Tendo
sido estreado ontem, no Teatro Experimental de Cascais, o espectáculo "Os
Irmãos Karamazov", peça de Jacques Copeau e Jean Croué, a partir do romance
homónimo de Dostoyevsky, e sendo eu o tradutor da peça, esclareço que, ao
contrário das minhas anteriores colaborações com Carlos Avilez, não tive
conhecimento dos cortes realizados no meu texto. Também não sou responsável por
eventuais alterações ao mesmo ou acrescentes à peça efectuados a partir de uma
versão portuguesa do romance.
Publico,
a seguir, a versão integral da peça.
* * * * *
Fyodor
Mikhailovitch Dostoyevsky
OS IRMÃOS
KARAMAZOV
Adaptação de
Jacques Copeau e Jean Croué
Tradução
de
Júlio de
Magalhães
Março de 2017
O tradutor escreve segundo a
verdadeira ortografia portuguesa a que, agora, se convencionou chamar a
"antiga ortografia".
* * * * *
PERSONAGENS
Aleksey Fyodorovitch
Karamazov (Alyocha)
Padre Zocima
Dmitry Fyodorovitch
Karamazov
Smerdiakov
Ivan Fyodorovitch Karamazov
Fyodor Pavlovitch Karamazov
Padre Paisius
Padre Iosif
Katerina Ivanovna
Verkhovtseva
Criada
Agrafena Aleksandrovna Svetlova (Gruchenka)
Grigory
Vassiliev
Mussialovitch
Vrublesky
Trifon
Cocheiro
Andrey
Aldeões de Mokroye
Boris Vassilievitch
Anton Ilitch
Balalaikista
Acordeonista
Arina
Stepanida
Chefe da polícia
Primeiro soldado
Segundo soldado
PRIMEIRO ACTO
Eremitério de um mosteiro nos arredores de
Moscovo. A cena representa um parlatório contíguo à cela do Starets Zocima. Ao
fundo há uma galeria aberta que permite ver os jardins floridos do mosteiro,
para os quais se desce por uma escada de madeira. À esquerda, a entrada de uma
capela. À direita, uma porta que conduz à cela do padre Zocima. Fim do mês de
Agosto; manhã quente e clara.
CENA I
Padre Zocima, Alyocha
Ao subir o
pano, o palco está vazio. Mas o padre Zocima surge no jardim. É um velho, de
pequena estatura, magro e ligeiramente curvado. Caminha muito lentamente, com
dificuldade e apoiado no ombro de Alyocha. Sobem ambos a escada. Chegado ao
último degrau, o padre Zocima pára para retomar fôlego. Ouvem-se ao longe vozes
que entoam um cântico.
ALYOCHA (escutando os cânticos) - Todos os que vêm até vós, cheios de
problemas, regressam apaziguados, satisfeitos.
ZOCIMA - Se é permitido a um homem,
a um pecador, alegrar assim o coração dos seus irmãos, o que não haveremos de
esperar do próprio Deus!
ALYOCHA - Padre! Como podeis fazer
essas coisas maravilhosas?
ZOCIMA - Tudo vem de Deus, meu
filho. (Dá alguns passos em direcção à
sua cela e volta a parar) Alyocha, meu rapaz, não peso muito sobre o teu
ombro? Estás a ver, de dia para dia as forças abandonam-me. Morrerei em breve.
(Alyocha encosta silenciosamente a cabeça
ao peito do velho) Está bem... não chores. A morte deve alegrar-nos!
ALYOCHA - Deixar-me-ias sozinho no
mundo?
ZOCIMA - A vida começará para ti. É
tempo...
ALYOCHA - Julgava que hoje
estivésseis melhor. Tendes o rosto sorridente.
ZOCIMA (voltando a caminhar) - Aquela
mulher, que fez seis verstas a pé com o filho nos braços para me trazer
a sua oferta, fez isso por prazer! O homem foi criado para a felicidade,
Alyocha. Sê alegre, alegre como as crianças, como as aves do céu. Basta amar
sempre, amar toda a gente...
Chegaram ao
limiar da cela. Alyocha levanta os olhos que mantivera baixos.
ALYOCHA - Junto a vós, tudo me era
fácil. Sem vós, é a angústia e as trevas!
ZOCIMA (sorrindo) - Pois bem, então irás para as trevas, depois da minha
morte...
Alyocha
inclina-se e beija a mão do Starets que o abençoa e entra depois na cela.
CENA II
Alyocha, Dmitry
Alyocha,
sozinho, permanece um instante de pé à porta da cela. Depois, dirige-se em
passos lentos para a escada, desce alguns degraus, mas volta a subi-los
precipitadamente ao aperceber-se de Dmitry.
DMITRY - Alyocha! Assustei-te?
ALYOCHA (tornando a descer um degrau e estendendo-lhe a mão) - Dmitry...
DMITRY (agarrando-lhe os ombros) - Meu pequeno!
Os cânticos
dos peregrinos voltam a ouvir-se, mais longe.
ALYOCHA (com exaltação crescente) - Escuta... São os peregrinos que
regressam. Vieram de toda a Rússia. Esta manhã tivemos dois milagres! Primeiro,
uma possessa... Vi o padre Zocima pôr-lhe a estola sobre a cabeça. Ficou
imediatamente sossegada. Ah! irmão, é o mais notável dos homens sobre a terra,
e eu habito a sua casa e assisto à sua glória...
DMITRY - Há tantos humilhados,
Lyocha, entre os homens. Sim, na humilhação, o homem sofre muito nesta terra. E
eu apenas penso nisso!
ALYOCHA - Eu gosto dos homens.
DMITRY - Mas foges deles!
ALYOCHA - Acredito neles. Fujo das
tentações e da degradação.
DMITRY - Sim, a degradação da tua
família.
ALYOCHA - Não troces, Mitya. Podia
assustar-me de mim mesmo.
DMITRY (com dureza) - Tu estás ocupado com a tua própria salvação, pequeno
monge!
ALYOCHA - Está escrito: «Partilha
tudo e segue-me se desejas a perfeição.» Eu quero viver para a imortalidade.
DMITRY - É justo! Precisávamos de
um santo para resgatar os Karamazov.
ALYOCHA (baixando os olhos) - Sou, como tu, um Karamazov.
DMITRY- E ainda és virgem, aos
vinte anos! (Alyocha afasta-se)
Lyocha, meu pombo, não te afastes. Deixa-me apertar-te nos meus braços, porque,
no mundo inteiro, não gosto verdadeiramente senão de ti! (Abraça Alyocha, depois ergue a cabeça e encara-o) Gosto de ti
porque és perfeitamente puro e dizes sempre a verdade... Aleksey, homem de
Deus, tu a quem todos amamos, não sabes que temos todos necessidade de ti?
ALYOCHA - Ivan não necessita de
ninguém. Ele procura alguma coisa... A minha juventude e a minha ignorância
fazem-no sorrir. E de ti, irmão, eu dizia para mim: «Está salvo!» Quando soube
do teu noivado com Katerina Ivanovna...
DMITRY - Sim, ao deixar o exército
pensava voltar a casa com a minha noiva, para rodear de cuidados a velhice do
meu pai... mas só encontrei um velho debochado, um histrião ignóbil!
ALYOCHA - Mitya... é o pai!
DMITRY - Um pai sem entranhas e sem
pudor, que fez morrer a minha mãe, e depois a tua, de vergonha e de desgosto;
um Esopo, um palhaço, um mulherengo...
ALYOCHA - Devemos lamentá-lo, e
perdoar.
DMITRY - Não podemos perdoar a
semelhante criatura. O próprio Ivan me disse: «Não tens de perdoar.»
ALYOCHA - Não oiças Ivan.
DMITRY - Porquê?
ALYOCHA - Ivan é um enigma.
DMITRY - Um enigma, sim...
ALYOCHA - O espírito sempre ocupado
com pensamentos difíceis, sabemos lá com que pensamentos...
DMITRY - Ele devia arranjar as
coisas entre o pai e eu. Mas agora incita-me a odiá-lo, o que não impede que ambos
se entendam muito bem.
ALYOCHA - Isso é estranho.
DMITRY - Tudo é obscuro,
assustador, incompreensível, Lyocha, tu vais esclarecer-me; quero confessar-me
a ti. Olha: não estás espantado com a minha cara?
ALYOCHA - Vejo nela terror... e
alegria.
DMITRY - Queria começar a minha
confissão pelo hino de Schiller: À
alegria! E contudo nunca estive mais baixo. Mas, que eu seja ignóbil e
maldito, sou ainda teu filho, Senhor! Eu amo-te e a alegria está em mim!
ALYOCHA - Glória ao Eterno no Céu...
DMITRY - Glória ao Eterno em mim!
Vem... Senta-te aqui, para que eu
te veja! Não digas nada. Sou eu que vou falar. Mas muito baixo, é preciso que
eu fale muito baixo... que ninguém me possa ouvir. Ah! Lyocha, porque será que
desde esta manhã e nos últimos dias eu desejava ver-te? É que tenho necessidade
de ti. É preciso que uma alma sublime me perdoe... Apenas a ti eu quero dizer
tudo, e tu ouvir-me-ás sem rir. Amanhã, uma vida nova vai começar para mim...
ALYOCHA - Sim, irmão, Katerina
Ivanovna...
DMITRY - Conheces esses sonhos em
que nos sentimos cair num precipício? Neste momento é assim que eu caio sem
sonhar. Oh! Não tenho medo... Quer dizer, sim, tenho medo. Mas esse medo é
suave... Ou melhor, não, não é suave, é embriaguez. É isso a Beleza, o Ideal?
Que enigmas! Tenho reflectido muito nisso, sabes: para um Karamazov, há beleza
mesmo na vergonha. Deus, só a ideia de Deus me faz sofrer... E depois, que
importa! Vê o belo sol, o céu puro, as árvores verdes. Estamos em pleno Verão. O
tempo é calmo... O que é que eu queria dizer? Já não sei.
ALYOCHA - A tua noiva...
DMITRY (suavemente, com angústia) - Ah sim, Katerina... Ela atormenta-me, Alyocha.
Quero acabar com ela.
ALYOCHA - Queres abandonar Katerina
Ivanovna?
DMITRY - Não a lamentes! Ela faz o
que ela quer. Outro casará com ela, alguém melhor do que eu.
ALYOCHA - Outro?
DMITRY Ivan, talvez.
ALYOCHA - Estás louco!
DMITRY - Creio que ele gosta
dela... Tanto melhor. Que ele me liberte!
ALYOCHA - Oh! Irmão...
DMITRY - Bom! Ainda não sabes nada
e já estás a desprezar-me! Julgas que me separei dela sem sofrimento?... Eu
quis, também eu, elevar-me. Toda a minha vida sofri dessa sede de nobreza. Eu
tinha, como tu, meu inocente, um coração ávido de beleza! Se visses o meu
coração...
ALYOCHA - Dmitry, sei que me dirás
toda a verdade.
DMITRY - Quere-la toda? Muito bem!
Não vou poupar-me... Sabes que eu era tenente num batalhão de linha.
Acolheram-me extraordinariamente bem na pequena cidade da minha guarnição.
Semeei dinheiro por toda a parte. Julgavam-me rico; aliás, julgava sê-lo... Quando
entrei no batalhão, só se falava na cidade da próxima chegada da segunda filha
do coronel. Ela tinha acabado os seus estudos num pensionato aristocrático da
capital... Sim: Katerina Ivanovna. Passava por ser uma beleza perfeita... Uma
noite, em casa do comandante da bateria, como me aproximasse dela, olhou-me
desdenhosamente. Oh... não pude suportar o desprezo do seu rosto!
ALYOCHA - Já gostavas dela?
DMITRY - Juro-te que a sentia de
tal forma acima de mim! Compreendi que Katerina não era uma rapariga qualquer;
tinha carácter, orgulho, uma sólida virtude, especialmente muita inteligência e
instrução... Por causa disso, talvez, queria puni-la por não ter compreendido o
homem que eu sou.
ALYOCHA - Portanto, odiava-la?
DMITRY - Não sabia como tocar,
inquietar essa mulher demasiado pura e demasiado altiva. Pressenti
imediatamente o mal que lhe ia fazer; e não podia impedir-me de fazê-lo... Ora,
nessa altura, recebera do pai seis mil rublos. E, quase ao mesmo tempo, soube,
por indiscrição de um amigo, que o nosso coronel, o pai de Katerina Ivanovna,
era suspeito de peculato... Arranjei forma de encontrar a irmã de Katerina
Ivanovna, para lhe dizer no meio da conversa: «Se, por acaso, pedirem contas ao
seu pai e ele não as puder prestar, em vez de o fazer passar perante o conselho
de guerra e para lhe poupar a degradação, basta mandar-me a sua irmã: tenho
dinheiro, dar-lhe-ei a quantia e ninguém saberá...» Tratava-se de quatro mil e
quinhentos rublos... A rapariga insultou-me, mas transmitiu a minha proposta a Katerina.
Era tudo o que eu queria... Vindo de cima, chegou um novo major para assumir o
comando do destacamento. Eu, eu esperava... (Silêncio) Lyocha, dois dias depois, em minha casa, ao cair da
noite. Ia sair quando, de repente, a porta se abriu e, à minha frente, no meu
quarto, apareceu Katerina Ivanovna... Ninguém se cruzara com ela. Isto podia
continuar secreto entre nós. Entrou; o seu olhar brilhava de determinação, mas
vi que os seus lábios tremiam... «A minha irmã disse-me que daríeis quatro mil
e quinhentos rublos se eu mesma os viesse buscar... Eis-me aqui; dai-mos.» Não
pôde dizer mais; a sua voz extinguiu-se bruscamente... Alyocha, estás a ouvir?
dir-se-ia que adormeceste.
ALYOCHA - Escuto.
DMITRY -O meu primeiro pensamento
foi o de um Karamazov. Eu observava Katerina... Ela é bela, mas nesse momento
havia nela alguma coisa que ultrapassava a sua beleza... Vinha sacrificar-se
pelo seu pai... e a mim! Era corpo e alma entre as minhas mãos. Compreendes?
Desafiava-me!... Quase não pude dominar-me. A maldade fervia em mim. Quanto
mais me sentia indigno dela, mais tinha o desejo de realizar a acção mais vil
de que fosse capaz. Durante alguns minutos examinei-a com um ódio assustador!
ALYOCHA - Acaba, acaba...
DMITRY - Aproximei-me da janela,
encostei a cabeça ao vidro gelado. Parecia que o frio me queimava... Depois,
voltei-me, tirei da gaveta cinco mil rublos, mostrei-lhos em silêncio,
dobrei-os, entreguei-lhos, ... eu mesmo abri a porta e saudei-a em voz baixa...
Ela estremeceu, olhou-me fixamente, empalideceu, empalideceu... e de repente,
sem dizer uma palavra, num ímpeto, prostrou-se à minha frente, com a cabeça no
chão.
ALYOCHA (não contendo já a sua emoção) - Irmão, irmão...
DMITRY - Depois levantou-se
rapidamente e fugiu... E eu, quando ela desapareceu, tirei o sabre da bainha
para me matar, sem mesmo saber porquê... por entusiasmo! Compreendes, diz-me,
que alguém se possa matar por entusiasmo?
ALYOCHA - Irmão, nesse instante
elevaste-te mais alto do que ela, e venceste-a!
DMITRY - Não está mal, noviço!
Disseste a palavra: sim, naquele momento, eu, um oficial ordinário, tinha
vencido a donsela! E é isso, estás a ver, que ela nunca me perdoará, porque é
orgulhosa. Depois, o seu pai morreu e ela pagou-me a dívida. Mas não era o
suficiente. Ela decidiu, por reconhecimento, sacrificar-me a sua vida. O que
ela chama reconhecimento, é uma necessidade de dominar, é uma sede de infinito
de que ela está sedenta. Ela parece-se comigo, Alyocha; nada poderá detê-la!
ALYOCHA - Quando ela te deixou,
nesse dia, amava-la?
DMITRY - Amei principalmente a
minha bela acção. E ela, ela ficou humilhada.
ALYOCHA - Contudo ficaram noivos?
DMITRY - Três anos mais tarde,
perante as santas imagens... Ah! Que eu não possa apagar esse dia da minha
vida. O dia, Alyocha, o dia em que ela disse que me amava, em que ela o
escreveu... Guardei a sua carta; nunca a deixarei; quero ser enterrado com ela.
Vais lê-la. Sou indigno, com a minha voz impura, de repetir as suas palavras.
Deixaram-me uma ferida incurável!
Inclina a
cabeça e chora.
ALYOCHA (com ternura) - Mitya, és infeliz mas não deves desesperar.
DMITRY - Porque voltei a meter o
sabre na bainha? Devia ter-me matado nesse dia, pois iria cair de novo...Tentei
explicar-lhe isso numa carta, na altura do nosso noivado... Isso, e muitas
outras coisas... Mas ela não quis compreender. Foi então que lhe enviei Ivan.
Acreditei que, melhor do que eu, ele saberia persuadi-la que era uma loucura
envolvermo-nos um com o outro...
ALYOCHA - Mas disseste-me...
DMITRY - Sim. Ivan está apaixonado
por ela. Ela também gosta dele, estou certo, ainda que não diga nada. Sucumbiu
ao seu encanto. Como não gostariam um do outro? Ela é tão pura, ele é tão
inteligente. É preciso que assim seja!
ALYOCHA - Mas tu, que vais fazer?
DMITRY (com cólera) - Regressarei à minha indignidade!
Silêncio
ALYOCHA - Meu pobre irmão...
DMITRY - Cala-te. Não me lamentes!
ALYOCHA (com autoridade) - Tu amas Katerina... Ao renunciares a ela, ao
sacrificares-te, estou certo que te castigas por uma falta que talvez não seja irreparável.
Deixa de te defenderes perante mim. Ainda não me disseste tudo.
DMITRY - Quero afastar-me dela; é
tudo.
ALYOCHA - Ainda agora choravas.
DMITRY - Tolices. Sou forte, porque
tomei uma decisão.
ALYOCHA (com angústia) - Mitya?...
DMITRY - Oh! Não receies nada, meu
pequeno; não vou matar-me. Agora, não tenho forças para isso. Mais tarde,
talvez. Mas não antes de ter... Basta! Não direi mais nada. Vou partir. Que
horas são?
ALYOCHA - Onze horas, creio.
DMITRY - Adeus... Não rezes por
mim. É inútil. (Dmitry dá alguns passos
para sair, mas pára, volta para trás, segura as mãos do irmão entre as suas e
olha-o em silêncio) Ainda poderás gostar de mim, Aleksey? ... Tenho paixões
ferozes; sou violento, sensual, gosto do deboche e da sua crueldade. Mas o que
quer que tenha feito ou possa ainda fazer, nada iguala a infâmia que trago
agora no meu peito... Diz-me, acreditavas que Dmitry Karamazov pudesse ser um
ladrão, um miserável ladrão?... Anteontem, Katerina Ivanovna pediu-me
misteriosamente, não sei porquê, de enviar à sua irmã Agafia, em Moscovo, três
mil rublos que me entregou... Eu estava sem um kopeck. Katerina sabia-o.
Contudo, confiou-me esse maldito dinheiro. Sorria quando mo entregou. Porque
sorria ela?... Fiquei com ele! Fui até à estação dos correios. Mas não
entrei...
ALYOCHA (sem fôlego) - O que aconteceu ao dinheiro?... Dmitry! O que
aconteceu ao dinheiro?
DMITRY (a meia-voz, batendo no peito) - Está aqui. Trago-o comigo, cosido
numa saqueta, sobre o peito. Não lhe toquei. Ainda não. É isso que me
atormenta, Lyocha; ainda não sou um ladrão, porque ainda não gastei o dinheiro.
Mas não poderei impedir-me de o fazer. Não poderei, a não ser por um milagre!
ALYOCHA (com violência) - Dá-me esse dinheiro!
DMITRY - O meu pai lesou-me em mais
de seis mil rublos relativos à herança da minha mãe. Que ele me dê três mil e
estamos quites. É preciso que ele mos dê! Senão, estou perdido. Não tenho outra
saída. Farei o que for preciso!... Dmitry Karamazov concebeu este cálculo: três
mil rublos, custe o que custar. Se o velho mos der, muito bem! Continuo um
homem honesto. Se os recusar, fico com o dinheiro de Katerina e serei um
ladrão. Eis-me suspenso sobre o abismo... Precipitar-me-ei na noite da vergonha
ou ascenderei à alegria e à luz? É interessante, hein? Bah! Já estou
amaldiçoado, porque tive este pensamento...
ALYOCHA - Porque tiveste esse
pensamento? Porque ficaste com os três mil rublos?
DMITRY - Porquê! Porquê!... Era
preciso. Não sou eu um miserável parasita, o digno filho do meu pai? Na nossa
família, a sensualidade vai até à loucura... Adeus. Saberás tudo mais tarde. O
abismo, a noite, inútil explicar-te... A lama e o inferno! Não me perguntes
mais, adeus! Nada mais à minha frente. Sai do meu caminho... (Dirige-se para o jardim mas vê Smerdiakov ao
fundo da escada) Eh! O lacaio... Smerdiakov! O que é?
Precipita-se
ao seu encontro.
CENA III
Dmitry, Alyocha, Smerdiakov
SMERDIAKOV (curvado) - Senhor, saúdo-vos.
DMITRY - Que aconteceu? Porque
deixaste o teu lugar?
SMERDIAKOV - Senhor, perdoai-me.
Sabia que vos encontrava aqui.
DMITRY - Chega de cerimónias! As
notícias?
SMERDIAKOV - Posso falar-vos um
instante em particular?
DMITRY - Fala diante do meu irmão.
SMERDIAKOV - Não sei se deva. São
notícias confidenciais.
DMITRY - Fica, Alyocha.
SMERDIAKOV - Notícias de grande
importância.
DMITRY - Fala, lacaio mal-cheiroso!
SMERDIAKOV - Oh! O senhor não se
zangue...
DMITRY (agarrando-o pelos ombros) - Quebro-te os ossos!
SMERDIAKOV - Ai! Ai! Não me façais
mal; não me meteis medo. É que...
DMITRY - Fazes de propósito para me
irritar.
SMERDIAKOV - Muito bem, senhor, eu
creio, infelizmente tenho fortes razões para acreditar, que o senhor vosso pai
está prestes a levar a melhor... (Gesto
violento de Dmitry) Esperai ao menos até ao fim do meu relato, Dmitry
Fyodorovitch, e não me lanceis esses olhares assustadores... Digo que um perigo
vos ameaça. Gruchenka que, ainda ontem, parecia ter as melhores disposições a
vosso respeito, voltou-se bruscamente a favor de Fyodor Pavlovitch.
DMITRY - Foi ela que te disse?
SMERDIAKOV - Esta manhã, o meu
patrão recebeu uma carta de Gruchenka... Era preciso ver o sangue subir à
cabeça do senhor vosso pai enquanto lia a carta.
DMITRY (cuspindo) - Que nojo!
SMERDIAKOV - Não sei porque meios
ele conseguiu vencer a sua resistência e ultrapassar as suas hesitações, mas é
certo que, sem lhe dar uma garantia formal, Gruchenka, por essa carta, permite
ao vosso pai esperar que ela vá esta noite a sua casa.
DMITRY - A que horas?
SMERDIAKOV - Meia-noite.
DMITRY - Leste a carta?
SMERDIAKOV - Li.
DMITRY - Foste tu que me traíste,
verme!
SMERDIAKOV - E viria a seguir
avisar-vos?
DMITRY - O que faz o velho?
SMERDIAKOV - Fyodor Pavlovitch
dispõe-se a receber a menina. Ouvi-o suplicar ao vosso irmão Ivan que partisse
esta noite para a sua propriedade de Tchermachnia fim de lá efectuar uma venda
de madeira. Na realidade, é para não ser incomodado pela sua presença... E
mais: preparou agora mesmo um maço de trinta notas de cem rublos, atadas por
uma fita vermelha e selada, na qual escreveu: «Ao meu anjo Gruchenka, se ela se
dignar vir.»
DMITRY - Viste o dinheiro?
SMERDIAKOV - Três mil rublos. O
senhor vosso pai mostrou-mos antes de os esconder debaixo do colchão.
DMITRY - O velho devasso seduz
raparigas com o dinheiro que me pertence! (Voltando-se
para Alyocha) Ah! Ah! Estás aqui, com os olhos esbugalhados! Compreendes,
agora?... É Gruchenka que o meu pai tenta surripiar-me, é com ela que eu quero
partir, é por causa dela que eu quero o dinheiro...No meu regresso do
regimento, tinham-me contado que o meu pai, apaixonado por essa rapariga,
queria fazê-la sua herdeira e que me recusava, por causa dela, o dinheiro que
me deve. Corri a casa de Gruchenka... Ia lá para bater-lhe!
ALYOCHA - Tu gostas dela?
DMITRY - Julgas que obtive alguma
coisa dela? Nada!... E o velho também não. Ainda não a possuiu. Ela é
deslizante como uma cobra.
ALYOCHA - Contudo... Se Gruchenka
vai a casa do pai esta noite?...
DMITRY - Entrarei à força e
impedirei!
ALYOCHA - E, se?...
DMITRY - Se?... Eu... Eu não
suportaria isso!
ALYOCHA - Mitya
DMITRY - Não sei... Não sei o que
farei! Receio o seu rosto maldito. O seu duplo queixo, o seu nariz, o seu
sorriso atrevido são tão repugnantes que não poderei conter-me!
SMERDIAKOV - Ah! Senhor, que
dizeis?
DMITRY - Se a deixares entrar em
casa de meu pai sem me prevenir, és o primeiro a morrer!
SMERDIAKOV (esquivando-se) - Não há perigo de momento. O senhor vosso pai e o
vosso irmão Ivan chegaram ao convento atrás de mim.
DMITRY - Ao convento? Fazer o quê?
SMERDIAKOV - Fyodor Pavlovitch
meteu-se-lhe na cabeça submeter ao reverendo padre Zocima a disputa que vos
divide em relação à herança de vossa falecida mãe Adelaïda Miussov. Ele
pretende que a situação e a personalidade do religioso são de natureza a
permitir um acordo.
DMITRY - O que é essa nova
palhaçada?
ALYOCHA - Irmão, tenho receio de um
escândalo!
Smerdiakov
sai.
CENA IV
Dmitry, Alyocha
DMITRY - Ele quer intimidar-me:
seja! Vou falar-lhe em frente do religioso. Será preciso que ele ceda. Depois,
correrei a casa de Gruchenka: vou raptá-la. Seremos felizes, longe de tudo. E
tu, irmão, irás a casa de Katerina...
ALYOCHA - Vai lá tu mesmo e
devolve-lhe o dinheiro.
DMITRY - E se Gruchenka me disser:
«Leva-me, sou tua.»?
ALYOCHA - Precisas de confessar
tudo a Katerina. É a tua salvação...
DMITRY - Para que ela me perdoe,
não é? Para ficar sob o seu pé? Não quero os seus sacrifícios! Que Ivan case
com ela! Estão bem um para o outro, e tudo entrará em ordem. Eu os abençoo...
Mas Gruchenka! A minha Gruchenka tornar-se a presa desse velho bode!... Eu amo
Gruchenka. É uma mulher verdadeira. Ela não se importa com os meus vícios.
Lutaremos mas amar-nos-emos. É a única mulher que eu posso amar. Quero casar
com Grucha. Não posso viver sem ela.
ALYOCHA - Perdes-te, Mitya! Mas
Deus conhece o teu coração; e vê o teu desespero. Ele não permitirá que se
cumpram coisa atrozes. Tu não trairás os teus compromissos sagrados...
No início
da última réplica, Ivan, seguido por Smerdiakov, surge no cimo da escada.
CENA V
Dmitry, Alyocha, Ivan, Smerdiakov
IVAN (interrompendo Alyocha) - Bravo, noviço! Pregas bem.
ALYOCHA (ruborizando-se) - Fazes sempre troça, Vanya.
IVAN - Sem ressentimento,
irmãozinho. Gosto de te arreliar. Diverte-me ver os teus olhos a brilhar... Bom
dia, Mitya. Sempre arisco?
DMITRY - Bom dia, Ivan, querido
irmão. Sê feliz.
ALYOCHA - Ivan, sabes tudo e não me
disseste nada.
DMITRY - Ele é secreto como um
túmulo!
ALYOCHA (a Ivan) - Estás a afastar-te de
nós?
IVAN - Deixo-vos conversar.
DMITRY - Escuta... Se dois seres
conseguem elevar-se acima das coisas terrestres... se não dois, pelo menos um
deles, o que vai desaparecer vem ter com o outro e diz-lhe: «Faz por mim isto
ou aquilo...», coisas que só se pedem à hora da morte. O que fica poderá
recusar obedecer, se for um amigo, um irmão?
IVAN - Que linguagem! Aonde queres
chegar? Fala mais claramente.
DMITRY (lutando contra a emoção) - Agora mesmo, ao saíres daqui, vai ter
com Katerina Ivanovna, saúda-a da minha parte e diz-lhe que não voltará a
ver-me.
IVAN - Perdeste a razão?
DMITRY - Não sejas duro. Falo
solenemente. Conheces Katerina. Sabes o que ela vale. Sabes o que eu sei. Ela
estima-te pela tua inteligência, respeita-te pela pureza da tua vida. Tem
confiança em ti, tu tens ascendente sobre ela... Fá-la compreender, de uma vez
por todas, que ela não tem o direito de estragar toda a sua existência com o
pretexto de um reconhecimento, que isso é absurdo!
IVAN - Leva-lhe tu a mensagem. Ou
manda Alyocha como teu embaixador.
DMITRY - É a ti que eu designo,
Ivan... Vais dizer-lhe: «Dmitry enviou-me»... Ela compreenderá.
IVAN (desviando-se) - Que comédia!
Ouve-se
Fyodor falar e rir no jardim.
ALYOCHA - Chegou o pai.
DMITRY - Ouviste-lo rir? Vem,
Alyocha.
ALYOCHA - Entremos na capela.
Agora, Ivan.
Alyocha e
Dmitry saem pela esquerda.
CENA VI
Ivan, Smerdiakov
Smerdiakov,
durante toda a cena precedente, manteve-se afastado, mas ouvindo.
IVAN - Eh! Que estás aí a fazer?
SMERDIAKOV - Nada, senhor. Estou a
pensar.
IVAN - A pensar em quê?
SMERDIAKOV - Mas... nisto tudo.
IVAN - E o que é que pensas?
SMERDIAKOV - Ah! O senhor vosso pai
e o senhor vosso irmão preocupam-me. Ei-los, cara a cara nesta vereda.
Conseguirão conter-se?
IVAN (entre os dentes) - Veremos.
SMERDIAKOV - É uma pena que alguém
tão gentil como o vosso irmão Dmitry abandone assim a sua noiva... Sem contar
que Katerina Ivanovna agora é rica. A sua tia de Moscovo deu-lhe um dote.
IVAN (olhando de soslaio) - Também sabes isso?
SMERDIAKOV - Sessenta mil rublos.
Senhor, nada mau para um rapaz que não tem nada. É um bom partido, sabeis isso!
(Baixando um pouco a voz) E a um
sinal de Gruchenka o vosso irmão renunciaria a tudo...
IVAN - E isso diz-me respeito?
SMERDIAKOV - Ele corre para a sua
ruína!
IVAN - E tu importas-te com isso,
bom cristão?
SMERDIAKOV - Não ficaríeis também
preocupado?
IVAN - Dmitry é meu irmão.
SMERDIAKOV - Acho que pertenço um
pouco à família... Sabeis que na semana passada, estando embriagado, Dmitry
Fyodorovitch proclamou-se indigno da sua noiva Katerina em plena taverna? (Em confidência) Ela já hesita...
CENA VII
Ivan, Smerdiakov, Fyodor, Padre Paisius, Padre Iosif
FYODOR (ao fundo, dirigindo-se aos dois monges) - Outro sinal da cruz,
senhores, ao acaso! (Com grande
afectação, faz grandes sinais da cruz em frente dos ícones, e depois volta-se) -
Eh! Querido Ivan! Estes monges habitam num vale de rosas!
IVAN (a meia-voz) - Meu pai, previno-vos que se não vos comportardes de
forma correcta, deixo-vos imediatamente!
FYODOR - O que é que eu disse de
mal? Para um livre pensador, tens um ar lindamente atormentado pelos teus
pecados. Tens medo que o santo leitor dos pensamentos veja nos teus olhos o que
se passa na tua cabeça?
Ri. Ivan
encolhe os ombros.
SMERDIAKOV (aproximando-se de Fyodor) - Senhor... O vosso filho Dmitry está
aqui. Chut!... Não sei como ele ficou a saber desta reunião. Devemos temer um
escândalo. Calma, senhor, peço-vos... dignidade!
FYODOR - Não me deixes.
SMERDIAKOV - Ficai tranquilo.
Os dois
monges saem pela direita para anunciar os visitantes. Alyocha entra pela
esquerda, vindo da capela.
CENA VIII
Ivan, Fyodor, Smerdiakov, Alyocha
Fyodor - Ah! ei-lo, ei-lo! (Corre a abraçar Alyocha) Meu querido
filho, vem aos meus braços! Meu pombinho, quero dar-te a minha bênção
paternal... Não: vou apenas persignar-te...! Meu Alyocha! És feliz aqui? Divertes-te?
Aqui não há mulheres, suponho. Oh! Oh! Oh! Estou a escandalizar-te, pobre
pombo? Pensas que queria aborrecer-te? Vai, vai, meu filho, continua no teu
convento. Estarás melhor aqui do que com um velho bêbedo e um bando de mulheres;
ainda que a ti nada te macule: tu és um anjo!... E como tal, não és estúpido,
escolheste a melhor parte! Diz-me por isso se alguma vez encontraste aqui a
verdade? A partida para o outro mundo ser-me-á mais fácil quando eu souber de
certeza o que lá se passa. Ainda não encontrei ninguém que me informasse...
Vamos, vais arder, vais extinguir-te, vais curar-te, e um dia voltarás para o
velho desgraçado de que ninguém gosta... (Choramingando)
E eu ficarei à espera, porque tu és a única pessoa no mundo que não me
censurou, meu querido rapaz...
ALYOCHA - Meu pai...
FYODOR (engolindo as lágrimas) - Bom, acabou-se... Onde está ele, o teu
reverendo padre? Viemos todos prostrar-nos diante dele... incluindo Smerdiakov!
Reconheceste o nosso delicioso Smerdiakov? Continua a ter uma linda figura e
uma distinção de eunuco, eh? E que elegância: botas envernizadas!... Sabias que
está agora a estudar filosofia? Sim, o Ivan dá-lhe lições. Ele é discípulo de
Ivan!(Mais baixo, apontando ao fundo,
Ivan e Smerdiakov que conversam) Olha, fazem um lindo par. E este Ivan, os
olhares que me lança! Alyocha, não deves gostar de Ivan...
ALYOCHA - Deixe de injuriar o meu
irmão...
IVAN - Ivan não é dos nossos. Não
tem a nossa alma.
ALYOCHA - Acabei de ver Dmitry.
FYODOR - O teu Dmitry! Vou
esmagá-lo com o meu sapato como uma barata!... Sei que gostas dele. Mas isso
não me preocupa. Se Ivan gostasse dele, então teria medo. Felizmente, Ivan não
gosta de ninguém. Ivan não é um homem como nós...
Os dois
monges reaparecem. à direita, no limiar da cela.
ALYOCHA (muito perturbado) - Meu pai, meu pai, o padre Zocima está a
chegar... Queria pedir-vos... suplicar-vos... É preciso atender à sua idade
avançada e à sua frágil saúde, à santidade do lugar, à gravidade das
circunstâncias...
FYODOR - Mas com certeza! A santidade...
Evidentemente que a terei em consideração... Achas que sou um vilão?
ALYOCHA - Não penso que sejais um
vilão, mas não conseguis dominar-vos. (O
padre Zocima aparece. Ivan e Smerdiakov aproximam-se. Alyocha a Ivan)
Irmão, tenho confiança em ti.
Aproxima-se
do padre Zocima.
CENA IX
Os mesmos, o padre Zocima, o padre Paisius, o
padre Iosif
Os dois
monges saúdam o padre Zocima que lhes retribui a saudação. Apoiado em Alyocha,
o religioso avança. Ivan, Fyodor e Smerdiakov atrás deles, à distância,
inclinam-se.
FYODOR (depois de um silêncio, inclinando-se de novo e balbuciando) - Santo velho! Que emoção...
ZOCIMA - Sentais-vos, senhores.
FYODOR (saudando e murmurando) - Obrigado...Obrigado... Um grande pecador,
certamente! Muito indigno...
ZOCIMA - Não vos preocupeis com
isso.
FYODOR - Não, não, calo-me...
reconhecido... (Num sobressalto) -
Não sem ter, previamente, não obstante, esclarecido uma certa dúvida: é
verdade, venerável padre, que o hábito de confessar os homens vos deu o poder
extraordinário de adivinhar à primeira vista as torturas morais que os
afligem?... Não, não é?...Exagerado? Muito exagerado!... Meu filho Ivan, mesmo
agora, parecia levar a sério essa lenda e, por minha fé, amedrontar-se!... (Para Ivan que acaba de lhe dizer por cima do
ombro qualquer coisa que não ouviu) O quê? Não? Não é verdade?... Bem. Bom.
Assim seja! Não disse nada... (Com ardor)
Ai de mim, mestre! Tendes perante vós um tagarela, um verdadeiro bobo: é assim
que eu me apresento!
ZOCIMA - Não tenhais vergonha de vós:
o perigo vem daí.
FYODOR - Justamente! Parece-me
sempre, quando entro em qualquer parte, que sou mais esperto que todos os
outros e que devem achar que sou um bobo. Então, faço como um bobo!...
Precisamente! Mas, com este temperamento, tenho muito medo de nunca alcançar a
vida eterna...
ZOCIMA - Chegareis lá, a pouco e
pouco. É preciso largar as garrafas, ter tento na língua, ser casto e não...
FYODOR (ajoelhando-se e batendo no peito) - Eu sou a mentira e o pai da
mentira, e o filho da mentira... Mas vós iluminastes-me!
ZOCIMA - Levantai-vos. Isso é ainda
um gesto mentiroso.
FYODOR (apanhado de surpresa) - Perdoai-me, santo pai, peço desculpa da
minha perturbação... É que, como vedes, duvidei um pouco nestes últimos tempos.
O meu querido filho Ivan, desde que me deu a honra de habitar em minha casa,
gosta de agitar certas questões à minha frente...
IVAN - Nunca agitei questões à
vossa frente.
FYODOR - Seja! Direi então que não
as agita mas que as coloca, questões como charadas, enigmas. E depois recusa-se
e faz de filósofo, brinca com o meu pobre espírito...
ZOCIMA (a Ivan) - Lamento-vos, senhor.
IVAN (sorrindo, com delicadeza) - Porque me lamentais?
ZOCIMA - Porque ainda não
resolveste o problema e ele precisa de ser resolvido.
IVAN (mesmo jogo) - Há uma solução?
ZOCIMA - Possa Deus ditá-la a
tempo! Que ele vos ajude e abençoe os vossos nobres sofrimentos...
FYODOR - Enquanto esperamos... com
todas essas ideias que circulam... Tenho de confessá-lo, a fé tranquila já não
habita o meu lar (Indicando Alyocha)
desde que este anjo o deixou! Pensa-se demais, à minha volta, e isso
perturba-me... Sim, até o meu lacaio! Este jesuíta que não venha perguntar-me
como é que a luz só foi criada ao quarto dia, quando as estrelas datam do
primeiro?... Então, a minha fé, que não era muito sólida, periclita de hora a
hora. Juro-o! Esta pergunta de lacaio foi a origem e a causa de todo a minha
degradação moral... (Para Ivan que, fora
de si, se dirige para a saída) Eh! Meu querido filho, que vais fazer? Não
te vás embora! Terminei... Volto à questão que nos trouxe aqui... Ah... ei-la:
santo padre, sede o juiz... Dmitry Fyodorovitch, o meu filho irreverente, a
vergonha da minha velhice, reclama de mim três mil rublos. Acusa-se de ter
escondido o dinheiro dos meus filhos nas minhas botas e de lhe recusar o que
lhe é devido. Mas eu tenho como responder. Possuo todos os documentos que
estabelecem o que possuía este jovem, o que ele despendeu e o que lhe resta...
Toda a gente está contra mim, mas Dmitry não é menos meu devedor, e não de uma
insignificância!
Dmitry,
saindo da capela, está em cena desde há um instante. Dirige-se, calmamente, de
chapéu na mão, em direcção do padre Zocima.
CENA X
Os mesmos, Dmitry
DMITRY (ao padre Zocima, respeitosamente) - Eu nunca percebi as contas que
o meu pai me fornecia. Mas afirmo...
FYODOR - Quem acreditará na palavra
deste patife? Em toda a cidade, só falam da sua devassidão. No regimento,
gastava mil ou dois mil rublos para seduzir raparigas honestas!
DMITRY (contendo-se) - Está a proceder mal comigo, pai. Eu sei o que o leva
a isso...
FYODOR - Não foi ele que enfeitiçou
uma menina de boa família, a filha do seu antigo coronel? Desonrou-a. E
agora...
DMITRY - Não vos deixarei caluniar
na minha presença a mulher mais nobre do mundo... E não quero participar no
escândalo que estais a provocar num lugar e perante pessoas tão veneráveis.
Acho melhor retirar-me...
FYODOR - Ah! Mitya, Mitya, que
farás se eu te amaldiçoar?
DMITRY (do limiar, elevando a voz) - Sou eu que vos amaldiçoo!
FYODOR - Ao teu pai! Ao teu pai!
DMITRY (dirigindo-se a Fyodor) - Todo o mal nos veio de vós. Infestastes a
nossa alma e a nossa vida... Juro, senhores, que não diria uma só palavra
contra ele. Mas, já que ele me insultou, vou revelar as suas infâmias, apesar
dele ser meu pai!
FYODOR - Dmitry Fyodorovitch, se
não fosses meu filho, desafiava-te para um duelo, a três passos, com um lenço!
ALYOCHA (a Ivan) - Irmão, impede-os...
DMITRY - Vosso filho! Alguma vez me
tratastes como filho? Mal a minha mãe morreu - ainda não tinha dois anos -
"esquecestes-vos" de mim na porteira, onde era devorado pelos
piolhos. E depois... Ivan, Aleksey, se o ignoram, eu vi este homem levar
prostitutas para sua casa, e organizar orgias sob os olhos de Sofia Ivanovna, a
vossa mãe!
ALYOCHA (agarrado ao braço de Ivan) -Ivan... Ivan...
DMITRY - Olhem... (Avistando Smerdiakov, agarra-o por um braço
e trá-lo horrorizado à boca de cena) - Esta galinha doente, esta rã
epiléptica... Apresento-vos Smerdiakov, meu irmão, sim: o próprio filho de
Fyodor Pavlovitch, de que ele fez o seu lacaio. Houve uma mal-cheirosa, uma
mendiga idiota de quem ele abusou enquanto ela dormia, numa vala à beira do
caminho!
OS MONGES (murmurando) - Basta, basta...É intolerável!
DMITRY - Pois que ele seja meu
irmão. Eu não valho nada. Mas tu, Ivan, que tens grandes aspirações... tu
Alyocha, que procuras Deus: Smerdiakov é vosso irmão: olhem para ele!
Larga
Smerdiakov que, a tremer, volta para o fundo do palco.
FYODOR (de punho erguido para Dmitry) - Expulsem-no! Expulsem-no!
DMITRY - Ah! Coroais bem a vossa
existência, meu pai. Mais do que despender um kopeck, teríeis preferido que o
vosso filho se tornasse um ladrão.
FYODOR - Não te devo nada, nada.
DMITRY - E com os vossos desejos
ultrajais a mulher que eu amo. Tendes orgulho em me roubar Gruchenka, não é?
Esperais por ela esta noite?
FYODOR (recuando) - Fui eu que a escolhi. Casarei com ela, se me apetecer.
DMITRY - Calai-vos!
FYODOR - Fica com Katerina!
Achá-la-ás dócil aos teus caprichos: essas jovens ternas e pálidas só amam os
devassos e os patifes. (Dmitry, sem
responder, atira-se sobre o pai, de punho levantado) Defendam-me,
defendam-me! Ele vai matar-me!
Fyodor
escapa-se, gritando. Dmitry corre atrás dele.
IVAN (intervindo e travando o caminho a Dmitry) - Pára, louco!
DMITRY (tremendo, sob a mão do irmão) - Para que serve a vida de um tal
ser? (Estão todos de pé. O gesto de
Dmitry foi seguido de grande estupefacção. O próprio Dmitry ficou atordoado. O
padre Zocima avança lentamente para ele e, subitamente, prostra-se a seus pés,
com a cabeça em terra. Dmitry, espantado, cobre a cara com as mãos, e depois
olha à sua volta) Porquê? Porquê?... Agora, tudo está acabado... vamos,
tudo está acabado! (Recua em direcção à
escada, depois retorna e interpela Ivan) Ivan! Não esqueças Katerina. Hoje
mesmo, vais cumprimentá-la... vais cumprimentá-la...
Desce a
escada a correr
FYODOR - (ao fundo, parlamentando com os monges) - Está bem, senhores, está
bem, vou-me embora, retiro-me... Talvez seja um bobo, mas sou um cavalheiro...
Sai. Os
monges seguem-no.
CENA XI
Padre Zocima, Alyocha, Ivan, Smerdiakov
O padre
Zocima continua ajoelhado. Alyocha inclina-se sobre ele. Ivan mantém-se à
direita. Smerdiakov aproxima-se dele.
SMERDIAKOV - Senhor, que significa
esta prostração?
IVAN - Não quebrarei a cabeça a
adivinhar enigmas.
SMERDIAKOV - Se não o tivésseis
segurado, tê-lo-ia morto.
IVAN (subindo) - Que importa! Um canalha comerá o outro. Terão o que
merecem.
ALYOCHA (que ergueu a cabeça às últimas palavras de Ivan, travando-o com um
gesto) - Irmão, julgas que um homem tem o direito de decidir se outro homem
é digno de viver ou não?
IVAN (com altivez) - Como num interrogatório!
ALYOCHA - Deves responder, Ivan.
IVAN - Para quê mentir? Se o homem
foi assim criado, que posso eu fazer? Se todos os desejos são permitidos?
ALYOCHA - Todos os desejos...
IVAN - Sim, Quem não tem o direito
de desejar?
ALYOCHA - Mesmo a morte de outrem?
IVAN (com impaciência) - Achas-me capaz, como Dmitry, de matar o velho,
hein?
ALYOCHA - Que dizes, Ivan? Nem tu,
nem Dmitry! Nunca acreditei...
IVAN - Então, porque coraste? (Acariciando-lhe o rosto) - Acalma-te,
pequeno. Defenderei sempre o pai, como acabei de o fazer.
ALYOCHA - Ah...
IVAN - Quanto aos meus desejos...
deixo-lhes toda a liberdade.
Sai,
precedido por Smerdiakov.
CENA XII
Padre Zocima, Alyocha
Durante as
últimas réplicas da cena precedente, o padre Zocima levantou-se. Encara Alyocha
com uma profunda emoção que o impede
de falar. Depois, aperta-o contra o peito, em silêncio.
ZOCIMA - O teu lugar já não é aqui,
meu filho... É tempo de ires para junto dos teus irmãos... não de um deles, mas
dos dois... Porque tremes?
ALYOCHA - Tenho medo. Essa
saudação... perante Dmitry?
ZOCIMA - Saudei o seu grande
sofrimento, que está para chegar... Apressa-te!
ALYOCHA (com receio) - Gostava da calma deste mosteiro. Eu amo-vos, meu
pai...
ZOCIMA - Alyocha, o teu coração já
se consumiu bastante no êxtase. Adeus... porque não apenas os meus dias mas
também as minhas horas estão contadas.
Enquanto
fala, o padre Zocima conduz Alyocha em direcção da escada. Depois, separa-se
dele.
ALYOCHA -(beijando as mãos do religioso) - Adeus, adeus...
Alyocha
começa a descer os degraus, a cara voltada para o padre Zocima, que se inclina.
ZOCIMA (no último momento, descendo um degrau, com as mãos estendidas para
Alyocha, e em voz baixa, confidencialmente) - Alyocha... se alguma vez
puderes carregar sobre ti o crime de outrem... sofre por ele e deixa-o partir
sem reprovação... Vai, meu filho, Cristo está contigo. Vai, meu filho, vai...
Alyocha,
desfeito em lágrimas, afasta-se. O padre Zocima abençoa-o e, quando ele já está
no jardim, segue-o muito tempo com os olhos, apoiado à balaustrada.
SEGUNDO ACTO
Na tarde do
mesmo dia, ao anoitecer. Em casa de Katerina Ivanovna. Uma sala elegantemente
mobilada. Janela à esquerda. Porta ao fundo, dando para o vestíbulo; portas à
direita, para um salão e à esquerda, para o quarto de Katerina.
CENA I
Ivan, Katerina
Estão em
cena ao subir do pano. Katerina, vestida de preto, está sentada junto de uma
mesa, com os cotovelos em cima e a cara entre as mãos, muito pálida e com ar
teimoso. Ivan vai e vem. Adivinha-se que uma conversa entre ambos, acaba de ser
interrompida pela violência de Ivan. Este pára e olha para Katerina.
Aproxima-se dela e inclina-se sobre a mesa que os separa.
IVAN (em voz baixa e trémula) - É triste, Katerina, que não sinta a
necessidade de ser feliz.
KATERINA (abanando a cabeça) - Conheço uma coisa mais imperiosa do que a felicidade.
IVAN (reerguendo-se, com um sorriso) - O dever!
KATERINA - Superior ao dever e que
me atrai...
IVAN - O amor do perigo, a
curiosidade do acaso!... Tudo o que fere o seu coração parece exaltar a sua
vontade. Não se sente viver senão desafiando a vida.
KATERINA - Porque a vida não é muito
bela.
IVAN (voltando-se para ela) - Ainda não pode saber como ela poderosa. Ela
encarregar-se-á disso.
KATERINA - Rezarei a Deus para que
me assista.
IVAN - O seu Deus!... Não podemos
fazer o que ele nos pede, a menos que possuíssemos dons extraordinários.
KATERINA - Todas as provas me
encontrarão pronta e só terei de me regozijar.
IVAN - Enquanto está à espera não
sei de que recompensa! E se não houver recompensa? Se não houver objectivo. Não
sabemos nada.
KATERINA - Podemos acreditar.
IVAN - Sim. Acreditar, admito...E enquanto esperamos? É a sua vida que
passa, a sua vida...a felicidade e a alegria sobre a terra!
KATERINA (quase com dureza) - Você não sabe sofrer.
IVAN - Sabê-lo-á você ainda muito
tempo?... E se forem precisos dez anos, quinze anos, para esgotar a sua
resistência inumana, para aceitar os seus verdadeiros sentimentos; se
reconhecer - demasiado tarde! - que mais vale a vida tal como ela é. Ah!
Katerina, terá consumido a sua juventude, o tempo mais belo, quando tudo era
ainda possível! Tê-lo-á gasto... numa luta defensiva, com esse fanfarrão, com
esse louco!
KATERINA (levantando-se) - Vencerei Dmitry, em breve.
IVAN - Irá perder-se com ele.
KATERINA - Tomarei conta dele, pela
constância do meu amor.
IVAN - É um devasso. Ao contrariar
os seus desejos só vai irritá-lo.
KATERINA - Há nele algo de nobre a
que saberei apelar.
IVAN - Vai envenenar as feridas da
sua alma, vai provocar na sua alma um combate terrível onde o que ele tem de
nobre não conseguirá porventura vencer o que ele tem de infame.
KATERINA - Nunca me falou assim.
IVAN - Poupe-me de fazer à sua
frente a figura de acusador do meu irmão.
KATERINA - Não me avisa de nada que
eu não tenha antecipadamente perdoado... Desde há três dias que o espero. Onde
quer que ele esteja, sei que pensa em mim. O que quer que ele tenha feito, é
preciso que volte. Quando se acusar, dir-lhe-ei: «Já sabia». Por mais tempo que
ele demore, não o esperarei com menos confiança...
IVAN (cortando súbito) - Katerina... foi Dmitry que me enviou.
KATERINA (cujo rosto se alterou) - Porque é que ele o enviou? Que é que ele lhe
disse? Quero saber exactamente...
IVAN (observando-a bem de frente) - Ordenou-me que a cumprimentasse... e
que lhe dissesse que não voltará mais.
KATERINA (aparentando calma) - E depois?
IVAN - É tudo.
KATERINA - Sempre o mesmo.
Cumprimentar-me... Foi essa a palavra que ele empregou?
IVAN - Insistiu mesmo nessa
palavra.
KATERINA - Estava certamente
exaltado, talvez fora de si?
IVAN - Não sei mais nada.
KATERINA - Estava assustado com a
sua decisão. Ao sublinhar a palavra, quis sublinhar a bravata.
IVAN - É possível.
KATERINA - Pensa ele deixar-me sem
réplica, com o seu cumprimento?
IVAN - Espero, pelo contrário, que
dareis a esta bravata a vossa mais gloriosa réplica!
KATERINA - Não acredita na minha
sinceridade?
IVAN - Oh! Mesmo nos piores
excessos; sincera até na mentira.
Entra uma
criada.
CENA II
Os mesmos, uma Criada
A CRIADA - Aleksey Fyodorovitch
Karamazov pergunta se a menina o pode receber?
KATERINA - É o seu irmão, Ivan.
Fico radiante que ele tenha vindo (Para a
criada) Mande-o entrar.
A CRIADA - Há também essa senhora
que a menina...
KATERINA - Está bem... Que ela
entre para o salão. Já vou ter com ela. (A
criada sai. Katerina reaproximando-se de Ivan) Ivan Fyodorovitch, se vê no
fundo de mim - com os seus olhos penetrantes - suplico-lhe... se é
verdadeiramente aquele em que acreditei, aquele que admiro e que tantas vezes
me socorreu... suplico-lhe que continue a apoiar-me no caminho que tracei.
Tenho sofrido muito. Estou preparada para continuar a sofrer. Pode ser que um
dia me arrependa de lhe ter desobedecido. Mas quero ir até ao fim. Preciso de
todas as minhas forças. E, sem o seu apoio, o que será de mim?
Ivan e
Katerina estão de pé à direita, próximos um do outro. Ivan baixa a cabeça e
apoia a mão numa pequena mesa. Katerina, continuando a falar, colocou a
sua mão em cima da de Ivan. Alyocha,
entrando, envolve-os num olhar.
CENA III
Ivan, Katerina, Alyocha
ALYOCHA (a meia-voz, saudando) - Deus seja convosco.
KATERINA (dirigindo-se-lhe com vivacidade) - Aleksey Fyodorovitch... Alyocha,
- posso chamar-lhe assim? Fico muito feliz em vê-lo!
ALYOCHA (olhando alternadamente para Ivan e para Katerina) - Perdoe-me,
menina. Acho que a minha visita é inoportuna. Mas estou de tal forma inquieto
com o meu irmão Dmitry, ele corre um grande perigo... Com certeza que o meu
irmão Ivan já lhe disse...
KATERINA - Que Dmitry não me quer
ver mais, sim.
ALYOCHA - Corri para junto de si
porque julgo que é a única pessoa que o pode salvar.
KATERINA - Sente-se, Alyocha... Vai
dizer-me francamente, sem cuidado de me poupar, o que é que pensa das suas intenções,
depois... de tudo o que se passou nos últimos dias.
ALYOCHA - Oh! ... Não percebo
grande coisa acerca desse tipo de assuntos.
KATERINA - A sua palavra é a mais
pura que posso recolher.
ALYOCHA - O meu irmão cometeu
muitos erros. Mas sabe que pecou. Ele não é mau. Ele ama a Deus... Ele gosta de
si. Entrou no seu coração, profundamente, como um dardo que já não poderá
arrancar. Ele gosta de si... e contudo eu penso que lhe mete medo. Você é o seu
melhor pensamento... e esse pensamento atormenta-o.
KATERINA - Vejamos. Ele falou-lhe
de uma importância em dinheiro, de três mil rublos?
ALYOCHA - Ah! Você sabe?
KATERINA - Adivinhei que ele não a
iria conseguir! Ao confiar-lha, eu pu-lo à prova...
IVAN - É esse o seu jogo!
ALYOCHA - É assim que procura
humilhá-lo?
KATERINA - Queria envergonhá-lo,
que ele viesse para mim, como para Deus, e que compreendesse finalmente que sou
capaz de todos os perdões.
IVAN - Pois bem, ele não veio!
KATERINA - Portanto, ele ainda não
me conhece?
ALYOCHA - E agora, que perdeu a
honra, tudo lhe é indiferente.
KATERINA - Que ele venha! Eu o
acolherei, eu o consolarei.
ALYOCHA - Mesmo sabendo... porque
ficou ele com o dinheiro?
KATERINA - Para me enganar com essa
Gruchenka, para fugir com ela, não é verdade? E você acredita que vou abandonar
a luta porque Dmitry sofreu um arrebatamento passageiro? Porque não é amor,
está a entender? Ele não pode gostar dela!
IVAN - Contudo...
KATERINA - Gruchenka é uma sereia!
É o que me vai dizer. Uma mulher irresistível; e que eu não suportaria mesmo o
seu olhar?
ALYOCHA - Ela é pérfida e perigosa.
KATERINA - Vamos ver se essa
rapariguinha leviana tem mais firmeza e mais força do que eu, se os seus
encantos, mais do que o meu amor, conseguirão prender um coração nobre, ou se não
serei eu a fazê-lo largar esse coração... (Indicando
a porta à direita) Gruchenka está aqui. Ireis conhecê-la.
IVAN - Katerina Ivanovna, não
assistirei a essa cena. Permita-me que me despeça.
KATERINA (imperiosa) - Fique, Ivan Fyodorovitch. Quero que fique.
IVAN (trocista) - De facto, você vai domar essa fera!
KATERINA - Já fiz coisas mais
difíceis, pode crer. (Abre a porta à
direita) Agrafena Aleksandrovna, estamos impacientes por vê-la.
GRUCHENKA (antes de entrar, com voz arrastada) - Estou aqui, menina. Estava à
espera que me chamassem.
CENA IV
Os mesmos, Gruchenka
Gruchenka
está elegantemente vestida. O seu rosto sorridente tem uma expressão ingénua e
quase infantil. Mais do que andar, desliza, com tímidos movimentos de cabeça.
KATERINA (apresentando) - Ivan Fyodorovitch... (Gruchenka faz uma reverência, Ivan mal a cumprimenta) Aleksey
Fyodorovitch... (Gruchenka olha-o com
curiosidade e acena com a cabeça. Alyocha inclina-se. Katerina, que fez um
gesto para convidar Gruchenka a sentar-se, olha-o um momento, e depois, um
pouco constrangida, mas com dignidade) Espero que não tenha interpretado
mal a minha atitude estranha: queria conhecê-la... Agradeço-lhe que tenha vindo.
GRUCHENKA (com afectação) - Oh! Agradecer-me... Oh! Sou eu, menina, que lhe
estou grata por não me ter desdenhado.
KATERINA (esforçando-se) - Não creio que com essa cara seja desdenhada muitas
vezes... (Para Ivan) Viu que lindos
cabelos?
GRUCHENKA (sorrindo) - Fico confusa. Mas cuidado: se me lisonjeiam assim, vou
desconfiar.
KATERINA (cuja voz treme ligeiramente) - Apenas desejo que haja entre nós uma
explicação leal.
GRUCHENKA (com um gesto brusco) - Chut!... (Indicando a porta à esquerda) Está ali alguém...
Levanta-se
de repente.
KATERINA - É a criada.
GRUCHENKA - Tem a certeza? Não
escutam atrás da porta?
KATERINA - Mas o que tem?
GRUCHENKA - Chut!... (Encostou o ouvido à porta e pôs-se à escuta) Sou estúpida! Julguei que era
Dmitry Fyodorovitch... Ao vir aqui, julgo que o avistei duas vezes. Não posso
dar um passo sem que ele me espie. Oh! Tenho medo! Prometem-me que não virá?
KATERINA - Vejamos...
GRUCHENKA - Então, fico contente...
Não quero que ele me veja! Há três dias que fujo dele. Se ele soubesse agora
que menti... Ah! Estava tudo perdido! Passaram-se tantas coisas que ele não
deve saber... É por isso que estou nervosa. Podiam fazer-me uma armadilha...
A criada entra. Traz uma travessa com
chocolate, bolos e compotas.
KATERINA - Aceita uma chávena de
chocolate... bolos? A menos que prefira champagne? Champagne... sim?
GRUCHENKA - Gosto de chocolate.
A criada
sai. Katerina enche as chávenas.
KATERINA - E de compotas, também
gosta?... Eu mesmo vou servi-las.
GRUCHENKA (rindo alegremente) - É muito, é muito!
KATERINA - Cigarros?... (Acendem os cigarros) E... poderei
perguntar quais são as... coisas de que faz tanto mistério a Dmitry?
GRUCHENKA (voltando-se na cadeira e aplaudindo) - Ah! Pois...Pois... É curiosa!
Sabia bem como intrigá-la. E se eu me divertisse agora a deixá-la na
expectativa?... (Para Alyocha) Isto
também lhe interessa? Mas não são coisas para contar diante de um noviço!
KATERINA - Está a fazê-lo corar...
GRUCHENKA - É bem feito! Ele
desviou os olhos, ainda agora, ao passar por mim na escada. Adivinhei que era
ele, e fiquei furiosa porque pensei que ele me desprezava... (Para Alyocha, que olha para ela sorrindo)
Não ficou zangado? (Alyocha abana a
cabeça negativamente) Quer estender-me a mão? (Alyocha estende-lhe a mão) Meto-lhe medo?
ALYOCHA - Não, minha irmã.
GRUCHENKA - Como ele disse isto!...
Nemo sei porque mesmo eu estou tão contente de o ver...
KATERINA (aproximando-se de Gruchenka) - Estamos aqui entre amigos.
GRUCHENKA (continuando a olhar para Alyocha) - O seu irmão falou-me muitas
vezes de si. Eu que sou indigna, pensava: «Como um tal homem me deve
desprezar!» Mas nunca vi um olhar tão bondoso como o seu... (Alegremente) Também eu sou boa hoje. (Para Katerina) Aproveite, querida
menina; e apresse-se porque estou pronta para voar para longe!
KATERINA (agarrando-lhe a mão, desajeitadamente) - O meu coração tinha-me
dito que nós as duas arranjaríamos tudo.
GRUCHENKA - Não quero fazer mais
mal a ninguém. Se o fiz, prometo repará-lo.
KATERINA (beijando-lhe a mão) - Ah! Como é generosa!
GRUCHENKA - Quer confundir-me,
querida menina, ao beijar-me a mão diante de Aleksey Fyodorovitch?
KATERINA - Confundi-la? Eu!
GRUCHENKA - Não se assuste...
Antigamente, eu era má porque sofria.
KATERINA - Sofreu?
GRUCHENKA - Isso foi há cinco anos!
Tudo está esquecido, porque ele voltou.
KATERINA - Voltou, quem?
GRUCHENKA - Mussialovitch... É
verdade! Não sabe quem é Mussialovitch?... É o meu apaixonado... sim, o
primeiro, um oficial polaco. Eu tinha dezassete anos, não mais, quando ele me
abandonou para se casar. Ah! Que miséria! Ter-me-ia lançado à água se, nessa
altura, o velho mercador Samsonov não me tivesse recolhido.
KATERINA - Ele salvou-a!
GRUCHENKA - É demasiado indulgente.
KATERINA - Consolou-a,
protegeu-a...
GRUCHENKA - Eu não o enganava,
sabe. Pensava muito nisso!... Durante cinco anos, alimentei-me do meu amor, do
meu rancor. Escondia-me de toda a gente e soluçava noites inteiras a pensar:
«Onde estará ele agora? Sem dúvida ele troça de mim com outra mulher.
Vingar-me-ei!» E chorava até ao nascer do sol.
KATERINA (beijando-lhe a mão) - Compreendo-a... Como eu a compreendo!
GRUCHENKA - E depois pus-me a
juntar dinheiro; fui implacável. Tornei-me forte... Contudo, não me tornei mais
razoável e, muitas vezes, durante a noite,
cerrando os dentes, choro como chorava, há cinco anos, a pequena
abandonada.
KATERINA - Continua a amá-lo, ao
belo oficial, nunca amou outro a não ser ele!
GRUCHENKA - Está a defendê-lo
exageradamente, querida menina, está a ir muito depressa... Talvez eu só ame o
meu rancor... Mas, de repente, recebi uma notícia, uma notícia abençoada! Mussialovitch
enviuvou. Não terei esperado, chorado, enraivecido em vão durante cinco anos!
Ele está viúvo. Vai chegar. Quer ver-me: «Senhor, pensei eu, vou rastejar até
ele? Serei tão covarde?» E odiei-me por isso!... Foi então que me servi de
Dmitry...
KATERINA - Serviu-se de Dmitry?
GRUCHENLA - Por maldade... Para me
distrair, para impedir de me precipitar para o outro. (Katerina troca um olhar com Ivan. Gruchenka surpreende-a mas continua)
O velho Fyodor também me perseguia. E eu divertia-me com eles... Era preciso
escutar os conselhos de Samsonov: «Se tiveres de escolher entre os dois,
disse-me ele, escolhe o velho, na condição que ele case contigo e que te dê
dinheiro. Não te ligues a Dmitry, ele não tem nada para tirar!» Era verdade.
Mas, o dinheiro, eu não me importo. Eu tenho-o. E Dmitry agradava-me muitas
vezes... É bonito, é bravio, é um coração ardente. Ah! Vou ter saudades
dele!... Mussialovitch está à minha espera na estalagem de Mokroye...
KATERINA - Parte mesmo esta noite?
GRUCHENKA - Já está na hora?... Ah!
Quem pode saber o que se passa em mim? Pus o meu melhor vestido para ir ter com
ele... Mas Dmitry, se ele soubesse que parto... Pobre ingénuo Mitya! Que vai
ser dele quando o deixar, quando o tiver abandonado... E porquê?... Será que eu
amo esse polaco, Alyocha? É preciso perdoar?
ALYOCHA - Já perdoou...
GRUCHENKA - Então, vou?... Se não
for por amor, será por vingança. Vou seduzi-lo, enlouquecê-lo, e depois
abandoná-lo para que seja ele desta vez a chorar!
Deixa-se
cair sobre um sofá e chora, com a cabeça entre as almofadas.
KATERINA (vindo sentar-se ao lado dela e tomando-a nos braços) Não, pequena
Gruchenka. Vai esquecer o mal e será ainda feliz... Aqui, aqui... enxuguemos os
nossos lindos olhos... Aqui, dê-me as suas mãos doces, as suas lindas mãos que
eu quero beijar outra vez, porque elas me trouxeram alegria... Não Grucha, meu
pássaro, não voltaremos a ouvir a nossa cabeça fantasiosa, seguiremos o caminho
certo, isto é: ser boa e generosa.
GRUCHENKA - Eu sou má, eu não sou
boa. Fiz com que Dmitry ficasse apaixonado por mim para me rir dele. Levei-o ao
desespero...
KATERINA - Mas agora vai salvá-lo.
GRUCHENKA - Porque desapareço?
KATERINA - Vai desenganá-lo,
fazer-lhe compreender...
GRUCHENKA - Que ele gosta de si?
KATERINA (com paciência) - Que você gosta doutro, que tudo isto era apenas um
jogo.
GRUCHENKA - Oh! Querida menina,
seria provocar-lhe um grande sofrimento! Quer que ele sofra, o seu Mitya?
Julga-me tão cruel?...
KATERINA - Contudo, prometeu-me...
GRUCHENKA - Ah! Não, não, não
prometi nada. Não diga que lhe prometi. Foi você, Katerina Ivanovna, que
congeminou isto tudo...
KATERINA - Quer dizer que não a
compreendi? Ainda agora disse...
GRUCHENKA - Que é que eu disse?
KATERINA - Que iria remediar...
GRUCHENKA - Bem, bem... Posso ter
prometido ainda agora qualquer coisa, mas não sei o quê... Não me lembro, neste
momento, que Dmitry me agradasse. O gosto que se tem de um homem como ele não
passa tão facilmente. Ele agradou-me, certa noite, durante uma hora inteira. E
se ele ainda me agradar?... Sou tão inconstante, tão caprichosa. (Katerina afasta-se, com despeito. Gruchenka
vai ter com ela, com doçura) O meu coração é terno, sabe isso. Quando penso
em tudo o que o pobre rapaz já suportou por minha causa... E se eu tiver
piedade dele, que fazer?
KATERINA (não aguentando mais) - Espera que eu me humilhe mais?
GRUCHENKA - Ah! Acho que você, que
é tão boa, já não vai gostar de mim! Peço-lhe perdão... (Agarra-lhe a mão. Katerina, completamente desconcertada, deixa-se ir)
Dê-me a sua querida mãozinha. Beijou a minha três vezes; seria preciso que eu
beijasse a sua trezentas vezes para ficar desobrigada para consigo... Então,
queremos que se cumpra a nossa vontade, sem promessas nem condições? Ficaria
muito feliz se deixássemos o nosso Dmitry e nos fôssemos embora, hein? Querida
menina! Que mãozinha encantadora!... Pois bem, sabe, meu anjo, sabe?... Não
quero beijar a sua mão!
Deixa cair
bruscamente a mão de Katerina.
KATERINA (subindo, para Alyocha) - Aleksey, leve-a...
GRUCHENKA - Conservareis esta
recordação, Katerina Ivanovna: beijou a minha mão e eu não beijei a sua.
KATERINA - Insolente!
GRUCHENKA - Ah! Pensava
controlar-me! Arranjou tudo. Pretendia seduzir-me com o seu chocolate! (Desatando a rir) Contarei a aventura a
Dmitry. Ele vai rir-se às gargalhadas!
KATERINA - Saia, criatura venal!
GRUCHENKA - Venal? Diga minha
mãezinha, você que faz de rapariga virtuosa, se não foi, uma noite, sozinha, a
casa de um bonito oficial, oferecer a sua virgindade por quatro mil rublos? (Katerina faz um gesto violento na direcção
de Gruchenka. Ivan segura-a. Gruchenka, rindo) Num cabaret, uma noite em
que estava bêbedo, Dmitry contou-me os vossos amores!
ALYOCHA (agarrando-a) - Saia daqui, imediatamente!
GRUCHENKA (para Alyocha) - Hein, meu menino? Desempenhei bem o meu papel. Ela
queria uma representação, a menina; pois teve-a! E agora, parto para Mokroye!
Ah! Numa embriaguez! Adeus, a todos... Alyochetchka, cumprimentos a Dmitry...
Não esquecerei que me chamaste: minha irmã... Diz ao tenente que Gruchenka o
amou apenas uma hora, mas que se recordará dele a vida inteira!
Sai.
CENA V
Katerina, Ivan, Alyocha
IVAN (para Katerina) - Aqui está o resultado da sua imaginação de
pensionista colegial, das suas aventuras sentimentais! Pois bem, já viu a
rapariga? Ela insultou-a e você ficou ciumenta!
KATERINA (com a cabeça entre as mãos, sem lágrimas, num grunhido) - Tenho
vergonha... (Ivan e Alyocha observam-na
em silêncio. Um tempo) Vão-se embora, meus amigos. Estou terrivelmente
envergonhada... (Ivan e Alyocha recuam
para o fundo) - Não, fiquem... (Levanta-se)
Já nem sei mesmo se gosto dele... (Alyocha
faz um movimento para falar) Mas tomei uma decisão. O que quer que
aconteça, mesmo se ele casar com essa criatura, não o abandonarei, nunca,
nunca! Segui-lo-ei com os olhos, velarei por ele. Ficará finalmente a saber o
que eu valho. É tudo. E isso será toda a minha vida... (Sem olhar para Ivan, e com a voz entrecortada) Meu caro Ivan,
espero... que me aprove?
O queixo
abate-se-lhe sobre o peito e soluça silenciosamente. Ivan desviou-se.
ALYOCHA - Katerina Ivanovna, ao
dizer-lhe ainda agora que devia salvá-lo... enganava-me, não sabia... Sofre
demasiado... Isso não é possível!
KATERINA (dominando-se) -Não é nada, não é nada... Um pouco de fadiga...
Noites sem sono... Mas vai passar... Com dois bons amigos como você e o seu
irmão, sinto-me forte...
IVAN (com a voz embargada) - Infelizmente, parto para Moscovo esta noite.
KATERINA (chocada, mas contendo-se) - Esta noite, para Moscovo?
IVAN - É
inevitável.
KATERINA -
Não me tinha dito... É um tanto inesperado...
IVAN - Não
posso ficar mais tempo...
KATERINA -
Não me deve explicações, meu amigo... Uma vez que a sua decisão está tomada...
Mas quando pensa regressar?
IVAN - Não
sei.
KATERINA -
Então... adeus.
Há um silêncio. Alyocha observa Ivan e
Katerina, sem ousar dizer alguma coisa. Katerina está imóvel, à esquerda. Ivan
aproxima-se lentamente dela.
IVAN -
Adeus, Katerina... Deixo-a entregue aos seus deveres difíceis, aos seus
exercícios de consciência. (Com mais
aspereza) Use a sua existência na contemplação das suas virtudes. Possa
tirar delas uma glória suficientemente bela para se sentir finalmente consolada...
de tudo o resto.
KATERINA (rígida, com os lábios trémulos) - Boa
sorte, Ivan Fyodorovitch... Espero alcançar, sem si, o objectivo da minha
existência... Porque eu tenho, também eu, uma vontade que não se dobra.
Ivan dá alguns passos para sair.
ALYOCHA - Ivan,
não te vás embora! Tudo isto é falso... Não deves partir!
IVAN - Não
tenho mais nada a fazer aqui.
ALYOCHA -
Dá a Katerina tempo para recuperar.
IVAN - Não
ouviste que ela tomou uma decisão?
ALYOCHA -
Foi uma reacção passageira.
IVAN - As
suas mínimas reacções comprometem-na para sempre.
ALYOCHA -
Fala-lhe...
IVAN - Já
disse tudo e parto para sempre...
ALYOCHA (desesperadamente, para Katerina) - Vai
deixá-lo partir assim?... Ivan, Katerina, conjuro-vos... Querem usar as vossas
forças para um combate sem piedade? Não aceitam a verdade?
KATERINA (revoltada) - A verdade?
ALYOCHA -
Desde que aqui cheguei, procuro-a nas vossas caras. Debatem-se contra ela. É
preciso que alguém a diga, finalmente! Oiçam... Eu sei que me exprimo mal...
Sou incapaz de decidir em semelhante caso e de determinar o vosso comportamento...Sei
que vos vou magoar... Mas não seria melhor que Dmitry tomasse a mão de Ivan,
depois a sua e que os unisse?... Parece-me, Katerina, que você não gosta de
Dmitry, e aquele a quem ama... é ele!
KATERINA (com cólera) - Está doido!
ALYOCHA -
Está a violentar-se, a torturar-se, para amar Dmitry. E a fazer sofrer Ivan,
porque é dele que você gosta...
IVAN -
Estás enganado. Katerina nunca gostou de mim. Ela nem sequer se importa com a
minha amizade que ainda agora implorava. Tinha-me debaixo da mão, estás a ver,
para se vingar em mim dos ultrajes que Dmitry lhe infligiu desde o seu primeiro
encontro. Ela não deixava de me falar desse amor!
KATERINA (torturada, estendendo as mãos a Ivan) -
Ivan!
IVAN - Não, não apertarei a sua mão
porque neste momento não poderia perdoar-lhe; atormentou-me muito,
conscientemente... Porque amava Dmitry! Necessita dele como uma prova do seu
espírito de sacrifício, da sua força moral. Quanto mais ele for humilhado, mais
se sentirá grande. Cada um dos seus crimes é um ganho para si. É assim que
gosta dele, ou melhor, o seu orgulho!
KATERINA (num queixume) - Ivan...
IVAN - Mas passará a medida das
suas forças e das dele. E isso será a minha vingança!
ALYOCHA - Oh! Irmão...
IVAN - Nem mais uma palavra! Vem...
Sai.
CENA VI
Katerina, Alyocha
ALYOCHA - Ah! Agora, não voltará
por nada deste mundo! A culpa é minha. Provoquei a sua cólera. Perdoe-me. Ele
foi injusto e cruel. Perdoe-lhe Katerina. Perdoe aos meus dois irmãos. Eles
possuem como que um instinto frenético e selvagem, donde o espírito de Deus
está porventura ausente: é a alma dos Karamazov!... Não se vingue. Não faça
nada contra eles. Vou encontrá-los, falar-lhes. Impedirei que o desespero entre
no seu coração!... Coragem, Katerina, coragem. Que Deus a guarde!
Sai.
CENA VII
Katerina.Uma Criada
Katerina
permaneceu imóvel durante toda a cena anterior. Quando Alyocha saiu, levou as
mãos ao rosto e ficou assim durante algum tempo. Depois dirigiu-se lentamente
para um sofá e sentou-se, os cotovelos sobre os joelhos, o queixo sobre a palma
das mãos. A Criada entra. Levanta a mesa, sai, regressa com candeeiros, corre
as cortinas e torna a sair, não voltando a reaparecer. Ouve-se tocar. Katerina
estremece, sem se mexer. Uma porta bate. Passos precipitados na antecâmara.
Dmitry, quase a correr, aparece. Katerina levanta-se. Na penumbra, Dmitry não
se apercebe dela. Procura à volta. Atravessa a sala para passar à outra divisão
e encontra-se diante da noiva. Então recua, baixando a cabeça.
CENA VIII
Katerina, Dmitry
DMITRY (com voz surda) - Onde está Gruchenka?
KATERINA - Miserável! Eis o mais
hediondo dos teus crimes... Num cabaret, disseste tudo a essa rapariga, todos
os nossos segredos!
DMITRY (com profunda contrição) - Estava embriagado... As ciganas
cantavam... Mas, ao falar, eu soluçava... Gruchenka também chorava...
KATERINA - Manchaste as
recordações... do dia mais belo. Oh! Como eu amaldiçoo esse dia!
DMITRY - Também eu o amaldiçoo.
KATERINA - Portanto, sempre me
desprezaste por eu ter ido buscar o dinheiro a tua casa... Não compreendeste
nada, não podes compreender nada de nobre... Eu queria suportar as tuas traições.
Ainda esta manhã, estava resolvida a perdoar-te tudo... Mas não o teu desprezo,
não o teu desprezo, isso é superior às minhas forças!
DMITRY (com uma alegria selvagem) - Enfim! Sede a minha inimiga!
KATERINA - Tem cuidado... Não sabes
o que eu te sacrifiquei...
DMITRY - Que fizeste a Gruchenka?
KATERINA - Mitya, escolhe -
enquanto é tempo - escolhe por nós os dois... o bem ou o mal...
DMITRY - Não posso escolher. Chega
de lutas! Quero repousar na vergonha... Tem piedade de mim, Katya, estou
exausto... Desde esta manhã corri os prestamistas em busca de dinheiro... Todos
me recusaram... Mas devolver-te-ei os teus três mil rublos, nem que tivesse de
ir para a Sibéria. Prefiro a prisão ao teu amor. Vou devolver-tos... E depois
adeus, mulher irascível; adeus também, meu amor! Ter-me-ei perdido para não ter
de suportar o teu orgulho e por já não
te amar... Não desprezes Dmitry. Lamenta-o. Estás a ver, beijo os teus pés...
Diz-me onde está Gruchenka. Enquanto corria, ela escapou-se. Procuro-a por toda
a parte. Todos me enganam. Sei que ela veio aqui. O que é que tramaram ambas
contra mim?
KATERINA (rangendo os dentes) - Ela insultou-me, troçou de mim.
DMITRY - Ah! Ah! A feiticeira, a
rainha da insolência! Tanto pior para ti: afectavas grandes ares!... Ela ainda
aqui está? Responde! (Katerina cala-se)
Onde está ela? Suplico-te, em nome do Senhor, diz-me onde ela está? (Silêncio) Partiu? (Katerina sacode a cabeça afirmativamente) - Em casa do meu pai? Foi
a casa do velho buscar os três mil rublos? Sim? Ela disse-te? Gabou-se disso?
Sei que ele esperava por ela esta noite... (Katerina
cala-se obstinadamente. Dmitry, com a voz alterada, numa angústia terrível)
Ah! Implacável!... Mas tu não és falsa... Diz-me só uma palavra... Ainda que
sejas minha inimiga, tenho fé em ti, Katerina, tenho confiança na tua
palavra... Diz-me, achas Gruchenka capaz de ir a casa do velho para ganhar três
mil rublos?
KATERINA (depois de uma luta interior, com esforço, mas firmemente) - Acho-a
capaz de tudo...
DMITRY (pulando) - Obrigado. Vou lá!
Sai a
correr e fecha a porta atrás de si.
KATERINA (tomando bruscamente consciência do que acabou de fazer) -
Dmitry!... (Abre a porta e precipita-se
para o exterior. Ouvimo-la gritar: «Dmitry! Dmitry!» Depois volta a entrar, o rosto transtornado, torcendo as mãos)
Oh!... Ele quer matar! Ele quer matar!
TERCEIRO ACTO
Noite do
mesmo dia. Em casa de Fyodor Pavlovitch Karamazov. Um grande salão branco e
dourado. Mistura de luxo e
decadência. Uma pequena lamparina ilumina um ícone. À esquerda, em primeiro
plano, uma janela; em segundo plano, uma porta dando para o jardim. Ao fundo,
uma porta que conduz ao escritório. Porta à direita, em segundo plano, sob o
vão de uma escada que dá acesso a uma galeria de madeira, para a qual se abrem
os quartos.
CENA I
Dmitry, Smerdiakov
Ao subir o
pano a cena está vazia. A porta da esquerda abre-se bruscamente. Dmitry
atravessa o salão a correr e desaparece pela porta da direita. Ouvimo-lo falar
alto e depressa com Smerdiakov antes que ambos entrem em cena.
DMITRY - Queres dizer-me onde ela
se escondeu?
SMERDIAKOV - Juro-vos, senhor, que
Gruchenka não se encontra aqui. Pode verificar.
DMITRY - Mas veio?
SMERDIAKOV - Não.
DMITRY - A que horas virá?
SMERDIAKOV - Não antes da
meia-noite. O senhor tem de se ir embora...
DMITRY - Onde é que ele vai
recebê-la?
SMERDIAKOV - Aqui... Fyodor
Pavlovitch não deve tardar. Se ele o encontrasse...
DMITRY - Ela entra pela grade?
SMERDIAKOV - Sim.
DMITRY - E baterá na vidraça?
SMERDIAKOV - Já vos disse que sim.
Por favor, senhor, ide-vos embora!
DMITRY - Duas pancadas espaçadas,
seguidas de três rápidas? É isso?
SMERDIAKOV
- É isso, sim. Passe pela cozinha, e fuja pela porta pequena.
DMITRY (saindo pelo fundo) - Até à meia-noite eu
espreito!
Smerdiakov empurra-o à sua frente. Reaparece no
momento em que Ivan entra pela esquerda.
CENA II
Smerdiakov, Ivan
Ivan
atravessa o palco sem dizer nada. Evita Smerdiakov e vai subir a escada.
SMERDIAKOV - Estou numa situação
horrível, Ivan Fyodorovitch! Eu já não vivo. O vosso irmão é capaz de tudo.
Acaba de entrar aqui, como um louco, empurrando os móveis, rebuscando nos
quartos, e ameaçando-me com uma pistola.
IVAN - Porque te meteste nisto?
SMERDIAKOV - Foi ele que me meteu.
Guardei silêncio, não ousando contradizê-lo. Ele fez de mim o seu confidente.
IVAN - Tanto pior para ti.
SMERDIAKOV - Nem toda a gente tem a
vossa prudência.
IVAN - Eu defendo-te!
SMERDIAKOV
- E o vosso pai atormenta-me de manhã à noite. Se Gruchenka não vier esta
noite...
IVAN - Ela
não virá.
SMERDIAKOV
- Como sabeis?
IVAN - Eu
sei. Boa noite. Não vou jantar.
SMERDIAKOV
- Amanhã de manhã tudo vai recomeçar: «Porque é que ela não veio? Quando é que
ela virá?» Como se fosse culpa minha... Ah! Vão os dois irritar-se ambos de dia
para dia e tornar-me a vida de tal maneira insuportável que, às vezes, penso
matar-me, para acabar com isto tudo.
IVAN (desaparecendo no seu quarto) - E que
tenho eu com isso?
Mal Ivan fechou a porta, ouve-se a voz de
Fyodor.
CENA III
Smerdiakov, Fyodor
FYODOR (de fora) - Smerdiakov! (Entra
pecipitadamente) Smerdiakov... ele está aqui... Dmitry!... atrás da sebe...
Vi a sua cabeça entre os ramos... está à espreita...
SMERDIAKOV - Sentai-vos, senhor,
estais sem fôlego.
FYODOR (deixando-se cair numa poltrona) - Fecha a porta... Corre a procurar
Grigory. Chama-o! Vai!
Smerdiakov
sai. Fyodor enxuga-se e geme na poltrona.
CENA IV
Smerdiakov, Grigory, Fyodor
FYODOR (em voz baixa) - Ah...ah... eis-te aqui meu velho Grigory, meu bom
Grigory! Aproxima-te.
GRIGORY - Não receeis nada, mestre.
FYODOR - Dá-me a mão, meu bravo
Grigory, meu firme Grigory, meu guarda-costas, eh! eh! Não tenho medo quando
estás aqui, cão fiel... (Grigory ri,
silenciosamente) Olha para mim...
GRIGORY - Sim, mestre.
FYODOR - Como é que me achas, tu
que conheces o meu aspecto?... Não tenho vermelho o olho direito?
GRIGORY - Não, mestre!
FYODOR - Então, nada de anormal?
GRIGORY - Nada, mestre.
FYODOR (tranquilizado, mostrando a Smerdiakov os pacotes que trazia quando
entrou e que não largou) Estás a ver, são pequenos presentes para a minha gatinha.
Chocolates, caramelos, bombons... (retomado
pela ansiedade, para Grigory) Ah! Não me senti bem, a noite passada,
paizinho. Acordei de repente. Não sei o que tinha. A minha alma tremia-me na
garganta. Tive medo. É que eu quero viver, tu sabes!
GRIGORY - Talvez tenha comido
demais. Seria melhor purgar-vos. Eu faço isso algumas vezes...
SMERDIAKOV - Grigory Vassiliev,
purgar-se é uma impiedade. A oração é suficiente a um bom cristão para curar
todos os males. Ou não acredita?
Fyodor
reprime dificilmente o riso.
GRIGORY - É preciso sovar este
malandro. Não respeita nada.
FYODOR - Está bem... Por Deus, não
percebes nada de espíritos cultos! É como o outro velho, no mosteiro: «Não
minta», disse ele!... Credo! Seria preciso destruir esses conventos e o seu
misticismo para devolver a inteligência aos tolos. Tudo isto é uma porcaria...
Vou mergulhar a cabeça na água... Prepara a ceia, Smerdiakov... Quanto a
Dmitry, o pulha! Vou mandá-lo prender. Estou no meu direito... ele ameaçou-me
em público... existem leis...
Continuando
a resmungar, subiu a escada e entrou no seu quarto.
CENA V
Grigory, Smerdiakov
GRIGORY - O que é que se passou,
esta manhã, no mosteiro?
SMERDIAKOV - Uf... maluqueiras,
escândalo.
GRIGORY - Portanto, o santo velho
não os reconciliou!
SMERDIAKOV - Fyodor não cederá. E
nada reterá Dmitry. Cheira a crime, aqui, Grigory Vassiliev... Ivan só espera
isso. Troça deles e vai regalar-se à sua custa. Esse não é parvo.
Enquanto
falava, tirou da algibeira um estojo e passa um pente pelos cabelos.
GRIGORY (persignando-se) - Cala-te, canalha!
SMERDIAKOV (entre dentes) - Trata-me como um lacaio... Conheço-o melhor do que
ele a mim.
GRIGORY - Porque estudaste em
Moscovo, tomas-te por alguém. Fazes de senhor, com pomada e roupa branca. Um
covarde, é o que tu és...
SMERDIAKOV (começando a pôr a mesa) - Seria um outro homem, se tivesse sido
educado de outra forma.
GRIGORY - Educado de outra
forma!...O filho de uma mal-cheirosa!
SMERDIAKOV (estremecendo) - Contou-o a toda a gente, não foi?... Sei muito bem
que sou filho de uma mal-cheirosa. Deitaram-mo à cara muitas vezes em Moscovo!
E aqui, no mercado, contam, à minha frente, que a minha mãe tinha metro e meio
de altura e que os seus cabelos estavam sempre coalhados de lama.
GRIGORY - Isso incomoda-te?
SMERDIAKOV - Não me incomoda, mas
envergonha-me... Sei muito bem que sou um Smerdiakov... Bateram-me toda a minha
infância.
GRIGORY - O teu único prazer era
pendurar gatos para a seguir os enterrares com grande cerimonial...
SMERDIAKOV - E você, Grigory Vassiliev,
dava-me estalos...
GRIGORY - Tu discutias o evangelho!
SMERDIAKOV - Eu levantava objecções
razoáveis a que você era incapaz de responder... Foi a seguir a uma dessas
correcções que tive a minha primeira crise de epilepsia... Sei muito bem que
não passo de um epiléptico, de um lavador de louça... (Brinca com uma faca que espeta na mesa. E soltando um profundo suspiro)
Ah! Se eu tivesse no bolso uma certa quantia...
GRIGORY - Que farias?
SMERDIAKOV - Há muito tempo que me
tinha ido embora.
GRIGORY - E depois?
SMERDIAKOV - Abriria um
café-restaurante em Moscovo, e ninguém seria capaz de cozinhar como eu.
FYODOR (do seu quarto) - A ceia está pronta?
SMERDIAKOV (para Grigory) - Vá-se embora. O mestre quer que seja eu a servi-lo.
Sai pela
esquerda.
FYODOR (descendo, para Grigory) - Ainda estás aí, a lamentar-te, meu velho?
Bateremos nesse Smerdiakov, prometo-te!
Grigory
sai, resmungando. Smerdiakov entra trazendo um "pâté".
CENA VI
Fyodor, Smerdiakov
FYODOR (aproximando-se da mesa) - Oh! Oh! Um "pâté" de peixe! Eis
o que me provoca o cúmulo da alegria e duplica o meu apetite. Porque tu és um
verdadeiro artista, Smerdiakov, no que toca ao "pâté" de peixe...Bem,
e o outro... Ivan? Vai descer?
SMERDIAKOV - Não. Ele não vai
descer.
FYODOR - Tanto melhor... Vai lá
acima, e vê pelo buraco da fechadura o que está ele a fazer no quarto. (Smerdiakov sobe suavemente e espreita pela
fechadura) Eh!
SMERDIAKOV (voltando a descer) - Nada. Está sentado numa cadeira a olhar em
frente.
FYODOR - Ele medita, faz cálculos,
atormenta-se... porque nada acontece à sua vontade. Será que ele vai a
Tchermachnia?
SMERDIAKOV - Ignoro.
FYODOR - Estou a morrer de fome.
Corta!... (Admirando o "pâté")
Como está dourado! Como está suculento!
(Começa a comer) Nuito bem: à
meia-noite, como ela dizia na carta, a minha Grucha? Sim?... Quero beber...
Estás a olhar para mim?... Estou decrépito, hein?... Bah! Com o meu nariz
adunco e o meu duplo queixo, pareço-me com um velho romano da decadência... E
depois, comprei para mim um lenço novo... Eu mesmo vou abri-lo. Ela vai entrar,
assim, um pouco confusa... «Eis-me aqui, Fyodor Pavlovitch... estava à minha
espera?» Sim, estava à sua espera! Estou apaixonado como um gato!...
SMERDIAKOV - A propósito, senhor...
os três mil rublos? O envelope com os três mil rublos? Onde está?
FYODOR - Debaixo do meu colchão.
SMERDIAKOV - Mau esconderijo!
FYODOR - Achas?... Sobe e traz-me o
pacote. (Smerdiakov obedece. Fyodor,
indicando-lhe a porta de Ivan) Chut... suavemente... (Smerdiakov desce e entrega o envelope a Fyodor) Isso... E agora,
aonde? Nesta poltrona?
SMERDIAKOV - Porque não atrás do
ícone?
FYODOR - Bravo! Ah! Aí, por
exemplo, é admirável. Por detrás do ícone! Ah! Ah! Dmitry nunca os irá procurar
lá... E Gruchenka vai rir-se a bom rir quando eu retirar o pequeno presente de
trás do ícone! Vamos... sopra as velas. Voltaremos a acendê-las esta noite. É
para se ver bem que eu queimo óleo, e não é para honrar os deuses... Ah! Ah!
Ah!
Bebe e
sufoca-se ruidosamente.
SMERDIAKOV -Que tendes, senhor?
Estais aflito...
FYODOR (por
entre soluços) Nada... engasguei-me... que engraçado... Ah! Ah! Ah! Atrás
do ícone! (Ri tão alto e durante tanto
tempo que Ivan, atraído pelo barulho, aparece à porta do quarto. Fyodor,
estupefacto, deixa de rir.) O que é? Que é que desejas, hein?
IVAN - Nada. Ouvi-o rir. É tudo.
CENA VII
Fyodor, Ivan, Smerdiakov
FYODOR - Queres cear?
IVAN - Não tenho fome, obrigado.
Mas faço-lhe companhia, se não lhe desagrada.
FYODOR (entre dentes) - Como queiras. (Ivan
senta-se em frente de Fyodor que, silenciosamente, se empanturra) Não dizes
nada.
IVAN - Admiro o seu apetite.
FYODOR - Smerdiakov! Terminei!... (Para Ivan, enquanto Smerdiakov levanta a
mesa) Achas que Alyocha está zangado? Lamento não me ter portado muito bem
esta manhã diante do seu religioso.
IVAN - A sério?
FYODOR - Não me acreditas? Vejo
isso na tua cara. Tomas-me por um bobo... Olha, aqui está o burro de Balaam que
regressa carregado de licores. (Smerdiakov
coloca na mesa frascos e copos, depois afasta-se pensativo) Bebes um copo
do meu velho cognac? Sei que gostas dele. Tu não fazes parte dos tolos que só
bebem água. Para gostar de cognac, é preciso ter espírito. E nós somos gente de
espírito, somos não somos, Ivan? E toda a nossa vida continuaremos a aquecer as
costas, a encher a barriga e a beber cognac. Foi o próprio Deus que assim
dispôs...
IVAN - Por Deus!
FYODOR (inclinando-se) - Ivan!...tudo isto me apoquenta, todos estes
problemas... Não troces do velho inválido. Tu não gostas de mim e não tens
qualquer razão para gostares de mim... Mas, vejamos, diz-me lá, entre nós,
seriamente: Ivan, Deus existe, sim ou não? (Ivan
esvazia o copo sem responder) Preciso de saber, meu filho...
IVAN (inclinando-se e olhando de frente para o pai) - Não, Deus não
existe.
FYODOR - De verdade? Alyocha
pretende que ele existe... (Dando-se
conta de Smerdiakov que, imóvel, não perde uma palavra da conversa) Vi dar
uma volta, jesuíta! (Smerdiakov retira-se
para o fundo do palco, mas não sai) Vai ficar ali a escutar-nos. És tu
provavelmente quem lhe interessa. Que é que lhe fizeste?
IVAN - Nada. São as maneiras dele.
FYODOR - E então... a imortalidade?
Ela existe?
IVAN - Não.
FYODOR (com uma alegria surda, mas contida) - Estás certo disso, meu
pequeno Ivan? Não estarás a gozar comigo? Não quererás enganar um pobre homem,
que já não tem muito tempo para viver? E que quer viver segundo a verdade,
hein?... Não há imortalidade, nem sequer um pedacinho de imortalidade?
IVAN - Nada.
FYODOR - Quer dizer... um zero
absoluto, ou uma pequena fracção de unidade? Nem mesmo uma fracção de fracção?
IVAN - O zero absoluto.
FYODOR (não se contendo mais) - Mas então,,, mas então... Ivan, tudo é permitido?
IVAN - Sim, tudo é permitido, meu
pai.
FYODOR - Chut!... Não o digamos.
Guardemos isso para nós, meu filho... À tua saúde! (Brindam) Querido Ivan, fico contente de te ver aqui sentado, à
minha frente, a bebermos os dois, como dois amigos.
IVAN - Sim.
FYODOR (com um pé sobre a mesa) - Podíamos ser tão felizes na terra!...
IVAN (com esforço) - Sim.
FYODOR - Sou ainda um homem, sabes,
meu companheiro, e pretendo continuar a sê-lo durante uma vintena de anos. Só
que envelhecerei, tornar-me-ei cada vez mais repugnante, e elas já não vão querer
vir a minha casa com tanta vontade, as gatinhas... Então, terei necessidade de
todos os meus kopecks.
IVAN - Naturalmente.
FYODOR (completamente embriagado) - É por isso que quero que saibas, meu
querido filho Ivan, que não juntei dinheiro nem continuo a juntar a não ser
para mim. Quero viver na meu lodo, e o mais tempo possível. Está-se muito bem no
lodo... Não quero ir para o paraíso de Alyocha, supondo que ele existe; não é o
lugar para um homem inteligente...
Leva a mão
à garrafa.
IVAN - Já bebeu demais.
FYODOR - Psst! Deixa lá. Mais um
copito, só um. Não vou morrer por mais um copito. (Estende o seu copo que o próprio Ivan enche) Conheces a história de
von Zohn, que foi assassinado em casa das filhas?
IVAN - Não tenho de conhecê-la.
FYODOR - Bom. Então vou contar-te a
estranha aventura de Elisabeth Smerdiatchaïa, a mal-cheirosa!... Imagina que
ela percorria os caminhos sem outra roupa que não fosse uma simples camisa, o
que não deixava de ter um certo... apesar dela ser nojenta... Estás a ver, meu
porquinho, em toda a minha vida não encontrei uma mulher feia. Todas têm o seu
encanto: esta é a minha regra. E só o facto do sexo é já imenso... Quando fores
a Tchermachnia, vou indicar-te uma rapariga: ela anda descalça, mas... Ora, uma
noite de verão, voltava de um jantar com alguns companheiros divertidos, e
aconteceu que, junto a uma sebe, deitada nas urtigas, e completamente
adormecida, nós vimos Elisabeth Smerdiat...
Completamente
embriagado, Fyodor não tomou cuidado até pronunciar o nome de Elisabeth
Smerdiatchaïa. Smerdiakov arrebitou as orelhas e começou a descer furtivamente
em direcção à mesa. Ivan observa o lacaio. Seguindo o seu olhar, Fyodor
volta-se lentamente com medo, e vê Smerdiakov inclinado atrás de si, com espuma
nos lábios e os membros agitados, com um tremor de epiléptico. Pára de repente
com um sorriso idiota no rosto. Ivan olha para o tecto, baloiçando-se na
cadeira. Silêncio.
SMERDIAKOV (cuja expressão de ódio degenera num zombar lamentoso)- São onze
horas, senhor...
FYODOR - Está bem, mas... meu
rapaz... sim...
Smerdiakov sai
lentamente pelo fundo.
CENA VIII
Ivan, Fyodor
FYODOR (com fúria, para Ivan) - Porque é que não me interrompeste?
IVAN - Queria ver até onde era
capaz de chegar.
FYODOR - Por maldade! Vens
desprezar-me na minha própria casa.
IVAN - Vou-me embora. É o cognac
que fala.
FYODOR - Não preciso de mais. Podes
levá-lo já!... Os teus olhos maus observam-me. Eles espiam-me, suspeitam de
mim. Tens um pensamento reservado... Diz lá! (Ivan encolhe os ombros com desprezo) Sim, calas-te, como sempre. Só
sabes calar-te e escarnecer dos outros em silêncio. É assim que te dás ares de
sábio. Ou, se falas, fazes caretas... Não tens o direito de me julgar! Não
vales mais do que eu, camarada...
Ivan é
possuído por uma repugnância inexprimível. Nesse momento, Alyocha surge à
esquerda.
IVAN - Alyocha...
CENA IX
Ivan, Fyodor, Alyocha, Smerdiakov
FYODOR (para Alyocha) - Porque vieste? Não convido ninguém.
ALYOCHA (dirigindo-se-lhe) - Como estava irritado, meu pai...
FYODOR (baixo, aparte) - O meu querido filho único! Sede o meu anjo.
Levai-o... Mete-me medo, ainda mais do que o outro.
ALYOCHA - Ele sofre. Cuidem dele.
FYODOR (dando um salto) - Pff! ... Smerdiakov, vem vestir-me! (Sobe a escada seguido por Smerdiakov.
Fyodor, para Ivan, suavemente) Peço-te... Ivan, parte esta noite para
Tchermachnia... Peço-te isso... (Ivan,
que caminha febrilmente de um lado para o outro, faz que não com a cabeça)
- Não? Recusas?... Queres ficar aqui de guarda? Queres saber quanto vou dar a
Gruchenka quando ela vier ver-me?... E incitas Dmitry a fugir com ela para te
apoderares de Katerina Ivanovna, que é rica. Eis os teus pensamentos e o teu
cálculo, patife!... Pois bem, fica a saber que casarei agora mesmo com
Gruchenka se me apetecer. Quanto a Katerina, não a terás, entendes? Não a
terás... Desafio-te!
Entra no
quarto, seguido por Smerdiakov.
CENA X
Ivan, Alyocha, Smerdiakov
Quando
Fyodor desaparece, Alyocha dirige o seu olhar para Ivan, que continua a andar
em silêncio de um lado para o outro. Depois, baixa os olhos, incomodado,
envergonhado, receoso. Vai falar mas, de longe, Ivan acena-lhe para que se
cale.
IVAN (como para si-mesmo) - Fiquei uma hora a mais. Não devia ter entrado
aqui, neste cheiro... voltado a ver este velho... Não o deveria ter feito! O
ódio vai estragar-me a alegria da partida.
ALYOCHA - Então, vais partir?
IVAN - Dentro de uma hora, estarei
longe daqui.
ALYOCHA - Que vais fazer, Ivan?
IVAN - Viver para mim-mesmo e que o
resto vá para o diabo!... Viver como um homem inteligente, como diz o meu
pai... (Detendo-se e batendo com o punho
sobre a mesa) Se soubesses o que tenho aturado, aqui!... Ele piscava-me o
olho, batia-me no ombro. Ele tem cinquenta e sete anos, eu tenho vinte e três.
É essa a diferença entre nós? Entregar-se assim à luxúria, é ignóbil!... Ah!
Lyocha, com trinta anos, largarei os copos, enjoado de beber. Mas, até aos
trinta, que escutar se não os nossos desejos?... A menos que se seja um homem
seguro como tu, que conheces o teu objectivo e sabes manter-te firme. Gosto dos
homens seguros. E tu, Lyocha, gostas de mim?
ALYOCHA - Sim, eu gosto de ti. Há
uma coisa que compreendi em ti: é que és um jovem tão ingénuo como os outros jovens
de vinte e três anos.
IVAN - Sim.
ALYOCHA (sorrindo) - Um homem jovem e fresco.
IVAN - Sim, Alyocha. Tornar-se
homem é terrível. Eu não quero amadurecer. Gostaria de permanecer um
adolescente como tu... e que se sente virtuoso tanto quanto se julga insatisfeito...
às vezes, ao sair de casa dela, dizia para mim: a minha juventude vencerá todos
os obstáculos; quando todos os horrores da desilusão, da traição me vierem
atingir, quererei viver. Para extinguir em mim a paixão de viver, não existe
desespero que baste.
ALYOCHA - De que desespero é que
falas?
IVAN - Não procures saber.
Desprendi-me de tudo, juro-te. Ah! Não acreditava que fosse tão fácil. Num
minuto, apaguei seis meses da minha vida. Na nossa idade, somos ricos. E
qualquer coisa é melhor do que aceitar uma injúria.
ALYOCHA - Então, tu não gostavas de
Katerina.
IVAN - Talvez... Estás a ver, nada
exerce sobre mim uma influência tirânica. Sou vigoroso. Não tenho tempo para
esperar e para me atormentar... Tanto pior! Eu recomeço...
ALYOCHA - Katerina gosta de ti.
IVAN - É possível.
ALYOCHA - Porque é que lhe disseste
que ela nunca te amara?
IVAN - Disse-lhe, de propósito.
ALYOCHA - Para a fazer sofrer?
IVAN - Pois que sofra!
ALYOCHA - Irmão, pensaste que louca
de dor Katerina poderia vingar-se em Dmitry?
IVAN - Acaso sou eu o guarda do meu
irmão?
ALYOCHA - É a resposta...
Smerdiakov,
levando para o escritório a roupa e os sapatos de Fyodor, atravessa o palco da
direita para a esquerda e sai. Os dois irmãos calam-se para o deixar passar.
IVAN - A resposta de Caim, não
é?... Mas poderei eu passar a vida inteira a vigiar esses loucos? Não quero
voltar a olhar para trás de mim. Quero agir só à minha maneira e não depender
de ninguém... Rompi, larguei. Compreendes? Posso fazer seja o que for...
ALYOCHA (com tristeza) - Ah! Sim... todos os desejos são permitidos, não é?
IVAN - Seja, não vou desdizer-me:
tudo é permitido...Alyocha, sou livre... Quero festejar a minha liberdade,
beber à minha liberdade!
ALYOCHA - Não, irmão, não bebamos!
Estou tão triste. (Silêncio) O padre
Zocima morreu.
IVAN (com um sorriso estranho) - Eis que nos foste devolvido, pequeno
Karamazov.
ALYOCHA - Ele enviou-me ao mundo.
IVAN - E é para mim, em primeiro
lugar, que tu vens...
ALYOCHA - Foi isso que ele me recomendou.
IVAN - Com os teus belos olhos
cinzentos que, desde há três meses me interrogam. Querias saber... Vejo que me
tens observado, desde há três meses, com toda a atenção... Também eu, meu
querido, antes de partir para sempre, gostaria de te ter conhecido melhor.
Agora é tarde. Porque não fizeste um sinal, dito a primeira palavra?
ALYOCHA - Porque não ousei? Tudo
isto, talvez, não acontecesse.
IVAN - Nada aconteceu, Lyocha...
Pensamentos... Maus sonhos, no máximo.
ALYOCHA - Ainda queres desaparecer!
Não voltarei a deixar o teu segredo em repouso, Vanya... De que estás
desgostoso? Diz-me, diz-me. Não há nada que eu possa fazer por ti, meu irmão?
De que sofres? Gostaria de carregar o teu sofrimento sobre mim.
IVAN (encolhendo os ombros) - Noviço! Vou mostrar-te o meu sofrimento,
que não conhecerás ainda. E, conhecendo-o, que farias? Não podemos amar...
Apesar de todo o amor que temos dentro de nós, não podemos. Há uma
impossibilidade física, um impedimento. Quanto a compreender o sofrimento dos
outros!
ALYOCHA - Qualquer que seja teu sofrimento, Ivan, eu sei que ele não pôde
corromper-te. E se alguma coisa permanece visível em ti, é a nobreza da tua
alma...
IVAN - Para sempre atormentada, no
embaraço, na luta; e contudo tão nova!... Não me peças para explicar.
Compreendi que todas as razões apenas servem para mascarar em mim um terrível
instinto. Todas as razões são covardes. Estou farto... Que esteja vivo! Isso basta-me!
O céu azul, a primavera e as suas flores novas enchem-me de contentamento.
Temos a vida à nossa frente. Ela acabará por nos levar a algum lado, aonde
chegaremos... Compreendes?
ALYOCHA (baixando os olhos) - Sim...
IVAN - Afasta-te de mim, vá; já não
sou um homem bom para interrogar. Já não posso mostrar todos os meus
pensamentos.
ALYOCHA - Irmão, não tenho medo!
Não penses que receio o espírito que está em ti, mesmo que seja... a revolta.
IVAN - Não é revolta! Não podemos
viver na revolta. E, apesar de tudo, eu vivo! Não é revolta, oh! Não... Mas o
desespero, ou antes... a indignação, sim: uma recusa! Ei-la: eu não aceito o
mundo!
ALYOCHA (suavemente) - Contudo, tu gostas dela, Vanya...
IVAN - Não pude deixar de gostar
dela.
ALYOCHA - O céu azul, a primavera e
as suas flores novas...
IVAN - Até aos trinta anos.
ALYOCHA - Mesmo até aos trinta
anos, como é possível viver com tal inferno no coração e na cabeça?
IVAN - Essa é a minha queixa, esse
o meu rancor contra Deus: Que ele tenha posto em mim um tal fervor, um tal
arrojo que me lançam na vida e que me opõem a ela; que me tenha infligido esta
sede de viver, esta impaciência invencível... mais forte, mais invencível do
que o meu desespero... Não, não, não é revolta, mas uma maldade feroz. Não
quero viver segundo os princípios da minha natureza, e vivo... mas com a raiva
no coração. Preciso de uma vingança!
ALYOCHA - Desejo-ta, Ivan,
desejo-ta para muito breve, e que ela te consuma, como a semente morre na terra
e se desfaz, a fim de dar todos os seus frutos... Tinhas razão, irmão: eu sou
demasiado fraco, ai de mim! para aliviar os teus males. Deus se encarregará
disso!...
Ivan baixa
um pouco a cabeça ao ouvir as palavras de Alyocha. Smerdiakov atravessa
lentamente o palco da esquerda para a direita.
IVAN (para Smerdiakov, subitamente enfurecido) - Deixarás de andar a
espiar? (Para Alyocha) Estava outra
vez a escutar à porta. (Empurrando
Smerdiakov) - Vai-te embora! (Para
Alyocha) Ele segue-me por toda a parte como a minha sombra.
ALYOCHA - Acalma-te.
IVAN - Já não posso suportar a sua
familiaridade abjecta. Que tenho eu a ver com ele? Ah! Que semelhante patife
possa inquietar-me a este ponto!... Dói-me a cabeça, Lyocha. Estou triste.
Queria estar tão alegre, esta noite! Estou triste. Isto pesa-me. Esperava, ao
ir-me embora, deixar ao menos um amigo. E afinal deste último encontro vais guardar
uma recordação amarga. Não me tomes por um celerado...
Alyocha
levantou-se e, inclinando-se sobre o irmão, abraça-o
ALYOCHA - Ivan, lembras-te da nossa
infância?
IVAN - Lembro-me de tudo,
Alyocha... E, agora, é preciso que nos separemos.
ALYOCHA - E os outros?... E
Katerina?... Que vai ser deles?
IVAN - Faz com eu; não penses
nisso.
ALYOCHA - Que é que tens? Parece
que respiras com dificuldade?
IVAN - Isto passa já, ao ar livre.
ALYOCHA (abanando a cabeça) - Julgas-te desembaraçado dos teus pensamentos...
IVAN - Vou-te esclarecer,
irmãozito.
Pega no
candeeiro e conduz Alyocha até à porta.
ALYOCHA - Como o teu rosto está
endurecido... e como eu o amo!
IVAN - Abracemo-nos mais uma vez...
Aqui... Adeus.
Separam-se.
CENA XI
Ivan, Smerdiakov
Smerdiakov
sentou-se num degrau da escada, acabrunhado, a cabeça entre as mãos e aí ficou
enquanto decorria a parte final do diálogo entre os dois irmãos, ao fundo do
teatro. Depois de deixar Alyocha, Ivan dispõe-se a subir novamente a escada,
mas ao começar, na penumbra, encontra Smerdiakov à frente, obstruindo a
passagem. Detém-se, parece hesitar, esperando que o lacaio se afaste. Este
olha-o de cima com um sorriso vago.
IVAN - Deixa-me passar.
Sem se
levantar, Smerdiakov desvia-se um pouco de forma que ao passar, Ivan, roça-se
por ele. Ivan sobe mais dois degraus, depois, como involuntariamente, volta-se
para Smerdiakov que o seguia com os olhos com o mesmo sorriso.
SMERDIAKOV (desviando os olhos, a meia-voz) - O senhor espanta-me.
IVAN (franzindo o sobrolho) - O que é que te espanta?
SMERDIAKOV - Porque não vai a
Tchermachnia?
IVAN - Também tu me vais
interrogar?
SMERDIAKOV - O próprio Fyodor
Pavlovitch vos suplicou...
IVAN - Vai para o diabo! Sê mais
claro.
SMERDIAKOV - Oh! Não é nada muito importante;
foi só para dizer qualquer coisa. (Cala-se,
suspira, põe-se a tremer) Estou certo, senhor, que terei em breve, talvez
esta noite, uma longa, muito longa crise de epilepsia.
IVAN (voltando-se para ele) - Porquê, muita longa?
SMERDIAKOV - Sim, isto dura mais ou
menos tempo, várias horas, um ou dois dias.
IVAN - Como podes tu prever que
vais ter uma crise... esta noite? Quando tiveste a tua grande crise, tinhas
caído do sótão?
SMERDIAKOV - Vou todos os dias ao
sótão. E se não cair do sótão, cairei na cave aonde o meu serviço me obriga a
ir a toda a hora.
IVAN (fazendo descê-lo à sua frente) - Vamos ver se te compreendo?
Propões-te fingir esta noite um ataque de epilepsia e de fazer durá-lo três
dias, hein? Estás a rir?
SMERDIAKOV - Admitamos que eu podia
fingir um ataque... Não teria esse direito para proteger a minha existência
ameaçada? Se Gruchenka vier a casa de Fyodor Pavlovitch, o vosso irmão não
poderá mesmo assim acusar um homem doente de não o ter avisado.
IVAN - E porque me falas tu disso,
a mim?
SMERDIAKOV - Para me aconselhar
convosco, Ivan Fyodorovitch.
IVAN - Já te disse que Gruchenka
não viria!
SMERDIAKOV - Mas se acontecer que
Dmitry Fyodorovitch cometa alguma loucura contra o vosso pai, eu não quero passar
por seu cúmplice!
IVAN - Mas porque é que te tomariam
por seu cúmplice?
SMERDIAKOV - Por causa dos sinais.
IVAN - Quais sinais?
SMERDIAKOV - Uma vez que a situação
vos interessa, vou confessar-vos, senhor, que no caso dela se decidir a uma
visita nocturna, Gruchenka deverá bater nesta janela duas pancadas espaçadas,
seguidas de três pancadas rápidas. Fyodor Pavlovitch julga que só nós
conhecemos esses sinais. Gruchenka, ele e eu. Pois bem, também o vosso irmão os
conhece!
IVAN - Como ousaste dizer-lhos?
SMERDIAKOV - Por medo, para o
convencer da minha fidelidade.
IVAN - Se o vires utilizá-los, não
o deixes.
SMERDIAKOV E se tiver a minha crise?
IVAN - Previne Grigory. Que ele
vigie!
SMERDIAKOV - Desde há três dias que
ele dorme no pavilhão dos criados. Se Dmitry saltar a paliçada ou passar
através da sebe, pode andar à volta da casa sem que Grigory dê por isso.
IVAN - Então, porque me aconselhas
a ir a Tchermachnia?... Quero conhecer o teu pensamento...
SMERDIAKOV (sem fôlego) - Que importa para aqui o meu pensamento?
VOZ DE FYODOR (chamando, do quarto) - Smerdiakov!
SMERDIAKOV (levando Ivan para o fundo do teatro, e falando mais baixo,
apressadamente) - Falo no vosso interesse. Sabeis bem como vos sou
inteiramente dedicado... No vosso lugar, não correria o risco de ser metido em
tal história... Compreendeis bastante bem as coisas para não compreenderdes
isto, Ivan Fyodorovitch...
Ivan, sem
poder impedir-se de ouvir até ao fim, tenta libertar-se várias vezes do lacaio,
que o agarrava pelo braço. Agora, sobe a escada, automaticamente. Todo ele é
agitado por uma espécie de riso que não ousa explodir. Chegado ao primeiro
patamar, debruça-se sobre a balaustrada.
IVAN - Se queres saber, parto para
Moscovo dentro de uma hora.
SMERDIAKOV (pálido) - É o melhor que podeis fazer...
VOZ DE FYODOR (chamando do quarto) - Smerdiakov!
IVAN (que puxou a sua mala para o patamar) Ajuda-me.
SMERDIAKOV - O senhor vosso pai chama-me.
IVAN (colocando-lhe a mala às costas) - Vamos! Leva-a para o jardim. Vou
enviar o cocheiro...
Smerdiakov
obedece. Ivan volta a entrar no quarto para buscar o sobretudo, depois desce.
Ao pé da escada, parece hesitar um instante.
SMERDIAKOV (regressando) - Não ides despedir-vos do senhor vosso pai?
IVAN (olhando para o seu relógio e dirigindo-se para a porta) - O comboio
de Moscovo parte à meia-noite e cinquenta. A estação fica longe. Mal tenho
tempo para o apanhar... (Escutando) É
ele que está a andar lá em cima?
SMERDIAKOV - Sim... Não tendes mais
nada a dizer-me, senhor?
IVAN - E tu?
SMERDIAKOV - Já falei mais do que
vós.
IVAN - Não acreditavas que eu
partisse?...
SMERDIAKOV - Há razão para dizer
que é sempre bom falar com um homem inteligente... Devo acompanhar-vos, senhor?
IVAN - Deixa-me!
Empurra-o e
fecha a porta. Smerdiakov permanece encostado à porta, à escuta. Depois, olha
para os vidros. Ouve-se Fyodor chamar de cima. Então, sem barulho, Smerdiakov
apaga o candeeiro e sai furtivamente pela direita, fechando a porta atrás de
si.
CENA XII
Fyodor
FYODOR (sai do seu quarto, com um castiçal aceso na mão. Fez a sua
"toilette": roupão claro, lenço vermelho e peitilho de renda.
Continua a chamar) Smerdiakov! (Consulta
o relógio e diz) Eh! Eh! Meia-noite menos um quarto!... Estás aí, meu
pequeno Smerdiakov? (Desde a escada. O seus
gestos, à medida que o silêncio permanece, tornam-se mais febris. Anda da
direita para a esquerda. Visivelmente, está possuído de inquietação. Abre a
porta da esquerda, depois a da direita, chamando, praguejando. Finalmente, sobe
vigorosamente ao quarto de Ivan, bate à porta, abre-a, entra, sai e murmura ao
descer a escada.) Partiu... partiu?... Será que vão deixar-me? (Vai sair à procura de Smerdiakov quando, no
silêncio, ouve nitidamente na janela da esquerda, soar o sinal: duas pancadas
espaçadas, seguidas de três pancadas rápidas. Fyodor detém-se, altera a
fisionomia, pousa o castiçal e aproxima-se da janela. A emoção estrangula-lhe a
voz. Diz.) Gruchenka, és tu? (O sinal
é repetido. Abre lentamente a janela e debruça-se para ver para fora, dizendo.)
És tu? Aproxima-te! Onde estás, minha querida, meu anjo? (Há um silêncio de chumbo. Entre o primeiro e o segundo sinal,
Smerdiakov entrou furtivamente pela direita, dissimulando-se atrás dos móveis.
Observa Fyodor, espera, está torturado pela impaciência. Fyodor, à janela,
continua a falar.) Grucha...Porque não queres responder-me? Estou só... Ah!
Minha feiticeira, sei bem como te descobrir.
Fyodor sai
pela esquerda. Então, Smerdiakov, que estava acocorado atrás de uma poltrona,
ergue-se e envolto na sombra atravessa rapidamente o salão e vai esconder-se
atrás do pilar onde está pendurado o ícone.
QUARTO ACTO
Em Mokroye,
de noite. O primeiro andar de uma estalagem. Um vasto gabinete, com as paredes
forradas por um papel azul desbotado. Alcova, cujos cortinados, meio corridos,
deixam ver uma cama baixa. Ao fundo, uma grande janela envidraçada, dando para
uma varanda de madeira, que domina o pátio da estalagem. Em primeiro plano, à
direita, encostado à parede, um divã baixo encimado por um espelho; uma mesa em
frente ao divã; uma poltrona junto da mesa.
CENA I
Mussialovitch, Vrublenski, Gruchenka
Mussialovitch,
meio estendido sobre o divã, fuma o seu cachimbo, largando espessas baforadas.
Vrubleski, do outro lado da mesa, joga às cartas. Gruchenka está sentada ao
lado de Mussialovitch, com um ar ausente. A mesa está iluminada por duas
tochas. Pesado silêncio de tédio.
GRUCHENKA (desviando-se de Mussialovitch, que se inclina para ela) - Não
poderia largar o seu cachimbo?
MUSSIALOVITCH (pousando o cachimbo) - Estava a admirar...
GRUCHENKA - Estou bela, não estou?
É em sua honra.
MUSSIALOVITCH - Essa jóia não vale
menos de mil rublos.
GRUCHENKA - Está a reconhecê-la. (Novamente silêncio. Gruchenka suspira.
Levanta-se e atravessa o quarto espreguiçando-se. De longe, observa com enfado
Mussialovitch que começa a beber, cochichando algo ao ouvido de Vrublenski, que
aprova com a cabeça. Gruchenka, a meia-voz) Cinco anos da minha vida!
MUSSIALOVITCH (levantando-se) - Que estás tu a dizer, miúda?
GRUCHENKA - Digo: cinco anos...
MUSSIALOVITCH - (dirigindo-se-lhe) - Sabes, minha
querida, que em cinco anos tornaste-te muito mais bela...
GRUCHENKA - Já não sou aquela
pequena magrizela... Mudámos ambos. Você era tão carinhoso, tão alegre...
MUSSIALOVITCH (galante) - Mas...
GRUCHENKA (detendo-o, com a mão estendida) - Não me disse nada dos meus anéis.
São do seu gosto?
MUSSIALOVITCH - Magníficos.
Beija-lhe a
mão.
GRUCHENKA (mal se contendo) - Apalpe ainda o tecido do meu vestido. Veja
quanto vale...
MUSSIALOVITCH - Não percebo...
GRUCHENKA (indo sentar-se à parte) - Outrora, cantava-me canções que me
pareciam lindas. Já não sabe nenhuma?
MUSSIALOVITCH - Oh! Canções... Não, palavra de honra.
GRUCHENKA - É pena. Gostaria tanto
como dantes...
Ela
trauteia uma ária mas interrompe-se logo para limpar furtivamente os olhos.
MUSSIALOVITCH - Estás triste?... (Inclinando-se) Minha bem-amada...
GRUCHENKA - Não me chame sua
bem-amada.
MUSSIALOVITCH (com frieza) - Será preciso chamar-te "minha irmã"?
GRUCHENKA - Uma pessoa boa, uma
pessoa pura chamou-me hoje "minha irmã". Fiquei corada. Mas isso
remexeu-me o coração. Pela primeira vez tiveram piedade de mim, perdoaram-me, amaram-me
apesar da minha vergonha, e não pela minha vergonha. E eu tive o desejo de
arrancar esta "toilette", de entregar todo o dinheiro que possuo, e
de passar a ser uma simples criada!
MUSSIALOVITCH - Vejamos, vejamos,
Grucha, que significam todas essas divagações?...Estás um bocado fatigada, sem
dúvida. Precisas de repousar. Anda. Vou levar-te...
Agarra-lhe
o braço.
GRUCHENKA (libertando-se) - Deixe-me. É tarde. Já passa da uma da manhã.
Vou-me embora...
MUSSIALOVITCH (olhando para Vrubleski, que contempla a cena) - Embora?... Não
estás a pensar em partir a esta hora?
GRUCHENKA (pegando no casaco) - Agora mesmo.
MUSSIALOVITCH - O estalajadeiro
deve estar a dormir.
GRUCHENKA (vestindo-se) - Eu vou acordá-lo.
MUSSIALOVITCH - Então porque é que
vieste?
GRUCHENKA - Para o ver. Já o vi.
Adeus.
MUSSIALOVITCH - Ah! É assim! Você
acorreu à minha chamada...
GRUCHENKA - À tua chamada, sim,
como um cão. Tu assobiavas, eu rastejei. Como é covarde o meu coração.
Mussialovitch: há alguém que gosta de mim. Ficou desesperado por tua causa.
MUSSIALOVITCH (prestes a zangar-se) - Não te peço confidências...
Ouve-se no
pátio um grande barulho de guizos.
GRUCHENKA - Uma carruagem. Estou
com sorte. Depressa...
Dá alguns
passos em direcção à porta da direita.
MUSSIALOVITCH (em frente da porta) - Mas... mas... minha pequena, não te vou
deixar partir assim...
GRUCHENKA - Não me vais deixar
partir?
MUSSIALOVITCH - Não!
GRUCHENKA - Não vai reter-me aqui à
força? Se é de dinheiro que precisa, eu dou-lho...Largue-me ou grito... Chut!
Ouvem-se
vozes lá fora. Através da janela envidraçada do fundo, vê-se o estalajadeiro,
Trifon Borisitch, com uma lanterna na mão. Indica a Dmitry, que o segue, o
gabinete onde estão os polacos. Dmitry aproxima-se por instantes da vidraça,
depois dirige-se para a entrada.
VRUBLESKI - O que é este barulho?
MUSSIALOVITCH - Não sei, talvez
possamos passar para o quarto ao lado...
Conduz
Gruchenka em direcção à saída no momento em que Dmitry assoma ao limiar.
CENA II
Mussialovitch,
Vrubleski, Gruchenka, Dmitry
À entrada
de Dmitry, Gruchenka solta um grito lancinante.
DMITRY - Eu vou-me embora... Não
receeis nada...
MUSSIALOVITCH - Quem é?
GRUCHENKA (num suspiro) - És tu!...
DMITRY - Por um momento... ao pé de
si... apenas para vê-la. (Caminhando a
passos largos para a mesa atrás da qual se barricaram os polacos) Sou um
viajante, senhores... estou de passagem... Permitireis a um viajante que fique
convosco até amanhã de manhã, pela última vez?
MUSSIALOVITCH - Senhor, nós estamos
nesta estalagem, há aqui outros gabinetes.
DMITRY - Vou-lhe explicar tudo,
senhor. Vim numa correria... para uma hora do meu último dia, neste quarto... e
depois, ficam livres de mim. Está jurado...
MUSSIALOVITCH (para Gruchenka) - Conhece este senhor?
GRUCHENKA - Tenente Dmitry
Fyodorovitch Karamazov... (Apresentando)
Tenente Mussialovitch...
DMITRY (apertando a mão de Mussialovitch) Ah! Tenente... (Cumprimentando Vrubleski) Senhor?...
VRUBLESKI - Vrubleski.
DMITRY - Senhor Vrubleski...
encantado!
GRUCHENKA - Vamos, fazem-me rir...
Senta-te, Dmitry, e não fales mais.
MUSSIALOVITCH - Se a minha rainha o
deseja...
DMITRY - Senhor, estou-lhe
reconhecido... (O cocheiro Andrey,
seguido por Trifon Borisitch, acaba de entrar, trazendo pacotes volumosos.
Dmitry para o cocheiro) Põe isso aqui... Os mantimentos! Toma, Andrey... quinze
rublos pela corrida e cinquenta de gorjeta, porque me conduziste muito bem. E
lembra-te do senhor Karamazov que te agradece a tua bondade.
ANDREY - Senhor, faz-me medo.
Contentava-me com cinco rublos.
DMITRY (atirando-lhe o dinheiro) - Vai para o diabo!
ANDREY (indo-se embora, baixo para Trifon) - Trifon Borisitch, és
testemunha...
DMITRY (voltando para Mussialovitch) - Retome o seu cachimbo, senhor. Não
quero incomodar ninguém. Este imbecil do Mitya não incomodará mais ninguém.
Acabou-se...Vejam em mim um pobre, senhores, um mendigo. Perdi tudo. Tinha
tudo, já não tenho nada...
Dizendo
isto, tira da algibeira um maço de notas que coloca ao seu lado, sobre a mesa.
VRUBLESKI (pondo o dedo sobre o pacote de rublos) - Chama a isto nada? Pelo
menos três mil rublos!
DMITRY (metendo o dinheiro na algibeira) - Não falo de dinheiro. Que o
dinheiro vá para o diabo! Falo das mulheres.
Tirou da
algibeira uma pistola que se prepara para carregar.
MUSSIALOVITCH - Está a carregar uma
pistola, agora?
DMITRY - Meu Deus, sim, estou a
carregar uma pistola.
MUSSIALOVITCH - E está a examinar a
bala?
DMITRY - Ela interessa-me...
MUSSIALOVITCH - O que está a dizer?
DMITRY (voltando a meter a pistola na algibeira) - Coisas absurdas, meu
caro Mussialovitch. Não há nada que não seja absurdo... (Bruscamente, para Vrubleski) O senhor poderia retirar-se?
VRUBLESKI (estupefacto) - Como assim?
DMITRY - Retirar-se, desaparecer,
deixar o caminho livre ao ser que adora e àquele que odeia... e dizer-lhes:
«Que Deus seja convosco, passem... e eu, chega!»
Agarra com
as mãos as costas da cadeira e desata a soluçar.
GRUCHENKA - Eis como ele está...
Porque choras? É uma vergonha... Se houvesse razão para isso...
DMITRY - Eu... Eu não choro. Vivo a
minha alegria!
GRUCHENKA - É isso, sê alegre.
Estou contente que tenhas vindo, muito contente, estás-me a ouvir, Mitya?...Eu
quero que ele fique connosco e, se ele se for embora, eu irei também...
MUSSIALOVITCH - O que Grucha quer,
faz lei. Senhor, sede bem-vindo entre nós.
DMITRY - Bebamos como amigos,
senhores. Oh! Trifon, o champagne!
GRUCHENKA - Fizeste bem em trazer
champagne. Mas o que trouxeste de melhor, foi a ti mesmo. Aborrecíamo-nos
aqui!... Vieste fazer a festa, hein?
MUSSIALOVITCH (para Vrubleski) - Que horas são?
Vrubleski
faz sinal que não sabe.
DMITRY - Não tem relógio. Duas
horas e vinte.
MUSSIALOVITCH - É tarde para fazer
a festa.
GRUCHENKA - Vão deitar-se, senhores
polacos, mas ao menos deixem os outros divertir-se.
DMITRY (para Trifon que traz o champagne) - Já desembrulhaste os pacotes?
Há "foie gras", peixe fumado, caviar... Ouve: teremos ciganas?
TRIFON - Não há boémias aqui. As
autoridades expulsaram-nas. Mas restam-nos os músicos judeus. Quer que os vá
procurar?
DMITRY - Vai procurá-los! Vai!
Acorda toda a gente: homens e mulheres. Como da primeira vez. Julgo que eles se
lembram. Haverá duzentos rublos para o coro. (Entregando-lhe duas notas) Toma lá.
MUSSIALOVITCH - Você trata as notas
de banco como lixo, palavra de honra.
TRIFON - Por esse preço toda a
aldeia se levantaria. Mas vai gastar tanto dinheiro com umas piolhosas e a queimar
charutos a arruaceiros fedorentos? Vou tirar da cama as minhas próprias filhas,
aos pontapés no cu, outra vez! Elas cantarão para si.
Sai.
DMITRY (acompanhando-o) - Hurrah! Quero barulho, um trovão, uma boda que
será recordada durante muito tempo! (Batendo
na algibeira) Há aqui dinheiro!
GRUCHENKA (que não o larga dos olhos, ao passar por trás diz-lhe em voz baixa)
- A tua manga...
DMITRY - Hein?
GRUCHENKA (no mesmo tom) - Arregaça a manga.
DMITRY (olhando o punho da camisa e dissimulando-o
imediatamente sob a manga) - Vamos... (Regressando
à mesa) Os senhores não bebem? (Para
Vrubleski que percorre a sala de uma ponta à outra) Senhor... Afinal como é
que ele se chama?
VRUBLESKI -
Vrubleski,
DMITRY -
Porque é que anda para aí de um lado para o outro, senhor Vrubleski? Pegue no
seu copo... À Rússia, senhores, e sejamos irmãos!... (Bebem e pousam os copos) Agora, que vamos fazer enquanto esperamos
as miúdas? (Reparando nas cartas sobre a
mesa) Eh, por Deus, um banco!
MUSSIALOVITCH
- Às suas ordens, senhor.
DMITRY -
Pois bem, comece. Fique com o banco, tome as cartas. Quero ganhar-lhe muito
dinheiro, senhor.
VRUBLESKI -
Aos vossos lugares...
DMITRY -
Quanto tem no banco?
MUSSIALOVITCH
- O que o senhor quiser: cem, duzentos rublos.
DMITRY -
Vamos, dez rublos no valete.
VRUBLESKI (sorrindo, para Gruchenka) - E eu ponho
um rublo na dama de copas.
Jogam.
DMITRY -
Paroli!
VRUBLESKI -
Ponho outro rublo.
DMITRY -
Perdido... Outro tanto no sete...Outra vez perdido!
GRUCHENKA (baixo, para Dmitry) - Basta!
DMITRY - No
sete! No sete!
MUSSIALOVITCH
- O senhor está a perder duzentos rublos. Quer dobrar?
DMITRY -
Como? Já perdi duzentos rublos? Tanto pior: dobro!
GRUCHENKA (pondo as duas mãos sobre as cartas) - Já
chega!
DMITRY -
Porquê?
GRUCHENKA -
Porque sim. Não quero, não vais jogar mais, mais vale cuspir!
MUSSIALOVITCH
- Está a brincar, minha querida?
GRUCHENKA -
Ah! Cale-se... Que vergonha? Meu Deus, no que ele se tornou?
DMITRY (olhando para Gruchenka) - Que é?
GRUCHENKA -
Duas vezes, vi-o trocar a carta.
MUSSIALOVITCH
- Senhora, eu sou um cavalheiro!
GRUCHENKA -
E eu que chorei durante cinco anos? Um ladrão!
VRUBLESKI -
Não vou permitir...
GRUCHENKA -
Também o outro... Sacuda a manga!
VRUBLESKI (batendo em retirada) - Sua puta!
Dmitry atira-se a ele, agarra-o e atira-o para
a escada)
GRUCHENKA (batendo as mãos) - Como um pacote! Como
um pacote!
MUSSIALOVITCH
- Vim para perdoar, para desposar, mas encontro uma pessoa tão atrevida...
GRUCHENKA -
Volta para donde vieste!
DMITRY (regressando) - Dei-lhe com força... (Ri. Para Mussialovitch) Por favor,
senhor...
Indica-lhe a porta.
DMITRY -
Nunca fui seu amante!
GRUCHENKA -
Deixa-o.
DMITRY -
Vá-se embora!
TRIFON (acorrendo ao barulho) - Paizinho, não
recuperou o dinheiro que ele lhe roubou?
DMITRY -
Que ele o guarde, para sua consolação.
GRUCHENKA -
Bravo Mitya! Que bom rapaz!
TRIFON - Os
músicos chegaram, meu senhor, vão subir... (Sai)
CENA III
Dmitry, Gruchenka
DMITRY (fecha a porta, depois volta-se para Gruchenka, esquivo e alegre) -
Grucha, finalmente! Reencontro-te, malvada!
GRUCHENKA (abrindo-lhe os braços) - Libertas-me!
DMITRY (em voz baixa, torcendo as mãos) - Oh!...
GRUCHENKA - Se soubesses o medo que
eu tive, quando entraste... Como é que me encontraste? Quem te disse?...
DMITRY - A tua criada. Explicou-me
tudo.
GRUCHENKA - Fénia? Estiveste em
minha casa?
DMITRY - Duas vezes. Da primeira
vez, Fénia não quis dizer-me nada. Estava com medo. Ah! Se ela tivesse falado,
na altura... isto não teria acontecido. Foi só depois, quando era demasiado
tarde... Eu chorava enquanto te procurava, chorava como uma criança.
GRUCHENKA - Onde é que me
procuraste?
DMITRY - Por toda a parte.
GRUCHENKA - Sim, eu sentia-te atrás
de mim, no meu encalço...
DMITRY - Fui a casa de Katerina
Ivanovna. Tinhas partido. Então, já não havia dúvidas... Smerdiakov dissera-me
que o meu pai esperava por ti...
GRUCHENKA - Pensavas encontrar-me
em casa de Fyodor Pavlovitch?
DMITRY - Perdoa-me... Sim... Vigiei
a porta durante uma hora...
GRUCHENKA - E depois? Entraste?
DMITRY - Entrei.
GRUCHENKA - Dmitry... aqui, sobre a
tua manga.. é sangue, não é?
DMITRY - Sangue... sangue humano...
Meu Deus, porque foi vertido? (O coro das
raparigas de Mokroye irrompe de fora) Ah! Os cantores! (Corre à varanda do fundo. É aclamado)
Subam! Subam!
CENA IV
Dmitry, Gruchenka, Homens e Mulheres do Povo
DMITRY (acolhendo a multidão na varanda) - Bom dia!... Pois bem, sim, é
Dmitry Karamazov, mais uma vez! Estão a reconhecer-me? Vim visitá-los, fazer a
festa convosco. Há champagne, tomem... (Distribui
as garrafas) cognac, rhum. Pensei em ti, Vassiliev... Bom dia Grigory. Aqui
estão os charutos: se não os fumares, come-os! (Risos) E haverá punch... Trifon, faz arder o punch! Vamos levar
comida a todos os quartos... Bom! Eis os músicos... (Entrada dos músicos judeus, transportando alaúdes, violinos e cítaras)
Boris, entra! (Aperta-lhe as mãos)
Bom dia, bom dia... Se há dinheiro? Ah! Ah! Trezentos rublos para os músicos,
tomem, tomem... (Agita o maço dos rublos)
GRUCHENKA (baixo) - Mete o teu dinheiro na algibeira.
DMITRY (baixo) - Sim, é vergonhoso. Tenho vergonha, Grucha: Mas a alegria
de estar aqui!
GRUCHENKA - Diverte-te, vá...
DMITRY - Amanhã vou-me embora,
saberei ir-me embora... Desembrulhem o que resta. Há bombons, açúcar
cristalizado... Eh, músicos, estão a dormir? (Canta a ária que quer que eles toquem) Vão dançar, fazer de loucos.
As raparigas com os rapazes, vamos (Para
duas raparigas que entram) Eh! Arina, Stepanida! Mostrai-vos, minhas
beldades, para que vos vejam! (Para
Gruchenka) Não é que são bonitas?
GRUCHENKA - Vai beijá-las, doido!
Os doidos como tu agradam-me...
Dmitry
agarra uma a uma as duas raparigas e beija-as. Os violinos tocam. Esboça um
passo de dança. A chama do punch ilumina o pátio. Gritam todos: «O punch!
Olhem o punch!...» E precipitam-se para a
escada.
DMITRY (misturando-se na multidão que o acompanha) - Vamos beber! E haja
alegria e barulho. Quero que estejam todos bêbedos quando chegar a madrugada; que
isto dure até amanhã de manhã! (Regressa
ao quarto, titubeante, e detém-se no limiar, murmurando) Até amanhã de
manhã... e tudo estará acabado...
GRUCHENKA - Mitya! Regressa...
Estás a esquecer-te de mim! Vejo que estás triste. Porquê? Ouves a música? ...
Oh! Mitya, Mitya, dizer que eu o amei tanto durante cinco anos!... E ao voltar,
perguntava-me como nos enfrentaríamos, qual seria a nossa primeira palavra. E
quando o vi... pareceu-me que um balde de lixo me caíra sobre a cabeça... Não
falarei mais disto, Mitya; não te vás embora, meu pombo, tenho alguma coisa a
dizer-te. Escuta: eu amo alguém aqui... Diz-me quem é...
DMITRY (debatendo-se contra a sua felicidade) - Não.
GRUCHENKA - Alguém entrou mesmo
agora aqui, e a alegria acompanhava-o! E o meu coração disse-me: «Pateta! Eis
aquele que tu amas!... » Mitya, ele só pensa em mim... Mitya, eu amo alguém
aqui. Sabes quem é? Vou dizer-to...
DMITRY (tapando os ouvidos) - Não, não. Não o digas! Já não poderia... Tudo
o que fiz não contava, tudo o que fiz estava certo, enquanto julguei ter-te
perdido... Compreendes?... Quando entrei aqui, depois desta correria... oh! O
ar fresco no meu rosto, a noite cheia de estrelas...Sim, a alegria
acompanhava-me! Quer dizer... a minha
alma estava dilacerada, mas eu estava... quase contente, satisfeito, sim...
porque tudo estava acabado... voltar a ver-te, apenas voltar a ver-te, e depois
acabar de vez, eu estava resolvido! Não sentia por ti mais do que um amor
terno, um amor completamente novo, cheio de abnegação... Não, nenhum ciúme,
nenhum ódio contra esse homem. Fora o teu primeiro amante. Esperaste por ele,
amaste-o durante cinco anos. Julgava que o amavas ainda. Julgava-te feliz,
Grucha. Já não tinha necessidade da vida. A vida, para mim, já não tinha
qualquer sentido, qualquer preço. Ah! Eu caminhava para a morte. E agora,
agora... eis que me abres os teus braços...
GRUCHENKA (abraçando-o) - Mitya, eu amo-te! Vais perodoar-me os teus
sofrimentos, meu Mitya? Ama-me!... Eu hoje já não sou a mesma, eu compreendi...
Ninguém me tinha amado como tu me amas...
DMITRY - Mas o sangue!...
GRUCHENKA - Beija-me. Não me
ouças... Ele beija-me, e depois olha-me e escuta-me. Porque me escutas?
Beija-me! Com mais força. Com mais força. É assim. Quando se ama!
DMITRY (com força) - Tanto pior!
GRUCHENKA - Sim: tanto pior!
DMITRY - Por este minuto, eu teria
dado toda a minha vida. Não quero pensar em mais nada, Já não tenho
pensamentos... Grucha, sou feliz!
GRUCHENKA - Bebamos!
Ela enche
os copos.
DMITRY - Ah! Que o meu coração seja
bastante forte para suportar tanta alegria! Que a noite seja ainda bastante
longa para que, de madrugada, possa ser finalmente mitigada esta sede de
alegria!
GRUCHENKA (caída sobre uma poltrona, estendendo-lhe o copo) Mitya, estou
embriagada e tu não estás...
DMITRY - Estou embriagado de outra
coisa que não do vinho!
GRUCHENKA - Ainda dançam em baixo.
DMITRY - Vem vê-los.
GRUCHENKA - Também quero dançar (Estão em frente da janela aberta) - Ah!
A noite... O céu já clareia... (Ela
desequilibra-se. Dmitry toma-a nos seus braços) Leva-me, sim... (Dmitry põe-na em cima da cama. Os seus
beijos tornam-se mais insistentes) Não, não... não me toques, ainda não.
Poupa-me Mitya, suplico-te... Meu Mitya, sim, sou tua, mas não aqui, ao pé
desta gente...
DMITRY (de joelhos)- Obedeço. Nem mesmo o pensamento.
GRUCHENKA - Eu sei... tu és um
animal feroz, mas o teu coração é nobre,
o teu coração é doce. Vê lá, é a nossa última loucura, esta noite... É preciso
que daqui em diante tudo se passe de maneira honesta, sempre honestamente. Não
sou a tua amante, sou a tua mulher. Alyocha disse-me hoje palavras que eu nunca
esquecerei durante toda a minha vida... Fica aqui. Não te mexas (A sua voz vai enfraquecendo) Sou a tua
mulher. Vais levar-me, para longe... Um trenó espera por nós, Mitya... Ah!
finalmente partimos... como vamos depressa...está tudo branco... há
neve...gosto tanto da neve... Quase não se ouve mais nada. Parece que não estamos
sobre a terra... Estou bem, estou cansada... Mitya... Mityengka... (Adormece. Dmitry, durante um instante, contempla-a
a dormir. Depois, levanta-se. O seu olhar vagueia em volta do quarto. As velas
vão-se consumindo. Aproxima-se da janela. Os cantares cessaram. Reina um grande
silêncio. Nasce o dia. Dmitry emociona-se mas recompõe-se pouco a pouco. Então,
tira bruscamente uma pistola da algibeira e vem armá-la à luz de uma tocha.
Aproxima-se novamente de Gruchenka adormecida e contempla-a. Depois, ergue
lentamente a pistola até à testa. Gruchenka acorda) Mitya, tenho frio...
onde estás? Que estás a fazer?
Salta da
cama e vai ter com Dmitry.
DMITRY - Já é dia... Não posso
continuar a viver. Jurei-o a mim mesmo!
GRUCHENKA (arrancando-lhe a pistola) - Porque é que queres morrer? Tens medo?
DMITRY - Não tenho medo. Tenho
vergonha, vergonha!
GRUCHENKA - Por causa do sangue?
DMITRY - O sangue não é nada... mas
o dinheiro!
GRUCHENKA - Que dinheiro?
DMITRY - O dinheiro de Katerina que
eu trazia há oito dias ao peito... Atirei-o a essas raparigas, a esses
músicos... sou um ladrão!
GRUCHENKA - Nós vamos devolver-lhe
o dinheiro! Eu dou-te o que for preciso. Agora tudo o que é meu é teu.
Pediremos perdão à menina, e depois partiremos. Devolve-lhe o dinheiro, mas não
ames outra que não eu!... Se tu a amas, eu mato-a... furo-lhe os olhos!
DMITRY - Amo-te só a ti! Amar-te-ei
na Sibéria...
GRUCHENKA - Trabalharemos, faremos
penitência. Deus nos perdoará. Ainda sei rezar a Deus... Alyocha diz que é
preciso trabalhar. Trabalharei para ti, ser-te-ei fiel. serei a tua escrava.
DMITRY - Sim. Podemos viver na
Sibéria. Lá, pode-se amar e sofrer. Não tenho medo. Lá, minha amada, sob a
terra, no fundo das minas, no sofrimento, cantaremos um hino ao deus da
alegria!
GRUCHENKA - Ah! Mitya, vamos
viver... Por muito mau que seja, é tão bom
viver!...
DMITRY - Ao pé de ti!
Aperta-a
contra o coração. Silêncio.
GRUCHENKA (em sobressalto, com a voz embargada) - Quem é que nos está a
observar, ali?
Dmitry
segue a direcção do seu olhar e, voltando-se, vê um homem em pé no limiar, à
direita. Precipita-se para ele.
O CHEFE DA POLÍCIA (em voz baixa e firme) - Venha connosco,
por favor.
Dmitry dá
um passo. O Chefe da Polícia afasta-se deixando então ver pela porta aberta o
terraço repleto de uma multidão de mujiques e soldados.
DMITRY (gritando) - Ah!... Compreendo!
Afunda-se
num assento.
O CHEFE DA POLÍCIA - Senhor tenente
na reserva Karamazov, tenho a comunicar-lhe que é acusado da morte de seu pai,
Fyodor Pavlovitch Karamazov, assassinado esta noite.
DMITRY (de um salto) - Nunca! Não sou culpado! Desse sangue, não! Desse
sangue, não sou culpado! Não derramei o sangue do meu pai!
GRUCHENKA - Graças a Deus!
DMITRY - Sim, quis matá-lo. Mas não
o matei. Não fui eu! Não fui eu!
GRUCHENKA - Ele diz a verdade...
acreditai-o... (De joelhos, frente a
Dmitry, apertando os seus joelhos). Eu acredito em ti, eu, eu acredito!
O Chefe da
Polícia faz um sinal. Os soldados entram no quarto.
QUINTO ACTO
Em casa de Fyodor
Pavlovitch. Salão. Mesmo cenário do Terceiro Acto. Dois meses depois. É o
começo do Inverno. Durante a manhã.
CENA I
Grigory,
Smerdiakov
Grigory entra primeiro. Tem
a cabeça envolvida por uma ligadura.
GRIGORY -(voltando para trás até à porta) - Eh! Então não entras?
Smerdiakov
entra com hesitação imperceptível. Tem na mão um pacote com roupa. O seu rosto
está pálido e devastado. Desce à frente em silêncio. Grigory senta-se, com a
cabeça entre as mãos.
SMERDIAKOV - Continua a sofrer?
GRIGORY - Foi um golpe terrível...
E tu, como estás mudado!
SMERDIAKOV - Desde há dois meses
que tenho crises umas atrás das outras. No hospital, pensavam que não
conseguiria safar-me. (Silêncio
novamente. Smerdiakov olha à sua volta) Foi aqui que o encontraram?
GRIGORY - Ali, em frente do ícone,
estendido.
SMERDIAKOV - Morto?
GRIGORY - Sim. (Silêncio) Dizem que depois da sua
condenação Dmitry Fyodorovitch tornou-se um outro homem, que chora os seus
pecados.
SMERDIAKOV - Vinte anos de Sibéria,
é difícil.
GRIGORY - O infeliz!... Eu que o
lavava na banheira pequena quando era criança...ele ousou! Ah! Quando reparei
que a janela do senhor estava toda aberta, fui imediatamente assaltado por um
pressentimento. Tinha acordado bruscamente por volta da meia-noite e, ao
lembrar-me de que não tinha fechado à chave a grade do jardim, saí. Nesse
instante, vi uma sombra a cerca de quarenta passos, que desaparecia
rapidamente. Lancei-me no encalço e cheguei à paliçada no preciso momento em
que Dmitry Fyodorovitch a escalava. Ah! Reconheci-o muito bem! Agarrei-o por
uma perna gritando... Mas ele desfechou-me na cabeça um pontapé com tanta força
que larguei a presa e caí por terra inanimado. Algumas horas mais tarde,
prenderam-no em Mokroye.
SMERDIAKOV - Quem terá dado o alarme?
GRIGORY - A minha mulher. Não me
vendo regressar, saiu por sua vez; gritou; as pessoas acorreram. Foi então que
descobriram o cadáver do patrão... E a ti, só no dia seguinte te encontraram
desmaiado na cave, com espuma nos lábios, atacado por uma crise de epilepsia.
SMERDIAKOV - Foi o que me disseram
no hospital. Já não me lembro de nada, de nada.
GRIGORY (de mãos postas) - Que infelicidade, meu Deus!
SMERDIAKOV - E Ivan?
GRIGORY - Ivan Fyodorovitch só
regressou de Moscovo dois dias depois do
enterro. Segundo o processo, não se mexeu daqui.
SMERDIAKOV - E... que diz ele?
GRIGORY - De quê?
SMERDIAKOV - Da condenação.
GRIGORY - Nada. Continua sombrio,
fechado sobre si mesmo. Não consegue suportar ninguém. Alyocha raramente vem.
Mal deixa a prisão. Só Katerina Ivanovna...
SMRDIAKOV - Vêem-se muitas vezes?
GRIGORY - Muitas vezes.
SMERDIAKOV - Aqui?
GRIGORY - Sim.
SMERDIAKOV (entre dentes) - Esta tragédia sinistra poderia acabar muito bem com
um casamento. (Silêncio) Ele nunca
perguntou por mim?
GRIGORY - Quem?
SMERDIAKOV - Ivan.
GRIGORY - Nunca.
SMERDIAKOV - Talvez julgue que
morri.
CENA II
Ivan, Smerdiakov
Ivan entra
pelo fundo. Não diz nada. Grigory hesita em dirigir-lhe a palavra, mas o ar
carregado de Ivan tira-lhe o desejo. Há um longo silêncio. Sentimos que Ivan
não consegue falar e que Smerdiakov não
se pode ir embora.
SMERDIAKOV - Deixei o hospital esta
manhã.
IVAN - Vais retomar o teu serviço
aqui?
SMERDIAKOV - É a minha intenção.
Grigory sai
pela direita. Novamente silêncio.
IVAN - Então sabias?
SMERDIAKOV - Julgava que também
estáveis doente. Porque é que os vossos olhos estão tão amarelos?
IVAN - Deixa a minha saúde e
responde à minha pergunta.
SMERDIAKOV - Como não saberia? Tudo
estava antecipadamente preparado.
IVAN - Mesmo a tua crise?
SMERDIAKOV - Podeis pedir
esclarecimentos sobre a minha doença aos médicos do hospital. Que quereis que
vos diga?
IVAN - Tinhas indicado exactamente
a cave.
SMERDIAKOV - Porque tinha medo
nessa cave em que me sentia longe de qualquer socorro. Dizia para mim: «Isto
vai chegar. Vou cair?» E foi efectivamente por causa desse pensamento que o
espasmo se apoderou de mim e eu caí. Disse-o aos médicos e ao juiz de
instrução. Eles foram da minha opinião.
IVAN - Ah!
SMERDIAKOV - Porque haveria de
mentir? Tinha alguma coisa a temer?
IVAN - Tudo isso não explica a tua
insistência em me ver partir para Tchermachnia!
SMERDIAKOV - Eu sentia-me infeliz.
A casa não era segura. Pretendi que vos afastásseis.
IVAN - Querias afastar-me do crime?
SMERDIAKOV - Não o adivinhastes?
IVAN - Teria ficado!
SMERDIAKOV - Julguei que tivésseis
medo e que quisésseis pôr-vos a salvo.
IVAN - Achas-me tão covarde como
tu?
SMERDIAKOV - Perdoai-me. Assim
julgava.
IVAN (depois de uma hesitação) - Dmitry acusou-te formalmente perante os
juízes.
SMERDIAKOV - Era tudo o que podia
dizer com as acusações que pesavam sobre ele. Procurava escapar-se. Como
vistes, não o conseguiu (Ivan cala-se.
Smerdiakov aproxima-se dele e toca-lhe no braço) Vejamos, Ivan
Fyodorovitch, se eu tivesse más intenções quanto ao pai, julgáveis que eu fosse
tão estúpido que vos contasse tudo quanto vos contei?
IVAN - Não estou a acusar-te. Seria
ridículo acusar-te.
SMERDIAKOV - Tenho confiança em vós
como em Deus... Posso subir ao meu quarto?
IVAN - Vai.
Smerdiakov
sobe ao andar superior. Ivan segue-o com os olhos. Ao voltar-se, repara em
Katerina Ivanovna no limiar da esquerda. Corre para ela e recebe-a nos seus braços.
CENA III
Ivan, Katerina
KATERINA (afastando-se um pouco) - Estás com febre... Estás a escaldar.
IVAN (voltando a agarrá-la) - Todos os dias eu me perguntava se virias.
Vieste, mas para me resistir.
KATERINA - É preciso esperar.
IVAN - O quê?
KATERINA - Deixa-me acalmar... Sê
mais paciente... Uma vez que me tens nos teus braços... Porque eu sou feliz nos
teus braços!
Deixa cair
a cabeça sobre o ombro de Ivan e chora.
IVAN - Oh!... Sofres, não é
verdade?
KATERINA - Não duvides do meu amor,
Ivan.
IVAN - Conheci-te mais alegre,
quando resistias.
KATERINA - Nada mais tenho do que o
meu amor, Ivan! Tu desapossaste-me do resto...
Abre-se a
porta da esquerda. Gruchenka aparece.
CENA IV
Ivan, Katerina, Gruchenka
IVAN (voltando-se, brutalmente) - O que é isto?
GRUCHENKA (dando um passo) - Alyocha não está aqui? Devia vir quando saísse da
prisão. Vou sentar-me lá fora e esperar por ele. (Vai para sair)
KATERINA (dando um passo em direcção a ela) - Senhora... Vê algumas vezes
Dmitry na prisão?
GRUCHENKA - Todos os dias.
KATERINA - Ele já sabe que ... o
seu irmão e eu estamos resolvidos a facilitar a sua evasão?
GRUCHENKA - Como? Querem...
IVAN - Assim é preciso. Está tudo
pronto. Tenho o dinheiro. O chefe do turno prometeu a sua ajuda.
GRUCHENKA - E Dmitry aceita?
IVAN - Alyocha ficou encarregado de
o sondar.
KATERINA - E a sua resposta?
IVAN - Estou à espera dela.
Gruchenka
finge que vai retirar-se.
KATERINA - Senhora... Mesmo hoje o
viu?
GRUCHENKA - Esta manhã.
KATERINA - Que faz ele?
GRUCHENKA - Fala! Fala!
KATERINA - E o que diz?
GRUCHENKA - Muitas vezes coisas que
eu não compreendo, mas tão belas que não posso impedir-me de chorar.
KATERINA - Está triste?
GRUCHENKA - Não. Pelo contrário,
alegre. Mas quando se põe a caminhar na cela remexendo os cabelos, vejo muito
bem que alguma coisa não bate certo.
KATERINA - Sim?...
GRUCHENKA - Um segredo. O imbecil!
Eu conheço o seu segredo... (Baixando os
olhos) Ele não gosta de mim! Ele pensa em si, Katerina. Ele fala-me de si!
KATERINA (com uma exaltação surda) - Sim. Eu feri a sua alma, ele feriu a
minha. E para toda a vida!
GRUCHENKA - Ele repete que se
recusar vê-lo, então será para sempre infeliz. Está a ouvir? Ousou dizer-me
isso, a mim! (Mais baixo) É preciso
que vá...
KATERINA - Não posso. Ele olharia
para mim. Não...
GRUCHENKA - Não tem piedade?
KATERINA - Gruchenka, da minha
parte... Quererá beijar-lhe a mão? Diga-lhe que o nosso amor está morto, mas
que ele me permanece cruelmente querido. Oh! Que ele não deixe de me amar!
Diga-lhe isso... (Gruchenka, dobrada, faz
não com a cabeça. Com uma reverência) Diga-lhe isso a ele, e...
perdoe-me...
GRUCHENKA - Somos ambas cruéis,
mãezinha. Nem você tem necessidade do meu perdão nem eu do seu. Mas salve-o, e
vou venerá-la durante toda a minha vida. (Alyocha
entra pela esquerda)
CENA V
Ivan, Katerina, Gruchenka, Alyocha
IVAN (para Alyocha) - Então?
ALYOCHA - Ele recusa. O combóio dos
deportados parte dentro de uma hora para a Sibéria.
IVAN - Porque é que ele recusa?
ALYOCHA - «Oferecem-me a liberdade sem
acreditarem na minha inocência. Isso eu não quero!» Foi a sua resposta.
Disse-me ainda: «Não quero furtar-me à purificação». Está cheio de força e de
alegria.
IVAN - Foste tu que o dissuadiste
de aceitar.
ALYOCHA - Não, irmão. Mas Deus
visitou-o e ele está sequioso de sofrimento. Quer ir para o presídio para a
salvação de todos... Pobre Mitya! Sempre temerário... Sem dúvida que não está
ainda pronto para tal martírio. Já na prisão, ficava revoltado quando os
guardas o tratavam por tu. Lá, se alguém lhe tocar, ele não aceitará a ofensa.
Será então que ele matará.
IVAN - Disseste: «Será então que
ele matará?»
ALYOCHA - Sim
IVAN - Como se ele não tivesse já
matado?
GRUCHENKA - Não foi ele!
ALYOCHA - Dmitry não matou o nosso
pai. Não, Ivan.
IVAN - Tens provas?
ALYOCHA - A palavra que ele me deu.
Não posso duvidar dele.
GRUCHENKA - Dmitry é incapaz de
mentir.
IVAN - É tudo o que opões à
sentença dos juízes?
ALYOCHA - Eles não podiam deixar de
condená-lo. Tudo o incriminava. Tudo o que se pode explicar se explicava contra
ele: mais do que presunções, quase provas.
KATERINA - O seu ódio pelo pai.
ALYOCHA - Ele não era o único a
odiá-lo.
IVAN - Ele não deixava de proclamar
o seu desejo de matá-lo.
ALYOCHA - Os factos são gritantes.
Mas, quanto aos sentimentos, é outra coisa.
IVAN - Na manhã do crime, no
convento, ele ter-lhe-ia batido se eu não me interpusesse. Às oito da noite,
deixou Katerina como um louco, dirigindo-se para casa do pai.
ALYOCHA - Porque ele pensava
encontrar lá Gruchenka. Mas ela não estava lá.
IVAN - Vejamos, vejamos... Uma hora
depois, entrou aqui, rebuscou a casa e foi emboscar-se atrás da sebe. Desde
esse momento ficou à espreita. Na própria noite em que encontraram o pai
assassinado Grigory quase o agarrou no jardim. Dmitry confessa que bateu em
Grigory e tu negas que à mesma hora, no mesmo sítio, a mesma mão tenha cometido
esse duplo assassinato!
ALYOCHA - Para quem, de entre nós,
Ivan, estás a refazer esse requisitório?
Gostaria de te ver acolher, a favor do nosso irmão, a mínima presunção
de inocência... Esqueceste contudo, a acusação de roubo que pesa também sobre
Dmitry. É porque ela te parece menos fundamentada? Fyodor Pavlovitch guardava
em casa três mil rublos, escondidos num envelope. Depois do crime, foi
impossível encontrar o envelope ou o dinheiro.
IVAN - E os três mil rublos que
Dmitry se vangloriava de ter gasto em Mokroye?
ALYOCHA - Sabes tão bem como eu
donde vinham esses três mil rublos. Desde há três dias que ele os trazia ao
peito, cosidos num lenço.
KATERINA - Eu disse aos juízes que
eles podiam corresponder à importância que eu entregara nas suas mãos e de que
ele se tinha apropriado.
ALYOCHA - Sim, disse-o com
lealdade, para desculpá-lo.
GRUCHENKA - É o que Dmitry chama a
sua traição!
ALYOCHA - Infelizmente! O meu irmão
sentiu-se menos atingido na sua honra por ter assassinado do que por ter
cometido essa deselegância. Ele considerava-a como o pior dos seus crimes.
KATERINA - A mais pungente das suas
humilhações!
ALYOCHA - Até à audiência ele
recusou explicar-se sobre esse ponto. Depois da sua revelação, não viu,
Katerina, que ele deixou de defender-se e mesmo que passou a inculpar-se?
KATERINA - Sim, para ter a última
palavra, para me deixar o remorso de o ter perdido, para me esmagar com a sua
superioridade!
GRUCHENKA - Vi-a empalidecer nesse
instante! Ah! A réplica não se fez esperar. Com que fúria você gritou no
tribunal que Dmitry, na noite do crime, lhe declarara: «Devolver-te-ei os teus
três mil rublos, nem que tenha de ir para a Sibéria!...» Se a mínima dúvida
pudesse subsistir no espírito dos jurados, esse argumento era decisivo. Estava
acabado...
ALYOCHA - O quê? Ainda lutavam!
GRUCHENKA - Foi a menina que fez
tudo isto. Foi ela que o perdeu. Ela!... Precisava da sua condenação!
IVAN - Enquanto não me trouxerem
provas...
ALYOCHA - Não discutamos mais sobre
as provas. Para quê? Dmitry parte dentro de uma hora para a Sibéria... Que a
expiação seja justa para ele, ainda que a sentença seja injusta, admito-o. Só a
infelicidade devia dominá-lo. Poderia ter matado. Mas, no momento supremo, Deus
viu-o, Deus tocou essa alma de criança. Ele fugiu. Não foi ele!
IVAN - Então, quem? (Aproximando-se de Alyocha, em voz mais baixa)
Em tua opinião, quem é pois o assassino?
ALYOCHA (suavemente) - Tu mesmo o sabes.
IVAN - O quê?
ALYOCHA - Sabes bem quem foi.
IVAN - Espero que tu o digas.
ALYOCHA - Não foste tu... É tudo o
que posso dizer.
IVAN (agarrando-o pela manga) - Vamos, vamos, explica-te...
ALYOCHA - Ivan, disseste mais do
que uma vez que foras tu o assassino.
IVAN (desnorteado) - Mas quando? Eu estava em Moscovo. Não falei de nada.
ALYOCHA - Disseste-o muitas vezes,
quando estavas sozinho, durante estes dois meses terríveis. Acusaste-te e
confessaste... Mas não és tu o assassino; enganas-te, ouviste? Não foste tu.
Deus inspirou-me que tu dissesse, quando deverias odiar-me para sempre...
IVAN - Aleksey Fyodorovitch, sabes
que não gosto dos videntes, nem dos embaixadores divinos. A partir de agora vou
romper definitivamente contigo e peço-te que me deixes imediatamente!
ALYOCHA - Meu irmão! Se te
acontecer hoje alguma coisa, lembra-te de mim, antes de tudo!... Dmitry
disse-me esta manhã: «Ivan é superior a todos nós, é ele que deve viver!...»
Lembra-te também destas palavras.
IVAN - Partes?... Para onde vais,
Lyocha?
ALYOCHA - Lá para baixo, para as
minas. Acompanharei Dmitry passo a passo. Os seus males são aqueles que é
possível partilhar. E, se ele não puder suportar até ao fim a sua pena, terá
junto de si alguém...que poderá responder por ele. Vamos...
Gruchenka,
que estava sentada, levanta-se e junta-se a ele com entusiasmo.
KATERINA - E Gruchenka?
ALYOCHA (agarrando a mão de Gruchenka) - Gruchenka fará parte da viagem, ela
também. Aceitou a sua cruz. Sacrificar-nos-emos juntos.
KATERINA - Gruchenka, não!
ALYOCHA (com um aceno de mão) - Adeus...
Sai,
conduzindo Gruchenka pela mão.
KATERINA (lançando-se atrás deles) - Não...
IVAN (gritando) - Katerina!
Katerina
detém-se, de pé, encostada à porta, mordendo os punhos e seguindo com o olhar
Alyocha e Gruchenka que se afastam no jardim.
CENA VI
Ivan, Katerina
IVAN (perto de Katerina, por cima do seu ombro) - Queres segui-los?
KATERINA (voltando-se e enlaçando com os seus braços o pescoço de Ivan) - Vês
bem como te obedeço... (Levantando a cabeça)
- Mas não ouviste o que eles acabaram de dizer? Fui eu que o traí, fui eu que o
perdi. Traí-me a mim mesma!
IVAN (com desânimo) - Ainda pertences a esse assassino.
KATERINA - Como tu falas dele!
IVAN (com súbita violência, transtornado) - Tu, tu também não acreditas
que foi ele o assassino?... Não acreditas que foi ele o assassino!... Ouves o
que dizem os outros... Enquanto eu falo, tu dizes para ti mesma: «Quem?»
Caminhas na rua e tens sonhos... e pensas: «Talvez não seja um sonho...» Tu
dormes, e tu vês... Tu acordas e escutas uma voz que te diz: «Quem, então quem,
quem foi?» Acabei agora de dizê-lo... Tu estavas lá? Eu perguntei: «Então
quem?»
KATERINA - Que tens, Ivan?
IVAN - Então, então... se não foi
Dmitry que o matou...
Cala-se
KATERINA - Em que estás a pensar?
IVAN - Não penso em nada. Não
penso... Há alguma coisa na minha cabeça... que pensa. Não sabes o que é? Tu
não sabes o que são os pensamentos dos homens: como a embriaguez do vinho, como
o desejo do amor... nada os pode deter... O homem que pensa, o que é que ele
não pode pensar?...
KATERINA - Estás a delirar!
IVAN (fazendo um esforço para se dominar) - Não, não, não estou a
delirar. Continua ao pé de mim... Eu sei onde estou. Eu vejo os objectos. Eu
ouço...Estás a ouvi-lo, lá em cima? Ele instalou-se.
KATERINA - Ele quem?
IVAN - Smerdiakov. Regressou esta
manhã. Conversámos os dois. Vou dar-lhe uma palavra. Deixa-nos Katerina. Por um
instante. Entra aqui. Estou bem. Vai. Chamar-te-ei. Vai, vai, vai. Em breve
farei...
Empurra
Katerina, que sai pelo fundo.
CENA VII
Ivan, Smerdiakov
Ivan sobe
ao quarto de Smerdiakov. A porta está fechada. Ele sacode-a.
IVAN (a meia-voz) - Abre, Smerdiakov, Sou eu.
VOZ DE SMERDIAKOV (do quarto) - Que mais quereis?
IVAN (elevando a voz) - Abre!
SMERDIAKOV (entreabrindo a porta) Estou doente, senhor. Deixai-me descansar.
Por favor.
IVAN (agarrando-o) - Não te deixarei. Vais falar (Empurra-o até à escada) Desce... Vais falar. Vou forçar-te a isso.
SMERDIAKOV (descendo à frente de Ivan) - Porque me atormentais assim?
IVAN - Quero saber porque desejavas
a minha partida?
SMERDIAKOV - Outra vez essa
pergunta! Para um homem inteligente, supus que a questão estiva esclarecida.
IVAN - Não te admito que brinques
comigo! Que vil subentendido te permitiste ainda agora? Sim. Quando eu disse
que seria ridículo acusá-lo, porque me respondeste: «Tenho confiança em vós
como em Deus»?
SMERDIAKOV - Desejais portanto que
falemos francamente?... Uma explicação?
IVAN - Sou porventura teu cúmplice
para te recear?
SMERDIAKOV - Não tendes mais a
recear de mim que eu de vós. Se viésseis a acusar-me e, por meu lado, eu
revelasse a conversa que aqui tivemos, uma hora antes do crime, toda a gente
suspeitaria dos vossos maus sentimentos, e talvez... de outra coisa.
IVAN - O que é essa "outra
coisa"? Fala, besta mal-cheirosa!
SMERDIAKOV - Mas... mas... se por
acaso tivésseis desejado a morte do vosso pai... (Ivan bate com toda a força no ombro de Smerdiakov que cambaleia e geme)
É uma vergonha o senhor bater num homem fraco. (Soluça no lenço).
IVAN - Basta! Chega! Não me faças
perder a paciência!... Acreditas que eu estivesse de acordo com Dmitry para
fazer tal coisa?
SMERDIAKOV - Não conhecia os vossos
sentimentos. Foi para os conhecer que vos detive na escada.
IVAN - O quê? Conhecer o quê?
SMERDIAKOV - Precisamente se
desejáveis que o vosso pai fosse morto.
IVAN - Por Dmitry?
SMERDIAKOV - Naturalmente. Dmitry
como assassino perdia todos os seus direitos. A sua parte na herança reverteria
para vós, o que daria sessenta mil rublos. E já não falo dos vossos outros
desejos.
IVAN - Escuta, miserável. Se
tivesse de contar com alguém seria contigo, nunca com Dmitry. Da tua parte
podia esperar-se qualquer imundície...
SMERDIAKOV - Estais a ver bem...
Estais a ver bem... E, apesar desse pressentimento, partistes.
IVAN - Não tive qualquer
pressentimento. Não, juro que não!
SMERDIAKOV - Não? Não esperáveis
nada de mim?
IVAN - Nada!
SMERDIAKOV - Como? Recusastes ir a
Tchermachnia, apesar das súplicas do vosso pai. E de repente, seguindo o meu
conselho, depois de tudo o que eu vos tinha dito, anunciastes a vossa partida
para Moscovo!
IVAN - Nunca acreditei que tal
coisa fosse possível.
SMERDIAKOV - Mas tínheis esse
pensamento, lá isso tínheis... Será que um bom filho não me teria entregue
imediatamente à polícia e mandado açoitar pelas minhas palavras? Mas não... vós
ouvistes-me com condescendência, fizestes gentilmente tudo o que vos disse...
Que poderia eu concluir?
IVAN - Basta! Não tenho medo de
ti...nunca tive tal pensamento!
SMERDIAKOV (aproximando-se dele) - Que importa... porque não correis qualquer
risco. Digo-vos que não existem provas. Vede como tremem as vossas mãos.
Porquê?... Ide dormir em paz. Não sois vós o assassino.
IVAN - Já mo disseram. Sei-o bem!
SMERDIAKOV (martelando as sílabas) - Sabeis?
IVAN - Fala serpente. Diz tudo.
SMERDIAKOV - Ainda não
compreendestes?... Vamos, estamos aqui frente a frente. Para quê representar um
com o outro uma comédia?
IVAN - Uma comédia? Que comédia?
Não represento comédias...(Olhando-o com espanto)
Fantasma!
SMERDIAKOV - Estais doente. Não há
aqui nenhum fantasma. Apenas eu e vós, e ainda um outro, entre nós os dois.
IVAN - Quem? Que outro?
SMERDIAKOV - Deus. Deus está aqui,
ao pé de nós.
IVAN - Mentes! És tu que
representas a comédia. Tu não páras de mentir para me embaraçar, para me
confundir. Não se compreende nada daquilo que tu dizes. Tudo isso é inventado.
Ou tu és louco, ou divertes-te a irritar-me. Sim... tu és louco...tu és louco!
Não te quero ouvir mais. Vai-te embora. És louco! (Recua tão precipitadamente que bate com as costas na parede, ficando
pregado ao chão e olhando Smerdiakov com terror)
SMERDIAKOV (olhando Ivan com um ódio louco) - Esperai um pouco... (Arregaça a calça da perna esquerda, descobre
uma meia branca, desaperta a liga e enfia a mão na meia)
IVAN (balbuciando) Louco! Louco! (Smerdiakov
tira da meia um maço de notas que coloca sobre a mesa)
SMERDIAKOV (a meia-voz) - Aqui está.
IVAN - O que é isso?
SMERDIAKOV - Dignai-vos observar (Ivan aproxima-se da mesa. Agarra as notas
que se escapam dos seus dedos) Ides desmaiar?... Está aqui tudo... três mil
rublos. Não tendes necessidade de contá-los.
IVAN (sentado, com ume espécie de sorriso) - Fazes-me medo.
SMERDIAKOV - Então,
verdadeiramente, não sabíeis?
IVAN (após um silêncio, os olhos perdidos, a voz átona) - Estavas só...
ou com o meu irmão?
SMERDIAKOV - Eu não matei senão
convosco, Ivan Fyodorovitch! Dmitry é completamente inocente... Fostes vós que
me inspirastes o crime. Não fiz mais do que executá-lo.
IVAN (esmagado) - Eu tive, portanto, esse pensamento... Tive-o... Deus!
Por um pensamento!
SMERDIAKOV - É preciso esconder
isto... (Dissimula o maço sob um livro)
Vós que tínheis tanta coragem... (Com
cólera, olhando à sua volta) Não vale a pena estares assim a tremer!
IVAN (quase submisso) - Senta-te. E diz-me tudo.
SMERDIAKOV - Como se passaram as
coisas? Mas da forma mais natural... Vós tínheis partido. Eu escondi-me,
esperei. Estava certo de que Dmitry atravessaria a vedação à meia-noite para
ele mesmo se informar sobre o que se passava aqui.
IVAN (levantando a cabeça) - E se ele não tivesse vindo?
SMERDIAKOV - Então, nada teria
acontecido.
IVAN - Deus! Deus!... Fala sem
pressas. Não esqueças nenhum pormenor.
SMERDIAKOV - Ele não podia deixar de
vir. Eu tinha-o preparado tão bem durante os últimos dias...
IVAN - Pára! Porque mataste?
SMERDIAKOV - As palavras que
pronunciastes...
IVAN - Deixemos as minhas palavras!
Mas o móbil, o interesse que te levou a isso?
SMERDIAKOV - Por nojo, por
vingança. E também por causa do dinheiro.
IVAN - Mas, se Dmitry tivesse
matado, teria ficado com o dinheiro.
SMERDIAKOV - Não o teria
encontrado. tinha-lhe dito que o envelope estava escondido debaixo do colchão.
Dado o golpe, apoderei-me da quantia, e tudo caía em cima de Dmitry.
IVAN - Continua.
SMERDIAKOV (lentamente) - Continuar? Seja... Portanto, eu estava à espera, no
silêncio da noite. O vosso pai agitava-se, chamava-me. Eu não me mexia. De
repente... o sinal. Saíra do meu esconderijo... Fyodor Pavlovitch abre a
janela, debruça-se, chama...A janela é baixa: «Ele vai bater-lhe de fora»,
pensava. Mas nada. O tempo passa, o meu coração bate. Estava a faltar-me a
paciência quando o vosso pai, julgando sem dúvida que Gruchenka o esperava na
porta pequena, pegou num candeeiro e saiu. Ficou lá fora talvez um, talvez dois
minutos. O sangue subia-me à cabeça, faltava-me a respiração... E finalmente!
Vindo do fundo do jardim ouvi um grito enorme. Era a voz de Grigory...
Compreendi imediatamente que Dmitry, apavorado, tinha fugido, e que Grigory,
vigilante, o alcançara, que uma luta se travara entre os dois... Se eu não
tivesse a coragem, a força de me aproveitar das circunstâncias e de executar eu
mesmo o trabalho, tudo teria de recomeçar!... Ao ouvir o grito de Grigory,
Fyodor Pavlovitch, aterrorizado, voltou a entrar. Eu estava escondido ali, por
detrás do pilar...Ainda o velho não dera três passos e lancei-me sobre ele - eu
tinha agarrado no pisa-papéis de bronze... pegai... neste... pesa três
libras... - e com todas as minhas forças desferi-lhe um golpe na cabeça...
Entrou pelo canto. Ele nem sequer soltou um grito e sucumbiu. Bati-lhe uma
segunda, uma terceira vez. Percebi então que tinha o crânio fracturado. Estava
caído para trás, todo coberto de sangue... Limpei o pisa-papéis, voltei a
colocá-lo no lugar, fui buscar o dinheiro escondido atrás do ícone e depois saí
a tremer. Já no jardim, fui até à macieira que tem uma concavidade, estais a
recordar-vos? Tinha-a referenciado há muito tempo, tinha mesmo lá posto um pano
e um papel. Embrulhei os três mil rublos no pano, meti o pano dentro do papel e
enfiei o pacote no fundo do buraco. Ficou lá durante dois meses. Só o fui
buscar esta manhã, quando voltei... Por fim, corri à paliçada e encontrei
Grigory inanimado, estendido no chão. Portanto, Dmitry viera e Grigory, que
ainda respirava, podia testemunhar a sua passagem e, acusá-lo do roubo e, ao
mesmo tempo, e em consequência, do crime e do roubo. Fiquei descansado...
IVAN - E...então?
SMERDIAKOV (sorrindo) - Então... tive a minha crise.
IVAN - Uma crise verdadeira, ou
fingida?
SMERDIAKOV - Evidentemente que estava
a fingir. Desci à cave e deitei-me tranquilamente até que vieram recolher-me,
no dia seguinte...
IVAN - E ainda simulavas a crise no
dia seguinte?
SMERDIAKOV - De forma alguma. Desde
a manhã do dia seguinte fui possuído por uma crise verdadeira, a mais violenta que
tivera até hoje. Fiquei inconsciente durante dois dias.
IVAN - Bem, bem! E depois?
SMERDIAKOV - É tudo.
IVAN - Não vejo, em tudo isso,
porque tinhas necessidade do meu consentimento?
SMERDIAKOV - Se, por acaso, as
suspeitas caíssem sobre mim, ter-me-íeis defendido...
IVAN (com os dentes serrados) - Querias torturar-me durante toda a minha
vida! E garantir assim a tua impunidade...Mas... essa impunidade, tu tinha-la;
então, porque me fizeste esta confissão? Vou denunciar-te!... Podias calar-te,
podias negar...
SMERDIAKOV - É que o meu ódio foi
mais forte, Ivan Fyodorovitch... Não pude resistir: foi a necessidade de
vingança. Odeio-vos há muito tempo. Nunca compreendestes o meu valor... porque
eu era um lacaio... insultáveis-me, a mim, que tanto vos admirava, que me
esforçava por ter mérito aos vossos olhos, que vos imitava em tudo... Não
poderia suportar que me fugísseis. Odeio toda a Rússia, senhor... mas é
especialmente a vós que eu odeio...
IVAN (erguendo o livro que cobre o maço dos rublos) - Mostraste-me este
dinheiro para me convencer?
SMERDIAKOV (com voz trémula) - Esse dinheiro, ficai com ele... Não preciso
dele... Pensara que com esse dinheiro poderia começar uma vida nova em
Moscovo... vós faláveis sempre de uma vida nova!... Ou melhor ainda no
estrangeiro, depois de completar a minha instrução. Pensava ver, também eu,
esses países felizes da Europa... Era a minha ideia. Dizia para mim que tudo é
permitido... (Ergue os olhos para Ivan)
Ensinastes-me isso, como me ensinastes muitas outras coisas... Se Deus não
existe, não há virtude, porque ela seria inútil. Isso parecia-me verdadeiro...
IVAN - E agora, acreditas, já que
devolves o dinheiro?
SMERDIAKOV - Não. Não acredito! (Com a voz estrangulada, fazendo um gesto
desesperado) Porque dizíeis vós que tudo é permitido? E agora, porque estais
tão pálido e com as pernas curvadas? (Com
indizível desprezo) Não suportais sequer que eu tenha feito aquilo que vós
não ousaríeis fazer. Vós, nem mesmo ousaríeis matar-me. Vós não ousais nada,
velho audacioso!... E ireis, talvez, para me perder, acusar-vos covardemente? (Com angústia) Não! Não fareis isso, Ivan
Fyodorovitch. Isso não pode ser. Sois demasiado inteligente, demasiado
orgulhoso. Gostais das mulheres, da independência, do luxo. Não quereis
estragar a vossa vida. De todos os filhos de Fyodor Pavlovitch, vós sois aquele
que se parece mais com ele. Tendes a mesma alma. (Ivan solta um rugido de horror) Vamos, meu antigo patrão, ficai com
o dinheiro...
IVAN - Que dinheiro? Ah! Sim... (Agarra o maço das notas e mete-o na
algibeira)... Amanhã mostrá-lo-ei aos juízes.
SMERDIAKOV - Ninguém vos
acreditará. Tendes agora bastante dinheiro para poder dispor dessa importância.
IVAN - Escuta miserável, se ainda
não te matei, foi apenas porque preciso de ti amanhã.
SMERDIAKOV - Então matai-me!
Matai-me imediatamente. Não ousaríeis fazê-lo. Vós não ousais nada, velho audacioso!
IVAN - Até amanhã...
SMERDIAKOV - Esperai... Mostrai-mo
uma última vez...(Ivan tira o maço da
algibeira e estende-o a Smerdiakov que o contempla avidamente sem lhe tocar)
Ide, agora... Ivan Fyodorovitch!... Adeus!
Escapa-se e
sobe a escada a correr com esforço.
CENA VIII
Ivan
IVAN (afastando-se para sair, e como se respondesse ainda a Smerdiakov) -
Até amanhã... sim, irei, porque é essa a minha vontade, não por causa das tuas
ameaças e do teu desafio... Amanhã, irei escarrar-lhes na cara, a todos! Mas
apenas amanhã... Guardemos tudo para amanhã... (Zombando) e daqui até amanhã... (Voltando-se) O quê? Estás a zombar? Porque reconheces o teu
pensamento nas minhas palavras?... Ah! Ah! Não, não te sentes, vai-te
embora!... Aliás, podes ficar, é-me indiferente. Tu não existes... Não, tu não
existes. Tu, sou eu. Tu és a minha doença, a minha alucinação, a incarnação dos
meus pensamentos e dos meus sentimentos mais abjectos... Tu não és senão eu sob
uma outra forma, a forma de um lacaio! Como pôde o meu espírito
engendrar-te?... Torna a sentar-te imediatamente! Causas-me horror. Não! Eu
resistirei! Não me levarão para a casa dos loucos!... Vai-te embora! Vai-te! (Pega num copo que está na mesa a atira-o à
sua visão. O copo quebra-se) Ah!
Ah! Ah! (Chamando) Katerina!
Katerina...
CENA IX
Ivan, Katerina
KATERINA (acorrendo do fundo) - Ivan!
IVAN - Vem, vem... Oh! Sabes como
nos tornamos loucos? Julgas que nós mesmos podemos dar-nos conta que
estamos a tornarmo-nos loucos?
KATERINA - Ivan, infeliz!
IVAN - Ele estava sentado aqui, no
sofá (Rindo) É horrivelmente
estúpido...
KATERINA - De quem estás a falar?
IVAN - O diabo! Ele persegue-me;
mas ele mente. É um impostor. Troça de mim. Já não consigo suportá-lo. Que
fazer? Que fazer?
KATERINA - Onde está Smerdiakov?
IVAN (mostrando o pisa-papéis) - Com isto... três golpes! Um pensamento,
um só, chegou para nos pormos de acordo. Eu sou um assassino, disse-me ele. Sou
eu.
KATERINA - Ivan, estás a delirar,
não foste tu que mataste. Não é verdade.
IVAN - Não, não, eu digo a verdade.
Acredita em mim. Ainda não estou doido. Toma (Estende-lhe o maço dos rublos)
KATERINA - O quê?
IVAN - A prova!
KATERINA - O dinheiro não prova
nada! Ivan, escuta-me, reflecte... Smerdiakov acusa-se por maldade. Ele
aproveitou com o crime, sem o ter executado. Preparou tudo, favoreceu. Mas não
teve a coragem...
No rosto de
Ivan, enquanto escuta avidamente Katerina, surge um vislumbre de esperança.
Beija-lhe a mão apaixonadamente, murmurando: «Oh!... Katerina!...» Depois, dá
um salto até ao quarto de Smerdiakov e empurra violentamente a porta. Recua,
soltando um grito pavoroso.
IVAN - Enforcado!... Aqui... Estou
a vê-lo. Pendurou-se numa trave! (Katerina
avança para se juntar a Ivan que a detém com um gesto) Não, espera... (Ivan penetra no quarto, saindo logo a seguir
com todos os membros a tremer, mas o rosto brilhando de uma espécie de alegria)
Isto não é uma visão... Eu toquei o seu corpo... (Com um dedo nos lábios, começa a descer a escada aos tropeções)
Chut... Katerina, não chames. Ele está morto. (Pára para rir suavemente) Ah! Ah!... uma libertação! Que ele leve
consigo todo o mal! Eu sabia bem que ele não era eu... inteiramente...
KATERINA - Dmitry... Dmitry!
IVAN - Que apodreça na prisão! Não
quero servir um Deus em que não acredito!... Estou sufocado...
Cambaleia.
Katerina segura-o. Desce a escada apoiando-se nela.
KATERINA - Vem, vem, apoia-te em
mim.
IVAN - Katya... Katya...
KATERINA (levando-o para o sofá) - Aqui... deita-te...
IVAN (agarrando-se a ela) - A morte não... a morte não... Katya...
KATERINA - Eu estou ao pé de ti...
IVAN - O teu desprezo, sim... Mas
não a morte!... Não posso dizer mais... já não posso... pensar... Mesmo o ódio,
Katya, e todas as torturas do outro mundo... desde que eu ainda viva... desde
que eu viva...
Katerina abraça-o
e embala-o como a uma criança.
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