mil rublos.
GRUCHENKA - Está a reconhecê-la. (Novamente silêncio. Gruchenka suspira. Levanta-se e atravessa o quarto espreguiçando-se. De longe, observa com enfado Mussialovitch que começa a beber, cochichando algo ao ouvido de Vrublenski, que aprova com a cabeça. Gruchenka, a meia-voz) Cinco anos da minha vida!
MUSSIALOVITCH (levantando-se) - Que estás tu a dizer, miúda?
GRUCHENKA - Digo: cinco anos...
MUSSIALOVITCH - (dirigindo-se-lhe) - Sabes, minha querida, que em cinco anos tornaste-te muito mais bela...
GRUCHENKA - Já não sou aquela pequena magrizela... Mudámos ambos. Você era tão carinhoso, tão alegre...
MUSSIALOVITCH (galante) - Mas...
GRUCHENKA (detendo-o, com a mão estendida) - Não me disse nada dos meus anéis. São do seu gosto?
MUSSIALOVITCH - Magníficos.
Beija-lhe a mão.
GRUCHENKA (mal se contendo) - Apalpe ainda o tecido do meu vestido. Veja quanto vale...
MUSSIALOVITCH - Não percebo...
GRUCHENKA (indo sentar-se à parte) - Outrora, cantava-me canções que me pareciam lindas. Já não sabe nenhuma?
MUSSIALOVITCH - Oh! Canções...  Não, palavra de honra.
GRUCHENKA - É pena. Gostaria tanto como dantes...
Ela trauteia uma ária mas interrompe-se logo para limpar furtivamente os olhos.
MUSSIALOVITCH - Estás triste?... (Inclinando-se) Minha bem-amada...
GRUCHENKA - Não me chame sua bem-amada.
MUSSIALOVITCH (com frieza) - Será preciso chamar-te "minha irmã"?
GRUCHENKA - Uma pessoa boa, uma pessoa pura chamou-me hoje "minha irmã". Fiquei corada. Mas isso remexeu-me o coração. Pela primeira vez tiveram piedade de mim, perdoaram-me, amaram-me apesar da minha vergonha, e não pela minha vergonha. E eu tive o desejo de arrancar esta "toilette", de entregar todo o dinheiro que possuo, e de passar a ser uma simples criada!
MUSSIALOVITCH - Vejamos, vejamos, Grucha, que significam todas essas divagações?...Estás um bocado fatigada, sem dúvida. Precisas de repousar. Anda. Vou levar-te...
Agarra-lhe o braço.
GRUCHENKA (libertando-se) - Deixe-me. É tarde. Já passa da uma da manhã. Vou-me embora...
MUSSIALOVITCH (olhando para Vrubleski, que contempla a cena) - Embora?... Não estás a pensar em partir a esta hora?
GRUCHENKA (pegando no casaco) - Agora mesmo.
MUSSIALOVITCH - O estalajadeiro deve estar a dormir.
GRUCHENKA (vestindo-se) - Eu vou acordá-lo.
MUSSIALOVITCH - Então porque é que vieste?
GRUCHENKA - Para o ver. Já o vi. Adeus.
MUSSIALOVITCH - Ah! É assim! Você acorreu à minha chamada...
GRUCHENKA - À tua chamada, sim, como um cão. Tu assobiavas, eu rastejei. Como é covarde o meu coração. Mussialovitch: há alguém que gosta de mim. Ficou desesperado por tua causa.
MUSSIALOVITCH (prestes a zangar-se) - Não te peço confidências...
Ouve-se no pátio um grande barulho de guizos.
GRUCHENKA - Uma carruagem. Estou com sorte. Depressa...
Dá alguns passos em direcção à porta da direita.
MUSSIALOVITCH (em frente da porta) - Mas... mas... minha pequena, não te vou deixar partir assim...
GRUCHENKA - Não me vais deixar partir?
MUSSIALOVITCH - Não!
GRUCHENKA - Não vai reter-me aqui à força? Se é de dinheiro que precisa, eu dou-lho...Largue-me ou grito... Chut!
Ouvem-se vozes lá fora. Através da janela envidraçada do fundo, vê-se o estalajadeiro, Trifon Borisitch, com uma lanterna na mão. Indica a Dmitry, que o segue, o gabinete onde estão os polacos. Dmitry aproxima-se por instantes da vidraça, depois dirige-se para a entrada.
VRUBLESKI - O que é este barulho?
MUSSIALOVITCH - Não sei, talvez possamos passar para o quarto ao lado...
Conduz Gruchenka em direcção à saída no momento em que Dmitry assoma ao limiar.


CENA II
Mussialovitch, Vrubleski, Gruchenka, Dmitry

À entrada de Dmitry, Gruchenka solta um grito lancinante.
DMITRY - Eu vou-me embora... Não receeis nada...
MUSSIALOVITCH - Quem é?
GRUCHENKA (num suspiro) - És tu!...
DMITRY - Por um momento... ao pé de si... apenas para vê-la. (Caminhando a passos largos para a mesa atrás da qual se barricaram os polacos) Sou um viajante, senhores... estou de passagem... Permitireis a um viajante que fique convosco até amanhã de manhã, pela última vez?
MUSSIALOVITCH - Senhor, nós estamos nesta estalagem, há aqui outros gabinetes.
DMITRY - Vou-lhe explicar tudo, senhor. Vim numa correria... para uma hora do meu último dia, neste quarto... e depois, ficam livres de mim. Está jurado...
MUSSIALOVITCH (para Gruchenka) - Conhece este senhor?
GRUCHENKA - Tenente Dmitry Fyodorovitch Karamazov... (Apresentando) Tenente Mussialovitch...
DMITRY (apertando a mão de Mussialovitch) Ah! Tenente... (Cumprimentando Vrubleski) Senhor?...
VRUBLESKI - Vrubleski.
DMITRY - Senhor Vrubleski... encantado!
GRUCHENKA - Vamos, fazem-me rir... Senta-te, Dmitry, e não fales mais.
MUSSIALOVITCH - Se a minha rainha o deseja...
DMITRY - Senhor, estou-lhe reconhecido... (O cocheiro Andrey, seguido por Trifon Borisitch, acaba de entrar, trazendo pacotes volumosos. Dmitry para o cocheiro) Põe isso aqui... Os mantimentos! Toma, Andrey... quinze rublos pela corrida e cinquenta de gorjeta, porque me conduziste muito bem. E lembra-te do senhor Karamazov que te agradece a tua bondade.
ANDREY - Senhor, faz-me medo. Contentava-me com cinco rublos.
DMITRY (atirando-lhe o dinheiro) - Vai para o diabo!
ANDREY (indo-se embora, baixo para Trifon) - Trifon Borisitch, és testemunha...
DMITRY (voltando para Mussialovitch) - Retome o seu cachimbo, senhor. Não quero incomodar ninguém. Este imbecil do Mitya não incomodará mais ninguém. Acabou-se...Vejam em mim um pobre, senhores, um mendigo. Perdi tudo. Tinha tudo, já não tenho nada...
Dizendo isto, tira da algibeira um maço de notas que coloca ao seu lado, sobre a mesa.
VRUBLESKI (pondo o dedo sobre o pacote de rublos) - Chama a isto nada? Pelo menos três mil rublos!
DMITRY (metendo o dinheiro na algibeira) - Não falo de dinheiro. Que o dinheiro vá para o diabo! Falo das mulheres.
Tirou da algibeira uma pistola que se prepara para carregar.
MUSSIALOVITCH - Está a carregar uma pistola, agora?
DMITRY - Meu Deus, sim, estou a carregar uma pistola.
MUSSIALOVITCH - E está a examinar a bala?
DMITRY - Ela interessa-me...
MUSSIALOVITCH - O que está a dizer?
DMITRY (voltando a meter a pistola na algibeira) - Coisas absurdas, meu caro Mussialovitch. Não há nada que não seja absurdo... (Bruscamente, para Vrubleski) O senhor poderia retirar-se?
VRUBLESKI (estupefacto) - Como assim?
DMITRY - Retirar-se, desaparecer, deixar o caminho livre ao ser que adora e àquele que odeia... e dizer-lhes: «Que Deus seja convosco, passem... e eu, chega!»
Agarra com as mãos as costas da cadeira e desata a soluçar.
GRUCHENKA - Eis como ele está... Porque choras? É uma vergonha... Se houvesse razão para isso...
DMITRY - Eu... Eu não choro. Vivo a minha alegria!
GRUCHENKA - É isso, sê alegre. Estou contente que tenhas vindo, muito contente, estás-me a ouvir, Mitya?...Eu quero que ele fique connosco e, se ele se for embora, eu irei também...
MUSSIALOVITCH - O que Grucha quer, faz lei. Senhor, sede bem-vindo entre nós.
DMITRY - Bebamos como amigos, senhores. Oh! Trifon, o champagne!
GRUCHENKA - Fizeste bem em trazer champagne. Mas o que trouxeste de melhor, foi a ti mesmo. Aborrecíamo-nos aqui!... Vieste fazer a festa, hein?
MUSSIALOVITCH (para Vrubleski) - Que horas são?
Vrubleski faz sinal que não sabe.
DMITRY - Não tem relógio. Duas horas e vinte.
MUSSIALOVITCH - É tarde para fazer a festa.
GRUCHENKA - Vão deitar-se, senhores polacos, mas ao menos deixem os outros divertir-se.
DMITRY (para Trifon que traz o champagne) - Já desembrulhaste os pacotes? Há "foie gras", peixe fumado, caviar... Ouve: teremos ciganas?
TRIFON - Não há boémias aqui. As autoridades expulsaram-nas. Mas restam-nos os músicos judeus. Quer que os vá procurar?
DMITRY - Vai procurá-los! Vai! Acorda toda a gente: homens e mulheres. Como da primeira vez. Julgo que eles se lembram. Haverá duzentos rublos para o coro. (Entregando-lhe duas notas) Toma lá.
MUSSIALOVITCH - Você trata as notas de banco como lixo, palavra de honra.
TRIFON - Por esse preço toda a aldeia se levantaria. Mas vai gastar tanto dinheiro com umas piolhosas e a queimar charutos a arruaceiros fedorentos? Vou tirar da cama as minhas próprias filhas, aos pontapés no cu, outra vez! Elas cantarão para si.
Sai.
DMITRY (acompanhando-o) - Hurrah! Quero barulho, um trovão, uma boda que será recordada durante muito tempo! (Batendo na algibeira) Há aqui dinheiro!
GRUCHENKA (que não o larga dos olhos, ao passar por trás diz-lhe em voz baixa) - A tua manga...
DMITRY - Hein?
GRUCHENKA (no mesmo tom) - Arregaça a manga.
DMITRY (olhando o punho da camisa e dissimulando-o imediatamente sob a manga) -  Vamos... (Regressando à mesa) Os senhores não bebem? (Para Vrubleski que percorre a sala de uma ponta à outra) Senhor... Afinal como é que ele se chama?
VRUBLESKI - Vrubleski,
DMITRY - Porque é que anda para aí de um lado para o outro, senhor Vrubleski? Pegue no seu copo... À Rússia, senhores, e sejamos irmãos!... (Bebem e pousam os copos) Agora, que vamos fazer enquanto esperamos as miúdas? (Reparando nas cartas sobre a mesa)  Eh, por Deus, um banco!
MUSSIALOVITCH - Às suas ordens, senhor.
DMITRY - Pois bem, comece. Fique com o banco, tome as cartas. Quero ganhar-lhe muito dinheiro, senhor.
VRUBLESKI - Aos vossos lugares...
DMITRY - Quanto tem no banco?
MUSSIALOVITCH - O que o senhor quiser: cem, duzentos rublos.
DMITRY - Vamos, dez rublos no valete.
VRUBLESKI (sorrindo, para Gruchenka) - E eu ponho um rublo na dama de copas.
Jogam.
DMITRY - Paroli!     
VRUBLESKI - Ponho outro rublo.
DMITRY - Perdido... Outro tanto no sete...Outra vez perdido!
GRUCHENKA (baixo, para Dmitry) - Basta!
DMITRY - No sete! No sete!
MUSSIALOVITCH - O senhor está a perder duzentos rublos. Quer dobrar?
DMITRY - Como? Já perdi duzentos rublos? Tanto pior: dobro!
GRUCHENKA (pondo as duas mãos sobre as cartas) - Já chega!     
DMITRY - Porquê?
GRUCHENKA - Porque sim. Não quero, não vais jogar mais, mais vale cuspir!
MUSSIALOVITCH - Está a brincar, minha querida?
GRUCHENKA - Ah! Cale-se... Que vergonha? Meu Deus, no que ele se tornou?
DMITRY (olhando para Gruchenka) - Que é?
GRUCHENKA - Duas vezes, vi-o trocar a carta.
MUSSIALOVITCH - Senhora, eu sou um cavalheiro!
GRUCHENKA - E eu que chorei durante cinco anos? Um ladrão!
VRUBLESKI - Não vou permitir...
GRUCHENKA - Também o outro... Sacuda a manga!
VRUBLESKI (batendo em retirada) - Sua puta!
Dmitry atira-se a ele, agarra-o e atira-o para a escada)
GRUCHENKA (batendo as mãos) - Como um pacote! Como um pacote!
MUSSIALOVITCH - Vim para perdoar, para desposar, mas encontro uma pessoa tão atrevida...
GRUCHENKA - Volta para donde vieste!
DMITRY (regressando) - Dei-lhe com força... (Ri. Para Mussialovitch) Por favor, senhor...
Indica-lhe a porta.
DMITRY - Nunca fui seu amante!
GRUCHENKA - Deixa-o.
DMITRY - Vá-se embora!
TRIFON (acorrendo ao barulho) - Paizinho, não recuperou o dinheiro que ele lhe roubou?
DMITRY - Que ele o guarde, para sua consolação.
GRUCHENKA - Bravo Mitya! Que bom rapaz!
TRIFON - Os músicos chegaram, meu senhor, vão subir... (Sai)


CENA III
Dmitry, Gruchenka

DMITRY (fecha a porta, depois volta-se para Gruchenka, esquivo e alegre) - Grucha, finalmente! Reencontro-te, malvada!
GRUCHENKA (abrindo-lhe os braços) - Libertas-me!
DMITRY (em voz baixa, torcendo as mãos) - Oh!...
GRUCHENKA - Se soubesses o medo que eu tive, quando entraste... Como é que me encontraste? Quem te disse?...
DMITRY - A tua criada. Explicou-me tudo.
GRUCHENKA - Fénia? Estiveste em minha casa?
DMITRY - Duas vezes. Da primeira vez, Fénia não quis dizer-me nada. Estava com medo. Ah! Se ela tivesse falado, na altura... isto não teria acontecido. Foi só depois, quando era demasiado tarde... Eu chorava enquanto te procurava, chorava como uma criança.
GRUCHENKA - Onde é que me procuraste?
DMITRY - Por toda a parte.
GRUCHENKA - Sim, eu sentia-te atrás de mim, no meu encalço...
DMITRY - Fui a casa de Katerina Ivanovna. Tinhas partido. Então, já não havia dúvidas... Smerdiakov dissera-me que o meu pai esperava por ti...
GRUCHENKA - Pensavas encontrar-me em casa de Fyodor Pavlovitch?
DMITRY - Perdoa-me... Sim... Vigiei a porta durante uma hora...
GRUCHENKA - E depois? Entraste?
DMITRY - Entrei.
GRUCHENKA - Dmitry... aqui, sobre a tua manga.. é sangue, não é?
DMITRY - Sangue... sangue humano... Meu Deus, porque foi vertido? (O coro das raparigas de Mokroye irrompe de fora) Ah! Os cantores! (Corre à varanda do fundo. É aclamado) Subam! Subam!


CENA IV
Dmitry, Gruchenka, Homens e Mulheres do Povo

DMITRY (acolhendo a multidão na varanda) - Bom dia!... Pois bem, sim, é Dmitry Karamazov, mais uma vez! Estão a reconhecer-me? Vim visitá-los, fazer a festa convosco. Há champagne, tomem... (Distribui as garrafas) cognac, rhum. Pensei em ti, Vassiliev... Bom dia Grigory. Aqui estão os charutos: se não os fumares, come-os! (Risos) E haverá punch... Trifon, faz arder o punch! Vamos levar comida a todos os quartos... Bom! Eis os músicos... (Entrada dos músicos judeus, transportando alaúdes, violinos e cítaras) Boris, entra! (Aperta-lhe as mãos) Bom dia, bom dia... Se há dinheiro? Ah! Ah! Trezentos rublos para os músicos, tomem, tomem... (Agita o maço dos rublos)
GRUCHENKA (baixo) - Mete o teu dinheiro na algibeira.
DMITRY (baixo) - Sim, é vergonhoso. Tenho vergonha, Grucha: Mas a alegria de estar aqui!
GRUCHENKA - Diverte-te, vá...
DMITRY - Amanhã vou-me embora, saberei ir-me embora... Desembrulhem o que resta. Há bombons, açúcar cristalizado... Eh, músicos, estão a dormir? (Canta a ária que quer que eles toquem) Vão dançar, fazer de loucos. As raparigas com os rapazes, vamos (Para duas raparigas que entram) Eh! Arina, Stepanida! Mostrai-vos, minhas beldades, para que vos vejam! (Para Gruchenka) Não é que são bonitas?
GRUCHENKA - Vai beijá-las, doido! Os doidos como tu agradam-me...
Dmitry agarra uma a uma as duas raparigas e beija-as. Os violinos tocam. Esboça um passo de dança. A chama do punch ilumina o pátio. Gritam todos: «O punch! Olhem o punch!...» E precipitam-se para a escada.
DMITRY (misturando-se na multidão que o acompanha) - Vamos beber! E haja alegria e barulho. Quero que estejam todos bêbedos quando chegar a madrugada; que isto dure até amanhã de manhã! (Regressa ao quarto, titubeante, e detém-se no limiar, murmurando) Até amanhã de manhã... e tudo estará acabado...
GRUCHENKA - Mitya! Regressa... Estás a esquecer-te de mim! Vejo que estás triste. Porquê? Ouves a música? ... Oh! Mitya, Mitya, dizer que eu o amei tanto durante cinco anos!... E ao voltar, perguntava-me como nos enfrentaríamos, qual seria a nossa primeira palavra. E quando o vi... pareceu-me que um balde de lixo me caíra sobre a cabeça... Não falarei mais disto, Mitya; não te vás embora, meu pombo, tenho alguma coisa a dizer-te. Escuta: eu amo alguém aqui... Diz-me quem é...
DMITRY (debatendo-se contra a sua felicidade) - Não.
GRUCHENKA - Alguém entrou mesmo agora aqui, e a alegria acompanhava-o! E o meu coração disse-me: «Pateta! Eis aquele que tu amas!... » Mitya, ele só pensa em mim... Mitya, eu amo alguém aqui. Sabes quem é? Vou dizer-to...
DMITRY (tapando os ouvidos) - Não, não. Não o digas! Já não poderia... Tudo o que fiz não contava, tudo o que fiz estava certo, enquanto julguei ter-te perdido... Compreendes?... Quando entrei aqui, depois desta correria... oh! O ar fresco no meu rosto, a noite cheia de estrelas...Sim, a alegria acompanhava-me! Quer dizer... a  minha alma estava dilacerada, mas eu estava... quase contente, satisfeito, sim... porque tudo estava acabado... voltar a ver-te, apenas voltar a ver-te, e depois acabar de vez, eu estava resolvido! Não sentia por ti mais do que um amor terno, um amor completamente novo, cheio de abnegação... Não, nenhum ciúme, nenhum ódio contra esse homem. Fora o teu primeiro amante. Esperaste por ele, amaste-o durante cinco anos. Julgava que o amavas ainda. Julgava-te feliz, Grucha. Já não tinha necessidade da vida. A vida, para mim, já não tinha qualquer sentido, qualquer preço. Ah! Eu caminhava para a morte. E agora, agora... eis que me abres os teus braços...
GRUCHENKA (abraçando-o) - Mitya, eu amo-te! Vais perodoar-me os teus sofrimentos, meu Mitya? Ama-me!... Eu hoje já não sou a mesma, eu compreendi... Ninguém me tinha amado como tu me amas...
DMITRY - Mas o sangue!...
GRUCHENKA - Beija-me. Não me ouças... Ele beija-me, e depois olha-me e escuta-me. Porque me escutas? Beija-me! Com mais força. Com mais força. É assim. Quando se ama!
DMITRY (com força) - Tanto pior!
GRUCHENKA - Sim: tanto pior!
DMITRY - Por este minuto, eu teria dado toda a minha vida. Não quero pensar em mais nada, Já não tenho pensamentos... Grucha, sou feliz!
GRUCHENKA - Bebamos!
Ela enche os copos.
DMITRY - Ah! Que o meu coração seja bastante forte para suportar tanta alegria! Que a noite seja ainda bastante longa para que, de madrugada, possa ser finalmente mitigada esta sede de alegria!
GRUCHENKA (caída sobre uma poltrona, estendendo-lhe o copo) Mitya, estou embriagada e tu não estás...
DMITRY - Estou embriagado de outra coisa que não do vinho!
GRUCHENKA - Ainda dançam em baixo.
DMITRY - Vem vê-los.
GRUCHENKA - Também quero dançar (Estão em frente da janela aberta) - Ah! A noite... O céu já clareia... (Ela desequilibra-se. Dmitry toma-a nos seus braços) Leva-me, sim... (Dmitry põe-na em cima da cama. Os seus beijos tornam-se mais insistentes) Não, não... não me toques, ainda não. Poupa-me Mitya, suplico-te... Meu Mitya, sim, sou tua, mas não aqui, ao pé desta gente...
DMITRY (de joelhos)- Obedeço. Nem mesmo o pensamento.
GRUCHENKA - Eu sei... tu és um animal feroz, mas o teu coração é  nobre, o teu coração é doce. Vê lá, é a nossa última loucura, esta noite... É preciso que daqui em diante tudo se passe de maneira honesta, sempre honestamente. Não sou a tua amante, sou a tua mulher. Alyocha disse-me hoje palavras que eu nunca esquecerei durante toda a minha vida... Fica aqui. Não te mexas (A sua voz vai enfraquecendo) Sou a tua mulher. Vais levar-me, para longe... Um trenó espera por nós, Mitya... Ah! finalmente partimos... como vamos depressa...está tudo branco... há neve...gosto tanto da neve... Quase não se ouve mais nada. Parece que não estamos sobre a terra... Estou bem, estou cansada... Mitya... Mityengka... (Adormece. Dmitry, durante um instante, contempla-a a dormir. Depois, levanta-se. O seu olhar vagueia em volta do quarto. As velas vão-se consumindo. Aproxima-se da janela. Os cantares cessaram. Reina um grande silêncio. Nasce o dia. Dmitry emociona-se mas recompõe-se pouco a pouco. Então, tira bruscamente uma pistola da algibeira e vem armá-la à luz de uma tocha. Aproxima-se novamente de Gruchenka adormecida e contempla-a. Depois, ergue lentamente a pistola até à testa. Gruchenka acorda) Mitya, tenho frio... onde estás?  Que estás a fazer?
Salta da cama e vai ter com Dmitry.
DMITRY - Já é dia... Não posso continuar a viver. Jurei-o a mim mesmo!
GRUCHENKA (arrancando-lhe a pistola) - Porque é que queres morrer? Tens medo?
DMITRY - Não tenho medo. Tenho vergonha, vergonha!
GRUCHENKA - Por causa do sangue?
DMITRY - O sangue não é nada... mas o dinheiro!
GRUCHENKA - Que dinheiro?
DMITRY - O dinheiro de Katerina que eu trazia há oito dias ao peito... Atirei-o a essas raparigas, a esses músicos... sou um ladrão!
GRUCHENKA - Nós vamos devolver-lhe o dinheiro! Eu dou-te o que for preciso. Agora tudo o que é meu é teu. Pediremos perdão à menina, e depois partiremos. Devolve-lhe o dinheiro, mas não ames outra que não eu!... Se tu a amas, eu mato-a... furo-lhe os olhos!
DMITRY - Amo-te só a ti! Amar-te-ei na Sibéria...
GRUCHENKA - Trabalharemos, faremos penitência. Deus nos perdoará. Ainda sei rezar a Deus... Alyocha diz que é preciso trabalhar. Trabalharei para ti, ser-te-ei fiel. serei a tua escrava.
DMITRY - Sim. Podemos viver na Sibéria. Lá, pode-se amar e sofrer. Não tenho medo. Lá, minha amada, sob a terra, no fundo das minas, no sofrimento, cantaremos um hino ao deus da alegria!
GRUCHENKA - Ah! Mitya, vamos viver...  Por muito mau que seja, é tão bom viver!...
DMITRY - Ao pé de ti!
Aperta-a contra o coração. Silêncio.
GRUCHENKA (em sobressalto, com a voz embargada) - Quem é que nos está a observar, ali?
Dmitry segue a direcção do seu olhar e, voltando-se, vê um homem em pé no limiar, à direita. Precipita-se para ele.
O CHEFE DA POLÍCIA (em voz baixa e firme) - Venha connosco, por favor.
Dmitry dá um passo. O Chefe da Polícia afasta-se deixando então ver pela porta aberta o terraço repleto de uma multidão de mujiques e soldados.
DMITRY (gritando) - Ah!... Compreendo!
Afunda-se num assento.
O CHEFE DA POLÍCIA - Senhor tenente na reserva Karamazov, tenho a comunicar-lhe que é acusado da morte de seu pai, Fyodor Pavlovitch Karamazov, assassinado esta noite.
DMITRY (de um salto) - Nunca! Não sou culpado! Desse sangue, não! Desse sangue, não sou culpado! Não derramei o sangue do meu pai!
GRUCHENKA - Graças a Deus!
DMITRY - Sim, quis matá-lo. Mas não o matei. Não fui eu! Não fui eu!
GRUCHENKA - Ele diz a verdade... acreditai-o... (De joelhos, frente a Dmitry, apertando os seus joelhos). Eu acredito em ti, eu, eu acredito!
O Chefe da Polícia faz um sinal. Os soldados entram no quarto.



 



QUINTO ACTO



Em casa de Fyodor Pavlovitch. Salão. Mesmo cenário do Terceiro Acto. Dois meses depois. É o começo do Inverno. Durante a manhã.


CENA I
Grigory, Smerdiakov

Grigory entra primeiro. Tem a cabeça envolvida por uma ligadura.


GRIGORY -(voltando para trás até à porta) - Eh! Então não entras?
Smerdiakov entra com hesitação imperceptível. Tem na mão um pacote com roupa. O seu rosto está pálido e devastado. Desce à frente em silêncio. Grigory senta-se, com a cabeça entre as mãos.
SMERDIAKOV - Continua a sofrer?
GRIGORY - Foi um golpe terrível... E tu, como estás mudado!
SMERDIAKOV - Desde há dois meses que tenho crises umas atrás das outras. No hospital, pensavam que não conseguiria safar-me. (Silêncio novamente. Smerdiakov olha à sua volta) Foi aqui que o encontraram?
GRIGORY - Ali, em frente do ícone, estendido.
SMERDIAKOV - Morto?
GRIGORY - Sim. (Silêncio) Dizem que depois da sua condenação Dmitry Fyodorovitch tornou-se um outro homem, que chora os seus pecados.
SMERDIAKOV - Vinte anos de Sibéria, é difícil.
GRIGORY - O infeliz!... Eu que o lavava na banheira pequena quando era criança...ele ousou! Ah! Quando reparei que a janela do senhor estava toda aberta, fui imediatamente assaltado por um pressentimento. Tinha acordado bruscamente por volta da meia-noite e, ao lembrar-me de que não tinha fechado à chave a grade do jardim, saí. Nesse instante, vi uma sombra a cerca de quarenta passos, que desaparecia rapidamente. Lancei-me no encalço e cheguei à paliçada no preciso momento em que Dmitry Fyodorovitch a escalava. Ah! Reconheci-o muito bem! Agarrei-o por uma perna gritando... Mas ele desfechou-me na cabeça um pontapé com tanta força que larguei a presa e caí por terra inanimado. Algumas horas mais tarde, prenderam-no em Mokroye.
SMERDIAKOV - Quem terá dado o alarme?
GRIGORY - A minha mulher. Não me vendo regressar, saiu por sua vez; gritou; as pessoas acorreram. Foi então que descobriram o cadáver do patrão... E a ti, só no dia seguinte te encontraram desmaiado na cave, com espuma nos lábios, atacado por uma crise de epilepsia.
SMERDIAKOV - Foi o que me disseram no hospital. Já não me lembro de nada, de nada.
GRIGORY (de mãos postas) - Que infelicidade, meu Deus!
SMERDIAKOV - E Ivan?
GRIGORY - Ivan Fyodorovitch só regressou de  Moscovo dois dias depois do enterro. Segundo o processo, não se mexeu daqui.
SMERDIAKOV - E... que diz ele?
GRIGORY - De quê?
SMERDIAKOV - Da condenação.
GRIGORY - Nada. Continua sombrio, fechado sobre si mesmo. Não consegue suportar ninguém. Alyocha raramente vem. Mal deixa a prisão. Só Katerina Ivanovna...
SMRDIAKOV - Vêem-se muitas vezes?
GRIGORY - Muitas vezes.
SMERDIAKOV - Aqui?
GRIGORY - Sim.
SMERDIAKOV (entre dentes) - Esta tragédia sinistra poderia acabar muito bem com um casamento. (Silêncio) Ele nunca perguntou por mim?
GRIGORY - Quem?
SMERDIAKOV - Ivan.
GRIGORY - Nunca.
SMERDIAKOV - Talvez julgue que morri.




CENA II
Ivan, Smerdiakov

Ivan entra pelo fundo. Não diz nada. Grigory hesita em dirigir-lhe a palavra, mas o ar carregado de Ivan tira-lhe o desejo. Há um longo silêncio. Sentimos que Ivan não consegue falar  e que Smerdiakov não se pode ir embora.

SMERDIAKOV - Deixei o hospital esta manhã.
IVAN - Vais retomar o teu serviço aqui?
SMERDIAKOV - É a minha intenção.
Grigory sai pela direita. Novamente silêncio.
IVAN - Então sabias?
SMERDIAKOV - Julgava que também estáveis doente. Porque é que os vossos olhos estão tão amarelos?
IVAN - Deixa a minha saúde e responde à minha pergunta.
SMERDIAKOV - Como não saberia? Tudo estava antecipadamente preparado.
IVAN - Mesmo a tua crise?
SMERDIAKOV - Podeis pedir esclarecimentos sobre a minha doença aos médicos do hospital. Que quereis que vos diga?
IVAN - Tinhas indicado exactamente a cave.
SMERDIAKOV - Porque tinha medo nessa cave em que me sentia longe de qualquer socorro. Dizia para mim: «Isto vai chegar. Vou cair?» E foi efectivamente por causa desse pensamento que o espasmo se apoderou de mim e eu caí. Disse-o aos médicos e ao juiz de instrução. Eles foram da minha opinião.
IVAN - Ah!
SMERDIAKOV - Porque haveria de mentir? Tinha alguma coisa a temer?
IVAN - Tudo isso não explica a tua insistência em me ver partir para Tchermachnia!
SMERDIAKOV - Eu sentia-me infeliz. A casa não era segura. Pretendi que vos afastásseis.
IVAN - Querias afastar-me do crime?
SMERDIAKOV - Não o adivinhastes?
IVAN - Teria ficado!
SMERDIAKOV - Julguei que tivésseis medo e que quisésseis pôr-vos a salvo.
IVAN - Achas-me tão covarde como tu?
SMERDIAKOV - Perdoai-me. Assim julgava.
IVAN (depois de uma hesitação) - Dmitry acusou-te formalmente perante os juízes.
SMERDIAKOV - Era tudo o que podia dizer com as acusações que pesavam sobre ele. Procurava escapar-se. Como vistes, não o conseguiu (Ivan cala-se. Smerdiakov aproxima-se dele e toca-lhe no braço) Vejamos, Ivan Fyodorovitch, se eu tivesse más intenções quanto ao pai, julgáveis que eu fosse tão estúpido que vos contasse tudo quanto vos contei?
IVAN - Não estou a acusar-te. Seria ridículo acusar-te.
SMERDIAKOV - Tenho confiança em vós como em Deus... Posso subir ao meu quarto?
IVAN - Vai.
Smerdiakov sobe ao andar superior. Ivan segue-o com os olhos. Ao voltar-se, repara em Katerina Ivanovna no limiar da esquerda. Corre para ela e recebe-a  nos seus braços.


CENA III
Ivan, Katerina

KATERINA (afastando-se um pouco) - Estás com febre... Estás a escaldar.
IVAN (voltando a agarrá-la) - Todos os dias eu me perguntava se virias. Vieste, mas para me resistir.
KATERINA - É preciso esperar.
IVAN - O quê?
KATERINA - Deixa-me acalmar... Sê mais paciente... Uma vez que me tens nos teus braços... Porque eu sou feliz nos teus braços!
Deixa cair a cabeça sobre o ombro de Ivan e chora.
IVAN - Oh!... Sofres, não é verdade?
KATERINA - Não duvides do meu amor, Ivan.
IVAN - Conheci-te mais alegre, quando resistias.
KATERINA - Nada mais tenho do que o meu amor, Ivan! Tu desapossaste-me do resto...
Abre-se a porta da esquerda. Gruchenka aparece.


CENA IV
Ivan, Katerina, Gruchenka

IVAN (voltando-se, brutalmente) - O que é isto?
GRUCHENKA (dando um passo) - Alyocha não está aqui? Devia vir quando saísse da prisão. Vou sentar-me lá fora e esperar por ele. (Vai para sair)
KATERINA (dando um passo em direcção a ela) - Senhora... Vê algumas vezes Dmitry na prisão?
GRUCHENKA - Todos os dias.
KATERINA - Ele já sabe que ... o seu irmão e eu estamos resolvidos a facilitar a sua evasão?
GRUCHENKA - Como? Querem...
IVAN - Assim é preciso. Está tudo pronto. Tenho o dinheiro. O chefe do turno prometeu a sua ajuda.
GRUCHENKA - E Dmitry aceita?
IVAN - Alyocha ficou encarregado de o sondar.
KATERINA - E a sua resposta?
IVAN - Estou à espera dela.
Gruchenka finge que vai retirar-se.
KATERINA - Senhora... Mesmo hoje o viu?
GRUCHENKA - Esta manhã.
KATERINA - Que faz ele?
GRUCHENKA - Fala! Fala!
KATERINA - E o que diz?
GRUCHENKA - Muitas vezes coisas que eu não compreendo, mas tão belas que não posso impedir-me de chorar.
KATERINA - Está triste?
GRUCHENKA - Não. Pelo contrário, alegre. Mas quando se põe a caminhar na cela remexendo os cabelos, vejo muito bem que alguma coisa não bate certo.
KATERINA - Sim?...
GRUCHENKA - Um segredo. O imbecil! Eu conheço o seu segredo... (Baixando os olhos) Ele não gosta de mim! Ele pensa em si, Katerina. Ele fala-me de si!
KATERINA (com uma exaltação surda) - Sim. Eu feri a sua alma, ele feriu a minha. E para toda a vida!
GRUCHENKA - Ele repete que se recusar vê-lo, então será para sempre infeliz. Está a ouvir? Ousou dizer-me isso, a mim! (Mais baixo) É preciso que vá...
KATERINA - Não posso. Ele olharia para mim. Não...
GRUCHENKA - Não tem piedade?
KATERINA - Gruchenka, da minha parte... Quererá beijar-lhe a mão? Diga-lhe que o nosso amor está morto, mas que ele me permanece cruelmente querido. Oh! Que ele não deixe de me amar! Diga-lhe isso... (Gruchenka, dobrada, faz não com a cabeça. Com uma reverência) Diga-lhe isso a ele, e... perdoe-me...
GRUCHENKA - Somos ambas cruéis, mãezinha. Nem você tem necessidade do meu perdão nem eu do seu. Mas salve-o, e vou venerá-la durante toda a minha vida. (Alyocha entra pela esquerda)


CENA V
Ivan, Katerina, Gruchenka, Alyocha

IVAN (para Alyocha) - Então?
ALYOCHA - Ele recusa. O combóio dos deportados parte dentro de uma hora para a Sibéria.
IVAN - Porque é que ele recusa?
ALYOCHA - «Oferecem-me a liberdade sem acreditarem na minha inocência. Isso eu não quero!» Foi a sua resposta. Disse-me ainda: «Não quero furtar-me à purificação». Está cheio de força e de alegria.
IVAN - Foste tu que o dissuadiste de aceitar.
ALYOCHA - Não, irmão. Mas Deus visitou-o e ele está sequioso de sofrimento. Quer ir para o presídio para a salvação de todos... Pobre Mitya! Sempre temerário... Sem dúvida que não está ainda pronto para tal martírio. Já na prisão, ficava revoltado quando os guardas o tratavam por tu. Lá, se alguém lhe tocar, ele não aceitará a ofensa. Será então que ele matará.
IVAN - Disseste: «Será então que ele matará?»
ALYOCHA - Sim
IVAN - Como se ele não tivesse já matado?
GRUCHENKA - Não foi ele!
ALYOCHA - Dmitry não matou o nosso pai. Não, Ivan.
IVAN - Tens provas?
ALYOCHA - A palavra que ele me deu. Não posso duvidar dele.
GRUCHENKA - Dmitry é incapaz de mentir.
IVAN - É tudo o que opões à sentença dos juízes?
ALYOCHA - Eles não podiam deixar de condená-lo. Tudo o incriminava. Tudo o que se pode explicar se explicava contra ele: mais do que presunções, quase provas.
KATERINA - O seu ódio pelo pai.
ALYOCHA - Ele não era o único a odiá-lo.
IVAN - Ele não deixava de proclamar o seu desejo de matá-lo.
ALYOCHA - Os factos são gritantes. Mas, quanto aos sentimentos, é outra coisa.
IVAN - Na manhã do crime, no convento, ele ter-lhe-ia batido se eu não me interpusesse. Às oito da noite, deixou Katerina como um louco, dirigindo-se para casa do pai.
ALYOCHA - Porque ele pensava encontrar lá Gruchenka. Mas ela não estava lá.
IVAN - Vejamos, vejamos... Uma hora depois, entrou aqui, rebuscou a casa e foi emboscar-se atrás da sebe. Desde esse momento ficou à espreita. Na própria noite em que encontraram o pai assassinado Grigory quase o agarrou no jardim. Dmitry confessa que bateu em Grigory e tu negas que à mesma hora, no mesmo sítio, a mesma mão tenha cometido esse duplo assassinato!
ALYOCHA - Para quem, de entre nós, Ivan, estás a refazer esse requisitório?  Gostaria de te ver acolher, a favor do nosso irmão, a mínima presunção de inocência... Esqueceste contudo, a acusação de roubo que pesa também sobre Dmitry. É porque ela te parece menos fundamentada? Fyodor Pavlovitch guardava em casa três mil rublos, escondidos num envelope. Depois do crime, foi impossível encontrar o envelope ou o dinheiro.
IVAN - E os três mil rublos que Dmitry se vangloriava de ter gasto em Mokroye?
ALYOCHA - Sabes tão bem como eu donde vinham esses três mil rublos. Desde há três dias que ele os trazia ao peito, cosidos num lenço.
KATERINA - Eu disse aos juízes que eles podiam corresponder à importância que eu entregara nas suas mãos e de que ele se tinha apropriado.
ALYOCHA - Sim, disse-o com lealdade, para desculpá-lo.
GRUCHENKA - É o que Dmitry chama a sua traição!
ALYOCHA - Infelizmente! O meu irmão sentiu-se menos atingido na sua honra por ter assassinado do que por ter cometido essa deselegância. Ele considerava-a como o pior dos seus crimes.
KATERINA - A mais pungente das suas humilhações!
ALYOCHA - Até à audiência ele recusou explicar-se sobre esse ponto. Depois da sua revelação, não viu, Katerina, que ele deixou de defender-se e mesmo que passou a inculpar-se?
KATERINA - Sim, para ter a última palavra, para me deixar o remorso de o ter perdido, para me esmagar com a sua superioridade!
GRUCHENKA - Vi-a empalidecer nesse instante! Ah! A réplica não se fez esperar. Com que fúria você gritou no tribunal que Dmitry, na noite do crime, lhe declarara: «Devolver-te-ei os teus três mil rublos, nem que tenha de ir para a Sibéria!...» Se a mínima dúvida pudesse subsistir no espírito dos jurados, esse argumento era decisivo. Estava acabado...
ALYOCHA - O quê? Ainda lutavam!
GRUCHENKA - Foi a menina que fez tudo isto. Foi ela que o perdeu. Ela!... Precisava da sua condenação!
IVAN - Enquanto não me trouxerem provas...
ALYOCHA - Não discutamos mais sobre as provas. Para quê? Dmitry parte dentro de uma hora para a Sibéria... Que a expiação seja justa para ele, ainda que a sentença seja injusta, admito-o. Só a infelicidade devia dominá-lo. Poderia ter matado. Mas, no momento supremo, Deus viu-o, Deus tocou essa alma de criança. Ele fugiu. Não foi ele!
IVAN - Então, quem? (Aproximando-se de Alyocha, em voz mais baixa) Em tua opinião, quem é pois o assassino?
ALYOCHA (suavemente) - Tu mesmo o sabes.
IVAN - O quê?
ALYOCHA - Sabes bem quem foi.
IVAN - Espero que tu o digas.
ALYOCHA - Não foste tu... É tudo o que posso dizer.
IVAN (agarrando-o pela manga) - Vamos, vamos, explica-te...
ALYOCHA - Ivan, disseste mais do que uma vez que foras tu o assassino.
IVAN (desnorteado) - Mas quando? Eu estava em Moscovo. Não falei de nada.
ALYOCHA - Disseste-o muitas vezes, quando estavas sozinho, durante estes dois meses terríveis. Acusaste-te e confessaste... Mas não és tu o assassino; enganas-te, ouviste? Não foste tu. Deus inspirou-me que tu dissesse, quando deverias odiar-me para sempre...
IVAN - Aleksey Fyodorovitch, sabes que não gosto dos videntes, nem dos embaixadores divinos. A partir de agora vou romper definitivamente contigo e peço-te que me deixes imediatamente!
ALYOCHA - Meu irmão! Se te acontecer hoje alguma coisa, lembra-te de mim, antes de tudo!... Dmitry disse-me esta manhã: «Ivan é superior a todos nós, é ele que deve viver!...» Lembra-te também destas palavras.
IVAN - Partes?... Para onde vais, Lyocha?
ALYOCHA - Lá para baixo, para as minas. Acompanharei Dmitry passo a passo. Os seus males são aqueles que é possível partilhar. E, se ele não puder suportar até ao fim a sua pena, terá junto de si alguém...que poderá responder por ele. Vamos...
Gruchenka, que estava sentada, levanta-se e junta-se a ele com entusiasmo.
KATERINA - E Gruchenka?
ALYOCHA (agarrando a mão de Gruchenka) - Gruchenka fará parte da viagem, ela também. Aceitou a sua cruz. Sacrificar-nos-emos juntos.
KATERINA - Gruchenka, não!
ALYOCHA (com um aceno de mão) - Adeus...
Sai, conduzindo Gruchenka pela mão.
KATERINA (lançando-se atrás deles) - Não...
IVAN (gritando) - Katerina!
Katerina detém-se, de pé, encostada à porta, mordendo os punhos e seguindo com o olhar Alyocha e Gruchenka que se afastam no jardim.


CENA VI
Ivan, Katerina

IVAN (perto de Katerina, por cima do seu ombro) - Queres segui-los?
KATERINA (voltando-se e enlaçando com os seus braços o pescoço de Ivan) - Vês bem como te obedeço... (Levantando a cabeça) - Mas não ouviste o que eles acabaram de dizer? Fui eu que o traí, fui eu que o perdi. Traí-me a mim mesma!
IVAN (com desânimo) - Ainda pertences a esse assassino.
KATERINA - Como tu falas dele!
IVAN (com súbita violência, transtornado) - Tu, tu também não acreditas que foi ele o assassino?... Não acreditas que foi ele o assassino!... Ouves o que dizem os outros... Enquanto eu falo, tu dizes para ti mesma: «Quem?» Caminhas na rua e tens sonhos... e pensas: «Talvez não seja um sonho...» Tu dormes, e tu vês... Tu acordas e escutas uma voz que te diz: «Quem, então quem, quem foi?» Acabei agora de dizê-lo... Tu estavas lá? Eu perguntei: «Então quem?»
KATERINA - Que tens, Ivan?
IVAN - Então, então... se não foi Dmitry que o matou...
Cala-se
KATERINA - Em que estás a pensar?
IVAN - Não penso em nada. Não penso... Há alguma coisa na minha cabeça... que pensa. Não sabes o que é? Tu não sabes o que são os pensamentos dos homens: como a embriaguez do vinho, como o desejo do amor... nada os pode deter... O homem que pensa, o que é que ele não pode pensar?...
KATERINA - Estás a delirar!
IVAN (fazendo um esforço para se dominar) - Não, não, não estou a delirar. Continua ao pé de mim... Eu sei onde estou. Eu vejo os objectos. Eu ouço...Estás a ouvi-lo, lá em cima? Ele instalou-se.
KATERINA - Ele quem?
IVAN - Smerdiakov. Regressou esta manhã. Conversámos os dois. Vou dar-lhe uma palavra. Deixa-nos Katerina. Por um instante. Entra aqui. Estou bem. Vai. Chamar-te-ei. Vai, vai, vai. Em breve farei...
Empurra Katerina, que sai pelo fundo.


CENA VII
Ivan, Smerdiakov

Ivan sobe ao quarto de Smerdiakov. A porta está fechada. Ele sacode-a.

IVAN (a meia-voz) - Abre, Smerdiakov, Sou eu.
VOZ DE SMERDIAKOV (do quarto) - Que mais quereis?
IVAN (elevando a voz) - Abre!
SMERDIAKOV (entreabrindo a porta) Estou doente, senhor. Deixai-me descansar. Por favor.
IVAN (agarrando-o) - Não te deixarei. Vais falar (Empurra-o até à escada) Desce... Vais falar. Vou forçar-te a isso.
SMERDIAKOV (descendo à frente de Ivan) - Porque me atormentais assim?
IVAN - Quero saber porque desejavas a minha partida?
SMERDIAKOV - Outra vez essa pergunta! Para um homem inteligente, supus que a questão estiva esclarecida.
IVAN - Não te admito que brinques comigo! Que vil subentendido te permitiste ainda agora? Sim. Quando eu disse que seria ridículo acusá-lo, porque me respondeste: «Tenho confiança em vós como em Deus»?
SMERDIAKOV - Desejais portanto que falemos francamente?... Uma explicação?
IVAN - Sou porventura teu cúmplice para te recear?
SMERDIAKOV - Não tendes mais a recear de mim que eu de vós. Se viésseis a acusar-me e, por meu lado, eu revelasse a conversa que aqui tivemos, uma hora antes do crime, toda a gente suspeitaria dos vossos maus sentimentos, e talvez... de outra coisa.
IVAN - O que é essa "outra coisa"? Fala, besta mal-cheirosa!
SMERDIAKOV - Mas... mas... se por acaso tivésseis desejado a morte do vosso pai... (Ivan bate com toda a força no ombro de Smerdiakov que cambaleia e geme) É uma vergonha o senhor bater num homem fraco. (Soluça no lenço).
IVAN - Basta! Chega! Não me faças perder a paciência!... Acreditas que eu estivesse de acordo com Dmitry para fazer tal coisa?
SMERDIAKOV - Não conhecia os vossos sentimentos. Foi para os conhecer que vos detive na escada.
IVAN - O quê? Conhecer o quê?
SMERDIAKOV - Precisamente se desejáveis que o vosso pai fosse morto.
IVAN - Por Dmitry?
SMERDIAKOV - Naturalmente. Dmitry como assassino perdia todos os seus direitos. A sua parte na herança reverteria para vós, o que daria sessenta mil rublos. E já não falo dos vossos outros desejos.
IVAN - Escuta, miserável. Se tivesse de contar com alguém seria contigo, nunca com Dmitry. Da tua parte podia esperar-se qualquer imundície...
SMERDIAKOV - Estais a ver bem... Estais a ver bem... E, apesar desse pressentimento, partistes.
IVAN - Não tive qualquer pressentimento. Não, juro que não!
SMERDIAKOV - Não? Não esperáveis nada de mim?
IVAN - Nada!
SMERDIAKOV - Como? Recusastes ir a Tchermachnia, apesar das súplicas do vosso pai. E de repente, seguindo o meu conselho, depois de tudo o que eu vos tinha dito, anunciastes a vossa partida para Moscovo!
IVAN - Nunca acreditei que tal coisa fosse possível.
SMERDIAKOV - Mas tínheis esse pensamento, lá isso tínheis... Será que um bom filho não me teria entregue imediatamente à polícia e mandado açoitar pelas minhas palavras? Mas não... vós ouvistes-me com condescendência, fizestes gentilmente tudo o que vos disse... Que poderia eu concluir?
IVAN - Basta! Não tenho medo de ti...nunca tive tal pensamento!
SMERDIAKOV (aproximando-se dele) - Que importa... porque não correis qualquer risco. Digo-vos que não existem provas. Vede como tremem as vossas mãos. Porquê?... Ide dormir em paz. Não sois vós o assassino.
IVAN - Já mo disseram. Sei-o bem!
SMERDIAKOV (martelando as sílabas) - Sabeis?
IVAN - Fala serpente. Diz tudo.
SMERDIAKOV - Ainda não compreendestes?... Vamos, estamos aqui frente a frente. Para quê representar um com o outro uma comédia?
IVAN - Uma comédia? Que comédia? Não represento comédias...(Olhando-o com espanto) Fantasma!
SMERDIAKOV - Estais doente. Não há aqui nenhum fantasma. Apenas eu e vós, e ainda um outro, entre nós os dois.
IVAN - Quem? Que outro?
SMERDIAKOV - Deus. Deus está aqui, ao pé de nós.
IVAN - Mentes! És tu que representas a comédia. Tu não páras de mentir para me embaraçar, para me confundir. Não se compreende nada daquilo que tu dizes. Tudo isso é inventado. Ou tu és louco, ou divertes-te a irritar-me. Sim... tu és louco...tu és louco! Não te quero ouvir mais. Vai-te embora. És louco! (Recua tão precipitadamente que bate com as costas na parede, ficando pregado ao chão e olhando Smerdiakov com terror)
SMERDIAKOV (olhando Ivan com um ódio louco) - Esperai um pouco... (Arregaça a calça da perna esquerda, descobre uma meia branca, desaperta a liga e enfia a mão na meia)
IVAN (balbuciando) Louco! Louco! (Smerdiakov tira da meia um maço de notas que coloca sobre a mesa)
SMERDIAKOV (a meia-voz) - Aqui está.
IVAN - O que é isso?
SMERDIAKOV - Dignai-vos observar (Ivan aproxima-se da mesa. Agarra as notas que se escapam dos seus dedos) Ides desmaiar?... Está aqui tudo... três mil rublos. Não tendes necessidade de contá-los.
IVAN (sentado, com ume espécie de sorriso) - Fazes-me medo.
SMERDIAKOV - Então, verdadeiramente, não sabíeis?
IVAN (após um silêncio, os olhos perdidos, a voz átona) - Estavas só... ou com o meu irmão?
SMERDIAKOV - Eu não matei senão convosco, Ivan Fyodorovitch! Dmitry é completamente inocente... Fostes vós que me inspirastes o crime. Não fiz mais do que executá-lo.
IVAN (esmagado) - Eu tive, portanto, esse pensamento... Tive-o... Deus! Por um pensamento!
SMERDIAKOV - É preciso esconder isto... (Dissimula o maço sob um livro) Vós que tínheis tanta coragem... (Com cólera, olhando à sua volta) Não vale a pena estares assim a tremer!
IVAN (quase submisso) - Senta-te. E diz-me tudo.
SMERDIAKOV - Como se passaram as coisas? Mas da forma mais natural... Vós tínheis partido. Eu escondi-me, esperei. Estava certo de que Dmitry atravessaria a vedação à meia-noite para ele mesmo se informar sobre o que se passava aqui.
IVAN (levantando a cabeça) - E se ele não tivesse vindo?
SMERDIAKOV - Então, nada teria acontecido.
IVAN - Deus! Deus!... Fala sem pressas. Não esqueças nenhum pormenor.
SMERDIAKOV - Ele não podia deixar de vir. Eu tinha-o preparado tão bem durante os últimos dias...
IVAN - Pára! Porque mataste?
SMERDIAKOV - As palavras que pronunciastes...
IVAN - Deixemos as minhas palavras! Mas o móbil, o interesse que te levou a isso?
SMERDIAKOV - Por nojo, por vingança. E também por causa do dinheiro.
IVAN - Mas, se Dmitry tivesse matado, teria ficado com o dinheiro.
SMERDIAKOV - Não o teria encontrado. tinha-lhe dito que o envelope estava escondido debaixo do colchão. Dado o golpe, apoderei-me da quantia, e tudo caía em cima de Dmitry.
IVAN - Continua.
SMERDIAKOV (lentamente) - Continuar? Seja... Portanto, eu estava à espera, no silêncio da noite. O vosso pai agitava-se, chamava-me. Eu não me mexia. De repente... o sinal. Saíra do meu esconderijo... Fyodor Pavlovitch abre a janela, debruça-se, chama...A janela é baixa: «Ele vai bater-lhe de fora», pensava. Mas nada. O tempo passa, o meu coração bate. Estava a faltar-me a paciência quando o vosso pai, julgando sem dúvida que Gruchenka o esperava na porta pequena, pegou num candeeiro e saiu. Ficou lá fora talvez um, talvez dois minutos. O sangue subia-me à cabeça, faltava-me a respiração... E finalmente! Vindo do fundo do jardim ouvi um grito enorme. Era a voz de Grigory... Compreendi imediatamente que Dmitry, apavorado, tinha fugido, e que Grigory, vigilante, o alcançara, que uma luta se travara entre os dois... Se eu não tivesse a coragem, a força de me aproveitar das circunstâncias e de executar eu mesmo o trabalho, tudo teria de recomeçar!... Ao ouvir o grito de Grigory, Fyodor Pavlovitch, aterrorizado, voltou a entrar. Eu estava escondido ali, por detrás do pilar...Ainda o velho não dera três passos e lancei-me sobre ele - eu tinha agarrado no pisa-papéis de bronze... pegai... neste... pesa três libras... - e com todas as minhas forças desferi-lhe um golpe na cabeça... Entrou pelo canto. Ele nem sequer soltou um grito e sucumbiu. Bati-lhe uma segunda, uma terceira vez. Percebi então que tinha o crânio fracturado. Estava caído para trás, todo coberto de sangue... Limpei o pisa-papéis, voltei a colocá-lo no lugar, fui buscar o dinheiro escondido atrás do ícone e depois saí a tremer. Já no jardim, fui até à macieira que tem uma concavidade, estais a recordar-vos? Tinha-a referenciado há muito tempo, tinha mesmo lá posto um pano e um papel. Embrulhei os três mil rublos no pano, meti o pano dentro do papel e enfiei o pacote no fundo do buraco. Ficou lá durante dois meses. Só o fui buscar esta manhã, quando voltei... Por fim, corri à paliçada e encontrei Grigory inanimado, estendido no chão. Portanto, Dmitry viera e Grigory, que ainda respirava, podia testemunhar a sua passagem e, acusá-lo do roubo e, ao mesmo tempo, e em consequência, do crime e do roubo. Fiquei descansado...
IVAN - E...então?
SMERDIAKOV (sorrindo) - Então... tive a minha crise.
IVAN - Uma crise verdadeira, ou fingida?
SMERDIAKOV - Evidentemente que estava a fingir. Desci à cave e deitei-me tranquilamente até que vieram recolher-me, no dia seguinte...
IVAN - E ainda simulavas a crise no dia seguinte?
SMERDIAKOV - De forma alguma. Desde a manhã do dia seguinte fui possuído por uma crise verdadeira, a mais violenta que tivera até hoje. Fiquei inconsciente durante dois dias.
IVAN - Bem, bem! E depois?
SMERDIAKOV - É tudo.
IVAN - Não vejo, em tudo isso, porque tinhas necessidade do meu consentimento?
SMERDIAKOV - Se, por acaso, as suspeitas caíssem sobre mim, ter-me-íeis defendido...
IVAN (com os dentes serrados) - Querias torturar-me durante toda a minha vida! E garantir assim a tua impunidade...Mas... essa impunidade, tu tinha-la; então, porque me fizeste esta confissão? Vou denunciar-te!... Podias calar-te, podias negar...
SMERDIAKOV - É que o meu ódio foi mais forte, Ivan Fyodorovitch... Não pude resistir: foi a necessidade de vingança. Odeio-vos há muito tempo. Nunca compreendestes o meu valor... porque eu era um lacaio... insultáveis-me, a mim, que tanto vos admirava, que me esforçava por ter mérito aos vossos olhos, que vos imitava em tudo... Não poderia suportar que me fugísseis. Odeio toda a Rússia, senhor... mas é especialmente a vós que eu odeio...
IVAN (erguendo o livro que cobre o maço dos rublos) - Mostraste-me este dinheiro para me convencer?
SMERDIAKOV (com voz trémula) - Esse dinheiro, ficai com ele... Não preciso dele... Pensara que com esse dinheiro poderia começar uma vida nova em Moscovo... vós faláveis sempre de uma vida nova!... Ou melhor ainda no estrangeiro, depois de completar a minha instrução. Pensava ver, também eu, esses países felizes da Europa... Era a minha ideia. Dizia para mim que tudo é permitido... (Ergue os olhos para Ivan) Ensinastes-me isso, como me ensinastes muitas outras coisas... Se Deus não existe, não há virtude, porque ela seria inútil. Isso parecia-me verdadeiro...
IVAN - E agora, acreditas, já que devolves o dinheiro?
SMERDIAKOV - Não. Não acredito! (Com a voz estrangulada, fazendo um gesto desesperado) Porque dizíeis vós que tudo é permitido? E agora, porque estais tão pálido e com as pernas curvadas? (Com indizível desprezo) Não suportais sequer que eu tenha feito aquilo que vós não ousaríeis fazer. Vós, nem mesmo ousaríeis matar-me. Vós não ousais nada, velho audacioso!... E ireis, talvez, para me perder, acusar-vos covardemente? (Com angústia) Não! Não fareis isso, Ivan Fyodorovitch. Isso não pode ser. Sois demasiado inteligente, demasiado orgulhoso. Gostais das mulheres, da independência, do luxo. Não quereis estragar a vossa vida. De todos os filhos de Fyodor Pavlovitch, vós sois aquele que se parece mais com ele. Tendes a mesma alma. (Ivan solta um rugido de horror) Vamos, meu antigo patrão, ficai com o dinheiro...
IVAN - Que dinheiro? Ah! Sim... (Agarra o maço das notas e mete-o na algibeira)... Amanhã mostrá-lo-ei aos juízes.
SMERDIAKOV - Ninguém vos acreditará. Tendes agora bastante dinheiro para poder dispor dessa importância.
IVAN - Escuta miserável, se ainda não te matei, foi apenas porque preciso de ti amanhã.
SMERDIAKOV - Então matai-me! Matai-me imediatamente. Não ousaríeis fazê-lo. Vós não ousais nada, velho audacioso!
IVAN - Até amanhã...
SMERDIAKOV - Esperai... Mostrai-mo uma última vez...(Ivan tira o maço da algibeira e estende-o a Smerdiakov que o contempla avidamente sem lhe tocar) Ide, agora... Ivan Fyodorovitch!... Adeus!
Escapa-se e sobe a escada a correr com esforço.


CENA VIII
Ivan

IVAN (afastando-se para sair, e como se respondesse ainda a Smerdiakov) - Até amanhã... sim, irei, porque é essa a minha vontade, não por causa das tuas ameaças e do teu desafio... Amanhã, irei escarrar-lhes na cara, a todos! Mas apenas amanhã... Guardemos tudo para amanhã... (Zombando) e daqui até amanhã... (Voltando-se) O quê? Estás a zombar? Porque reconheces o teu pensamento nas minhas palavras?... Ah! Ah! Não, não te sentes, vai-te embora!... Aliás, podes ficar, é-me indiferente. Tu não existes... Não, tu não existes. Tu, sou eu. Tu és a minha doença, a minha alucinação, a incarnação dos meus pensamentos e dos meus sentimentos mais abjectos... Tu não és senão eu sob uma outra forma, a forma de um lacaio! Como pôde o meu espírito engendrar-te?... Torna a sentar-te imediatamente! Causas-me horror. Não! Eu resistirei! Não me levarão para a casa dos loucos!... Vai-te embora! Vai-te! (Pega num copo que está na mesa a atira-o à sua visão. O copo quebra-se) Ah! Ah! Ah! (Chamando) Katerina! Katerina...


CENA IX
Ivan, Katerina

KATERINA (acorrendo do fundo) - Ivan!
IVAN - Vem, vem... Oh! Sabes como nos tornamos loucos? Julgas que nós mesmos podemos dar-nos conta que estamos  a tornarmo-nos loucos?
KATERINA - Ivan, infeliz!
IVAN - Ele estava sentado aqui, no sofá (Rindo) É horrivelmente estúpido...
KATERINA - De quem estás a falar?
IVAN - O diabo! Ele persegue-me; mas ele mente. É um impostor. Troça de mim. Já não consigo suportá-lo. Que fazer? Que fazer?
KATERINA - Onde está Smerdiakov?
IVAN (mostrando o pisa-papéis) - Com isto... três golpes! Um pensamento, um só, chegou para nos pormos de acordo. Eu sou um assassino, disse-me ele. Sou eu.
KATERINA - Ivan, estás a delirar, não foste tu que mataste. Não é verdade.
IVAN - Não, não, eu digo a verdade. Acredita em mim. Ainda não estou doido. Toma (Estende-lhe o maço dos rublos)
KATERINA - O quê?
IVAN - A prova!
KATERINA - O dinheiro não prova nada! Ivan, escuta-me, reflecte... Smerdiakov acusa-se por maldade. Ele aproveitou com o crime, sem o ter executado. Preparou tudo, favoreceu. Mas não teve a coragem...
No rosto de Ivan, enquanto escuta avidamente Katerina, surge um vislumbre de esperança. Beija-lhe a mão apaixonadamente, murmurando: «Oh!... Katerina!...» Depois, dá um salto até ao quarto de Smerdiakov e empurra violentamente a porta. Recua, soltando um grito pavoroso.
IVAN - Enforcado!... Aqui... Estou a vê-lo. Pendurou-se numa trave! (Katerina avança para se juntar a Ivan que a detém com um gesto) Não, espera... (Ivan penetra no quarto, saindo logo a seguir com todos os membros a tremer, mas o rosto brilhando de uma espécie de alegria) Isto não é uma visão... Eu toquei o seu corpo... (Com um dedo nos lábios, começa a descer a escada aos tropeções) Chut... Katerina, não chames. Ele está morto. (Pára para rir suavemente) Ah! Ah!... uma libertação! Que ele leve consigo todo o mal! Eu sabia bem que ele não era eu... inteiramente...
KATERINA - Dmitry... Dmitry!
IVAN - Que apodreça na prisão! Não quero servir um Deus em que não acredito!... Estou sufocado...
Cambaleia. Katerina segura-o. Desce a escada apoiando-se nela.
KATERINA - Vem, vem, apoia-te em mim.
IVAN - Katya... Katya...
KATERINA (levando-o para o sofá) - Aqui... deita-te...
IVAN (agarrando-se a ela) - A morte não... a morte não... Katya...
KATERINA - Eu estou ao pé de ti...
IVAN - O teu desprezo, sim... Mas não a morte!... Não posso dizer mais... já não posso... pensar... Mesmo o ódio, Katya, e todas as torturas do outro mundo... desde que eu ainda viva... desde que eu viva...
Katerina abraça-o e embala-o como a uma criança.


FIM

A presente tradução foi realizada a partir da versão publicada na revista "L'Avant-Scène", nº 481, de 15 de Outubro de 1971. Versão utilizada na representação da peça no Théâtre de l'Atelier, em Dezembro de 1946.

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